Noam Chomsky critica relação mídia e estado em governos progressistas
Em entrevista coletiva com blogueiros e mídias alternativas em São Paulo, o linguista, filósofo e ativista norte-americano Noam Chomsky, de passagem pelo Brasil, falou sobre a situação da mídia no mundo. Chomsky fez uma comparação entre o mito da imprensa livre dos “ditos países livres” – especialmente Inglaterra e EUA – e o que aconteceu nos países da América Latina nos últimos anos, em especial no Brasil, com mídias que tendem a ser mais do espectro da direita, segundo o filósofo.
Chomsky falou a blogueiros e mídias alternativas, ao vivo, no Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. O encontro desta segunda-feira (17) foi uma iniciativa do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, com apoio da Fundação Perseu Abramo.Em pauta, o golpe em curso no país, os rumos da democracia, a ameaça da extrema-direita e as eleições de outubro. Chomsky veio ao país para o seminário internacional Ameaças à democracia e à ordem multipolar, organizado pela Fundação Perseu Abramo, ocorrido na sexta-feira (14).
O professor Noam Chomsky, 90 anos, é professor Emérito de Linguística do MIT – Massachusetts Institute of Technology e da Universidade do Arizona. Considerado o pai da Linguística Moderna, também é um incansável ativista político, autor de mais de cem livros, entre os clássicos “O consenso fabricado”, “O poder americano e os novos mandarins”, “O controle da mídia” e “Quem governa o mundo”.
Sobre a imprensa inglesa, Chomsky citou a obra “Revolução dos Bichos”:“Orwell, faz uma sátira ao mundo autoritário e de como na Inglaterra eles conseguem suprimir ideias divergentes sem o uso da violência. Ele não fala muito sobre como essas ideias divergentes são escondidas, mas ele fala como os meios de comunicação pertencem a homens ricos”. O filósofo lembrou que a introdução do livro – em que Orwell faz as ponderações sobre a mídia – “foi suprimida e só apareceu 30 anos depois”.
O professor explicou como, hoje, a mídia se organiza nos países ocidentais. “Se a gente observa a estrutura de como a imprensa funciona nesses países nós vamos ver grandes corporações que pertencem a corporações ainda maiores. Então, nós temos um negócio em que os produtores de notícias e os publicitários têm o mesmo interesse e eles dizem o que vai ser interessante ser publicado ou não”, declarou.
“Quando você olha para a estrutura institucional da mídia, pertencentes a grandes empresas, o produto somos nós. A estrutura da mídia são grandes corporações vendendo as pessoas para outras corporações e anunciantes”.
Exemplificando a diferença de tratamento dado à imprensa por EUA e Inglaterra e pelos países da América Latina, Chomsky afirmou que “a Venezuela de Chávez foi duramente condenada pelos EUA e pela Inglaterra, simplesmente porque um canal de televisão foi substituído por um menor. Concordo com o julgamento de que foi um erro do governo Chávez, eu condeno essa ação, mas não concordo com a segunda parte de que isso nunca aconteceria nos EUA e nem na Inglaterra.
É inimaginável haver um golpe de estado nos EUA com o New York Times apoiando e o New York Times continuar circulando. Os governos de esquerda e centro-esquerda que passaram pela América Latina nas últimas décadas em geral tiveram uma postura de abertura para imprensa, ainda que essa imprensa fosse universalmente contra esse governo. Nos ditos “países livres”, isso jamais aconteceria: uma imprensa uniformemente contra os governos, como na América Latina”.
Seguindo esse raciocínio, para Chomsky, “o que aconteceu no Brasil não foi exceção, foi regra. A esquerda que esteve no poder na América Latina estava aberta ao fato de que a imprensa funcionava como queria, como Nicarágua e na Venezuela que deixou a imprensa correr solta. Se algo assim se reproduzisse nos países centrais, os editores desses jornais teriam sorte de não estarem presos”.
Neoliberalismo e barbárie
Um dos entrevistadores perguntou a Chomsky sobre os juizes e promotores brasileiros que foram treinados nos Estados Unidos e agora servem à Operação Lava Jato. Ele traçou um paralelo com os economistas da região que foram treinados na Universidade de Chicago com as ideias de Milton Friedman — os “Chicago Boys”.
