Casa-Grande & Senzala, publicada em 1933 e que tinha como subtítulo Formação da família brasileira sob um regime patriarcal, foi uma resposta às teorias racistas ainda persistentes nas diversas correntes interpretativas do Brasil. Gilberto Freyre pretendia recolocar, sob outro ponto de vista, o problema do papel desempenhado pela integração das “três raças” (negros, índios e brancos) na formação do povo e da nação brasileira. Lembremos que foi publicada no mesmo ano da ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha e em meio ao avanço, em escala planetária, de ideias e projetos ultrarreacionários.

Esse tema não era novo para os intelectuais e políticos brasileiros. Mas, o instrumental teórico utilizado e suas conclusões não deixavam de ser bastante originais. A partir de um arcabouço teórico de viés culturalista,concluiu corretamente não existirem raças inferiores e superiores. A possível inferioridade física dos brasileiros – e suas consequências psicossociais – devia-se ao predomínio do latifúndio que, por séculos, privou “a população colonial do suprimento equilibrado e constante de alimentação sadia e fresca”. Freyre – invertendo a lógica da ideologia imperante no país – defendeu existir certa superioridade dos negros em relação aos índios e portugueses, especialmente em relação à “cultura material e moral”.

Os negros, além de maior capacidade de adaptação às condições tropicais e à agricultura, seriam portadores de características psicológicas positivas: “Contrastando-se o comportamento das populações negroides como a baiana – alegre, expansiva, sociável, loquaz – com outras menos influenciadas pelo sangue negro e mais pelo indígena (…), tem-se a impressão de povos diversos”. Aqui o viés racialista é evidente. Parecia existir uma relação direta entre raças e propensões psicológicas: os negros e mulatos seriam alegres e os índios e caboclos tristes.

Freyre não só constatou o fato de existir no país um povo mestiço, como muitos que o antecederam já haviam feito, mas viu nisso uma coisa positiva. Escreveu: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo (…) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.

No Brasil a mestiçagem teria tido um papel democratizante: “A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre (…) casa-grande e senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido da aristocratização (…) foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação (…) agindo poderosamente no sentido de democratização social no Brasil”. Freyre parece confundir a miscigenação com um possível processo de democratização social. Estes, na verdade, seriam dois fenômenos diferentes e não necessariamente complementares. A miscigenação pode perfeitamente ser acompanhada pela construção de sociedades autoritárias e excludentes. No caso brasileiro, todos os dados disponíveis apontam nesse sentido.

Devido a afirmações como essas, Freyre foi acusado de idealizar o país existente sob o domínio das oligarquias rurais – especialmente as nordestinas – e de tentar reconstruir a história do ponto de vista da casa-grande. A acusação não é de todo infundada. Logo no Prefácio de Casa-Grande & Senzala, o autor afirmou: “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro (…). Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro” e, por isso mesmo, dentro da “rotina” da casa-grande melhor se sentiria o caráter do nosso povo. Parece-me que reduzir o Brasil ao espaço da casa-grande, sem dúvida, é uma das principais limitações dessa obra magistral de Gilberto Freyre.

Dentro desse esquema teórico, a casa-grande e sua estrutura patriarcal tenderiam a produzir determinadas patologias psicossociais, que afetariam diferentemente dominantes e dominados. O sadismo e o masoquismo, nascidos naquele ambiente, se enraizariam profundamente na personalidade dos futuros brasileiros e teriam reflexo no campo das relações políticas. “O sadismo do senhor e o correspondente masoquismo do escravo (…) têm feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. Cremos surpreendê-lo em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes muitas vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo transformadas em culto cívico, como o do marechal de ferro”. E completava de maneira jocosa: “no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar de ‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático”.

Essa tese, talvez, seja a mais perversa do livro. Ela acaba cumprindo a função de ideologia justificadora de determinadas formas de dominação social e política – especialmente as mais truculentas: a exploração sexual da escrava, a tortura dos moleques do engenho e mesmo as ditaduras antipopulares. Afinal, o povo brasileiro teria propensões masoquistas e desejaria intimamente ser dominado por governantes “másculos e autocráticos”.

Apesar de, inicialmente, culpar o latifúndio escravista pelos males que afligiriam o povo – como sua inferioridade física –, ele contraditoriamente afirmou que os escravos eram muito bem alimentados. Por isso seria natural que deles “descendam elementos dos mais fortes e sadios da nossa população. Os atletas, os capoeiras, os cabras, os marujos”.

Também, de maneira idílica, apresentou a relação entre raças e culturas durante o período colonial. Dissertou: “a sociedade brasileira é (…) a que se constituiu mais harmonicamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados e adiantados; no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com o do conquistado”. O português – “escravocrata terrível” – “foi por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores” e o “menos cruel nas relações com os escravos”.