Coube a eles, por exemplo, implantar o plano econômico do governo Pinochet, no Chile, à base de torturas, assassinatos e desaparecimentos. Foi um projeto piloto do neoliberalismo, que colapsou nos anos 80 e ganhou, então, o apelido irônico de “Chicago Road to Socialism”, estrada de Chicago rumo ao socialismo.
O regime do general Augusto Pinochet, como ele observa, foi o primeiro a adotar a radicalização do liberalismo. Desnacionalizou empresas de mineração, acabou com a previdência pública e privatizou as aposentadorias, escancarou o mercado para multinacionais – tudo sob um regime sangrento, que resultou em mais de 3.200 mortos e 38 mil presos e torturados. “Eles destruíram a economia daquele país.”
Chomsky alerta para a forte presença de economistas seguidores da chamada Escola de Chicago – precursora da cartilha segundo a qual o “mercado”, e não os Estados nacionais, é que deve regular o funcionamento das sociedades – em vários governos da região e em várias candidaturas que hoje disputam a Presidência da República.
Ele se refere ao economista e banqueiro Paulo Guedes, fundador dos Instituto Millenium, do banco Pactual e apelidado de “Posto Ipiranga” do capitão reformado. Segundo Chomsky, essa linhagem começou a implementar suas ideias na América Latina no final dos anos 1970 por meio da ditadura chilena.
Chomsky encerrou a resposta com a lembrança de que o economista que mandará no Brasil, se Jair Bolsonaro for eleito, será um “Chicago Boy”, Paulo Guedes. “Vocês podem imaginar o que viria por aí”.
O economista Paulo Guedes é hoje auxiliar de um candidato que pensa como o general chileno. Além do regime linha dura implacável com opositores, Pinochet, acumulou fortunas provenientes de corrupção, se tornou réu por crimes contra a humanidade e teve sua prisão decretada em 1998, pelo juiz espanhol Baltasar Garzón, quando se encontrava em tratamento médico em Londres.
Mídia e esquerda
Chomsky também falou do ativismo da mídia tradicional contra governos de centro-esquerda na América Latina e comparou com a atuação dos órgãos de imprensa das potências ocidentais, como Inglaterra e Estados Unidos. Para Chomsky, o que acontece no Brasil, no que diz respeito ao papel da mídia no processo político, “não é exceção, mas a regra” (na América Latina).
“Na Nicarágua e Venezuela os governos foram atacados duramente, mas os jornais continuaram circulando. Nos países centrais, como Inglaterra e Estados Unidos, se a imprensa tivesse atuação semelhante, os editores teriam sorte se fossem apenas presos”, disse.
Ele lembrou que a Venezuela foi duramente “condenada” pelos países ocidentais por ter tirado do ar a Radio Caracas Televisión (RCTV), cuja concessão o governo de Hugo Chávez não renovou, sob a acusação de que a emissora conspirou contra ele em 2002, quando o então presidente foi vítima de uma tentativa de golpe de Estado.
Embora concorde com a avaliação de que a atitude de tirar o canal do ar foi um erro de Chávez, Chomsky observou: “Mas é inimaginável acontecer um golpe nos Estados Unidos e o New York Times apoiar esse golpe e continuar circulando. Os governos de esquerda e centro-esquerda na América Latina nas últimas décadas mantiveram uma política de abertura e a imprensa foi livre, embora essa mesma mídia fosse muito dura em relação aos governos”, disse.
Regulação da mídia
Questionado sobre por que os governos do PT não enfrentaram a Rede Globo, o estudioso não simplificou a tese de que uma regulação dos meios resolva o problema da politização.
Segundo ele, nessas potências ocidentais onde há regulação, por exemplo, a imprensa americana ou inglesa não têm uma linha de enfrentamento com o establishment. “Na Inglaterra e Estados Unidos não haveria essa postura (de hostilizar e combater governos), como houve nos países da América Latina durante os governos de esquerda.”
O funcionamento da imprensa ocidental, pontuou, se dá a partir de grandes corporações, pertencentes, por sua vez, a corporações ainda maiores. “Vendem notícias para anunciantes. Os publicitários e empresas dirigem o modo como essas noticias são modeladas e como essas notícias vão ser impressas.”
Ele contou que, em um momento durante o governo Chávez na Venezuela, estava no Chile e ficou “chocado” ao ver de que maneira os liberais e os chilenos de modo geral, normalmente, eram muito críticos ao governo venezuelano. “Entendi ao ler os jornais, que só davam notícias negativas sobre o governo chavista. Durante o período Chávez, uma empresa de pesquisa de opinião chilena fez vários trabalhos na Venezuela e constatou que a confiança dos venezuelanos no governo era das maiores do continente. Mas isso nunca era discutido pelos intelectuais que tinham opiniões negativas sobre a Venezuela.”
Senso comum hegemônico
Chomksy resumiu a perversa supressão de informações que testemunhou ao longo de décadas nos Estados Unidos, patrocinada pelas mega corporações que vendem notícias e produzem na população estadunidense o que chamou, citando Gramsci, de “senso comum hegemônico internalizado”. Seriam limites invisíveis não só ao que as pessoas podem dizer, mas pensar — um gulag intelectual forjado pela censura e autocensura.
Deu dois exemplos, relativos à guerra do Vietnã e à invasão do Iraque. No primeiro caso, a opinião mais à esquerda era a do jornalista Anthony Lewis, do New York Times, que atribuía o início do conflito à “tentativa desajeitada de fazer o bem” dos Estados Unidos. Quando a tentativa colapsou, nos anos 70, Lewis dizia que o custo seria muito alto para que os norte-americanos “impusessem a democracia e a liberdade ao Vietnã”.
Chomsky contrastou isso com as pesquisas de opinião segundo as quais 70% dos norte-americanos entrevistados consistentemente diziam que a guerra do Vietnã era “imoral”, não um erro como sustentava Lewis — pesquisas cujos resultados foram majoritariamente suprimidos da mídia e do debate sobre a guerra nos Estados Unidos.
No caso da ocupação do Iraque, a opinião mais à esquerda foi do próprio presidente Barack Obama, que descreveu o conflito como um “erro estratégico”. Chomsky lembrou que foi exatamente assim, como um “erro estratégico”, que generais de Hitler descreveram a desastrada tentativa de abrir duas frentes na Segunda Guerra Mundial, contra a Europa Ocidental e a União Soviética.
Não é preciso dizer que o paralelo entre o que diziam os generais nazistas e Obama nunca foi traçado pela mídia nos Estados Unidos.
Chomsky utilizou outros exemplos sobre a contradição entre o resultado de pesquisas de opinião e a opinião publicada — num dos casos, da mídia altamente concentrada e direitista da América Latina.
Relatou que, no Chile, estranhou o antichavismo de intelectuais locais, justamente quando pesquisas de opinião do Latinobarómetro, baseado em Santiago, registravam que os venezuelanos estavam entre os maiores apoiadores da democracia e de seu governo, ao lado dos uruguaios.
A oposição a Hugo Chávez havia, assim, penetrado no “senso comum” dos chilenos, mal informados pela imprensa local.
Exemplos de antichavismo epidérmico não faltam no Brasil. Aqui, intelectuais conservadores criticam bolsonaro comparando-o à Hugo Chavez, a partir de pressupostos absurdos.
Outro exemplo de Chomsky refere-se à pesquisa Gallup feita em 2013, sobre qual país do mundo era a maior ameaça à paz mundial. Nos Estados Unidos, os mais citados foram o Irã e a Coreia do Norte. No resto do mundo, os Estados Unidos ganharam de lavada como “a maior ameaça à paz”. Os resultados da pesquisa Gallup não foram divulgados na mídia corporativa dos Estados Unidos — e o instituto de pesquisas nunca mais incluiu a pergunta em seus levantamentos.
A Globo e o Brasil
Em sua palestra, Chomsky disse que os governos de esquerda da América Latina nunca de fato suprimiram a imprensa, como quiseram fazer parecer os barões midiáticos da região.
O filósofo destacou que o governo Lula é um dos principais exemplos de condescendência com a mídia, mesmo sendo completamente atacado por ela.
“O Brasil se tornou o país com melhor perspectiva do mundo durante os governos de Lula. Em uma forma que nunca tinha acontecido antes. Isso durou até o colapso do governo do PT. Mas isso pode ser alcançado novamente, não há razão para o país não voltar a essa posição”, disse.
Nos últimos meses, Chomsky se engajou na campanha pela libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, defendendo o ex-presidente do que chama de perseguição política e ressaltando que, por direito, ele seria eleito presidente
Ele lembrou que foi convidado por um amigo a visitar a Nicarágua quando o governo sandinista era acusado de limitar a tinta de impressão disponível para o diário La Prensa, o de maior circulação.