Indiretamente chegou mesmo a defender a necessidade da escravidão negra: “O meio e as circunstâncias exigiriam o escravo (…). Teria sido mesmo ‘um crime escravizar o negro e levá-lo à América?’, pergunta Oliveira Martins. Para alguns publicistas foi erro enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro meio de suprir as necessidades do trabalho poderia ser adotado o colonizador português do Brasil”.

Nessa perspectiva conservadora, a própria Abolição da escravidão e as transformações econômicas que se seguiram não poderiam ser vistas de maneira muito positiva. Lamentava a dissolução daquele sistema, desfeito em 1888, que “até então amparou o escravo, alimentou-o com certa largueza, socorreu-o na velhice e na doença, proporcionou-lhe aos filhos oportunidade de acesso social”. Depois disso o escravo “foi substituído pelo pária da usina; a senzala pelo mucambo; o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo capitalista ausente”. A Abolição teria criado “um proletariado de condições menos favoráveis de vida do que a massa escrava”. Os escravos só teriam de lamentar a liberdade conquistada, que lhes tirou a segurança, a boa alimentação e as oportunidades provindas do cativeiro. Lembramos ter sido esse um dos grandes argumentos dos escravocratas visandoa sustentar a manutenção da escravidão no país. Autores racistas e reacionários, como Oliveira Vianna, defenderam essas mesmas ideias nas décadas de 1910 e 1920.

Sobre a relação entre os colonizadores portugueses e os índios a visão idílica se mantém: “Nem as relações sociais entre as duas raças (…) aguçaram-se nunca em antipatia ou no ódio cujo ranger, de tão adstringente, chega-nos aos ouvidos de todos os países de colonização anglo-saxônica e protestante. Suavizou-as aqui no óleo lúbrico da profunda miscigenação”. Em outro parágrafo, contraditoriamente, escreveu: “Nossas guerras contra os índios nunca foram guerras de brancos contra peles-vermelhas, mas de cristãos contra bugres (…). É o infiel que se trata como inimigo no indígena, e não o indivíduo de raça diversa ou de cor diferente”. O combate e o extermínio das nações indígenas nos EUA e no Brasil podem ter se dado sob bandeiras diferentes – defesa do progresso ou da cristandade –, mas as verdadeiras razões foram de ordem econômica: conquista de territórios ou de escravos. Contudo, em todos esses casos, se utilizaram da ideologia racista.

Apesar das afirmações anteriores, Freyre acaba, em vários momentos, dando elementos que nos ajudam a questionar essas opiniões anti-históricas. “O açúcar matou o índio. Para livrar o indígena da tirania do engenho é que o missionário o segregou em aldeias”.Este teria sido outro processo, “embora menos violento e mais sutil, de extermínio da raça indígena no Brasil”. “O imperialismo” (referindo-se à política do governo colonial português e o Império) “(…) se desde o primeiro contato com a cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-la de repente (…). Deu-lhe tempo de perpetuar-se em várias sobrevivências úteis”. A cultura indígena sobreviveria, mas não as nações que a produziram.

Contrapondo-se à historiografia republicana jacobina (lusofóbica), ele valoriza o papel dos portugueses no processo de colonização da América. Os monarquistas como Afonso Celso e Eduardo Prado já haviam feito isso nos primeiros anos da República. Segundo Freyre, os portugueses teriam sido os melhor preparados para a empresa colonizadora na América tropical. Em primeiro lugar, pela quase centenária relação mantida com a Ásia e a África. “A singular predisposição do português para colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-se em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África”, escreveu.

A dominação moura sobre a península ibérica também contribuiu para criar essas condições favoráveis à colonização dos trópicos. “Durante o domínio mouro a cultura indígena (portuguesa) absorveu da invasora larga série de valores; e os dois sangues se mesclaram intensamente. (…). Grande foi a influência do mouro dominador, não foi menor a do mouro cativo de guerra. Foi o vigor do seu braço que tornou possível em Portugal o regime de autocolonização agrária pela grande propriedade e pelo trabalho escravo. Regime depois empregado tão vantajosamente no Brasil”. Não é possível deixar de notar, novamente, uma admiração pelos efeitos positivos da escravidão negra.

Assim, os portugueses puderam triunfar “onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com característicos nacionais e qualidades de permanência”. Outros povos europeus “sucumbiriam ou perderiam a energia colonizadora, a tensão moral, a própria saúde física”.

Essa leitura equivocada do papel civilizatório do império português levou-o a apoiar a reacionária política colonial do salazarismo e se incompatibilizar com os movimentos de libertação nacional da África. Os resultados da colonização portuguesa naquele continente foram desastrosos e não diferiram de outras experiências coloniais, promovidas por França e Inglaterra. Isso mostra que Freyre não se liberta completamente da ideologia colonial, embora a incorpore de maneira mitigada.

Freyre e a democracia racial brasileira

Ao contrário de que muitos pensam, o termo democracia racial não aparece nessa obra seminal de Freyre. Segundo Antônio Sérgio A. Guimarães, o autor pernambucano usaria um conceito assemelhado onze anos depois. Numa conferência na Universidade de Indiana se referiu às “tendências esboçadas no sentido de uma democracia étnica e social” existente já no período colonial.