Porem, em sua investigação, Chomksy constatou que o jornal defendia abertamente os contras, guerrilheiros que promoviam guerra civil contra o governo sandinista com apoio militar dos Estados Unidos.
Chomsky disse que, nas mesmas circunstâncias, nos Estados Unidos, os donos do La Prensa provavelmente seriam colocados diante de um pelotão de fuzilamento, por apoiar a derrubada de um governo eleito instalado na Casa Branca.
Quando perguntando por que o presidente Lula não enfrentou a Globo no Brasil quando estava no poder, sem citar a emissora, Chomsky disse que este é um padrão dos governos de esquerda em toda a América Latina: nunca de fato ameaçaram a mídia hegemônica.
Reafirmou que emissoras que promovessem ou tentassem promover a derrubada de governos jamais seriam toleradas nos Estados Unidos ou nos países aliados europeus — como o Reino Unido e a França. Os donos destas emissoras, frisou, seriam no mínimo presos.
Os EUA e a América Latina
Chomsky não acredita numa invasão militar da Venezuela pelos Estados Unidos, embora as tentativas de sabotagem e subversão sejam conhecidas desde o golpe contra o governo Hugo Chávez. Segundo ele, uma invasão vai além da capacidade de Washington.
Para fazer uma comparação histórica, lembrou que o golpe de 64 no Brasil foi planejado nos Estados Unidos e descrito pelo então embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, como a maior “vitória para a democracia” da metade do século passado.
Dois anos antes, em 1962, o presidente John Kennedy havia determinado que os exércitos da América Latina deveriam mudar de prioridade, da defesa do Hemisfério (herança da Segunda Guerra Mundial) para a doutrina de segurança nacional, ou seja, combater o próprio povo. Tal era o grau de comando de Washington sobre seu “quintal”, frisou Chomksy.
Nos últimos 15 anos, no entanto, ele acredita que a América Latina esteve livre do “controle total direto” dos Estados Unidos, como se viu nos anos 60 e 70.
A ONU e Lula
Sobre a decisão do Brasil de desconhecer liminar do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que pediu a autoridades brasileiras que permitissem ao ex-presidente Lula concorrer ao Planalto, Chomsky disse acreditar que não haverá consequências internacionais. Os Estados Unidos, lembrou, desprezam o Conselho e a própria ONU.
Destacando o “excepcionalismo” dos Estados Unidos quanto às regras internacionais, Chomsky apontou para a lei aprovada pelo Congresso norte-americano que permite aos Estados Unidos resgatar com uso de força militar qualquer soldado estadunidense que porventura for submetido à Corte Internacional de Justiça, em Haia, na Holanda. Na Europa, a lei é conhecida jocosamente como “Lei da Invasão da Holanda”.
“A ONU não é independente, é limitada por aquilo que os Estados Unidos e outras nações permitem ou não que ela faça.” O linguista deu o exemplo de que, durante a guerra do Vietnã, os ataques norte-americanos nunca foram discutidos formalmente pelas Nações Unidas. “Em conversas minhas em off com pessoas do alto escalão da ONU, ficou-se sabendo que se a organização interferisse na guerra do Vietnã, ela seria fechada.”
América socialista
Chomsky afirmou que não vê no horizonte a eleição de um governo socialista nos Estados Unidos, embora o democrata Bernie Sanders se defina como socialista.
Segundo ele, a opinião pública moveu-se tão à direita nos EUA que hoje um governo social democrata moderado provocaria arrepios nos conservadores. Um governo como o do general Eisenhower, por exemplo, poderia muito bem ser taxado de “socialista”, ironizou Chomsky.
Ele afirmou, no entanto, acreditar na construção de instituições socialistas dentro da ordem capitalista — como cooperativas e empresas controladas por trabalhadores, o que vem acontecendo nos Estados Unidos.
Meio ambiente
Chomsky falou em sua apresentação sobre a gravidade da crise ambiental. Justamente no momento em que o aquecimento global ameaça, em duas gerações, provocar um aumento de dez metros de altura nas marés, a sociedade capitalista decidiu “maximizar o uso de combustíveis fósseis”.
Segundo ele, os bancos internacionais abriram os cofres para financiar a exploração petrolífera, mesmo diante da ameaça de extinção dos humanos. O lucro acima de tudo, “sejam quais forem as consequências”, embala o que Chomsky chamou de “pacto suicida” do capitalismo.