Ironicamente, o primeiro a utilizar o termo positivamente teria sido o líder negro Abdias do Nascimento, numa exposição realizada no I Congresso do Negro Brasileiro, ocorrido em 1950. Afirmou ele naquela ocasião: “Observamos que a larga miscigenação praticada como imperativo de nossa formação histórica, desde o início da colonização do Brasil, está se transformando (…) numa bem delineada doutrina de democracia racial, a servir de lição e modelo para outros povos de formação étnica complexa, conforme é o nosso caso”. Essa ideia – da existência de uma democracia racial implantada no país ou em vias de ser viabilizada – era muito forte no meio da intelectualidade brasileira na primeira metade do século XX, inclusive no movimento negro. A situação mudaria drasticamente nos anos seguintes.

Na literatura acadêmica, o uso pioneiro do termo coube a Charles Wagley, que escreveu em 1952: “O Brasil é renomado mundialmente por sua democracia racial”. E concluía Guimarães, “Gilberto Freyre não pode ser responsabilizado integralmente nem pela ideia nem pelo seu rótulo — e ainda que fosse o mais brilhante defensor da ‘democracia racial’, evitou, no mais das vezes, nomeá-la”.A miscigenação seria uma prova cabal da inexistência do racismo entre nós. O problema é que, no caso brasileiro, a miscigenação não pode ser confundida com nenhuma espécie de democracia social ou racial. As relações entre brancos e negros, mais precisamente entre homens brancos e mulheres negras, sempre foram assimétricas e muitas vezes marcadas pela opressão e violência.

“Cerca de vinte anos depois (da publicação de Casa-Grande & Senzala)”, escreveu Emília Viotti, “uma nova geração de cientistas sociais, estudando as relações raciais no Brasil, chegou a conclusões bastante diferentes. Estes cientistas acumularam uma nova quantidade de evidências de que os brancos brasileiros foram preconceituosos e de que os negros, apesar de não terem sido legalmente discriminados, foram ‘naturalmente’ e informalmente segregados (…). As possibilidades de mobilidade social foram severamente limitadas aos negros e sempre que eles competiram com os brancos foram discriminados”.

Freyre não se curvou às evidências e se tornou o mais radical defensor da existência de uma democracia racial no Brasil. Em 1962, Freyre atacou o que considerava transposição do problema negro estadunidense para o Brasil. Voltou-se, por exemplo, contra a utilização do termo negritude, recepcionada pelo movimento e a intelectualidade negra. Usando a palavra numa universidade portuguesa, sob o tacão do salazarismo, afirmou: “Meus agradecimentos […] pela sua presença, vindo ouvir a palavra de quem, adepto da ‘vária cor’ camoniana, tanto se opõe à mística da ‘negritude’ como ao mito da ‘branquitude’: dois extremos sectários que encontrariam a já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem: uma prática que nos impõe deveres de particular solidariedade com outros povos mestiços (…).Principalmente com os das Áfricas negras e mestiças marcadas pela presença lusitana”.Estranhamente o discurso partia de um opositor aos movimentos de libertação africanos. Alguns anos depois, em 1969, atacava os “pseudossociólogos e comunistas” que “agiam de maneira antibrasileira” ao negarem a existência de uma democracia racial no país.

O mito da democracia racial, segundo Viotti, contribuiria para “retardar as mudanças estruturais. As elites (…) continuavam a usá-lo como expediente para ‘tapar o sol com a peneira’ (…). O mito – não os fatos – permite ignorar a enormidade da preservação de desigualdades tão extremas e desumanas, como são as desigualdades raciais no Brasil”.

Apesar de todos os seus limites, essa obra de Freyre é revolucionária e se constituiu, naquela conjuntura (início da década de 1930), numa trincheira importante da luta teórica e ideológica travada contra as correntes racistas e fascistas que se espalhavam pelo mundo e pelo Brasil. Não à toa, logo após a publicação de Casa-Grande & Senzala, os reacionários acusaram-na de ser um libelo comunista. 

PS: Não cabe neste pequeno artigo apresentar um panorama da trajetória intelectual e política de Gilberto Freyre. Contudo, é bom alertar que algumas teses equivocadas presentes já naquela época – e desenvolvidas posteriormente – o levariam a assumir posições cada vez mais conservadoras, para além da mistificação da ação do colonialismo português na África. Freyre apoiou ativamente o golpe de 1964 e a ditadura militar implantada no país, inclusive nos seus momentos mais terríveis. Tornou-se um dos próceres da ARENA, partido oficial do regime. Teve uma postura indigna ao denunciar personalidades e entidades que se colocavam no campo da oposição democrática e popular, como dom Hélder Câmara.  

* Este texto, com algumas revisões e complementos, compõe o ensaio Descobrindo o povo brasileiro, publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: Encontros e desencontros (Editora Anita Garibaldi, 2009).

** Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi

 

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