China, uma ordem pós-neoliberal?
Em um comentário sobre a entrevista, publicado em Effimera, 18-07-2018, o economista italiano Andrea Fumagalli escreve o seguinte:
“A dinâmica geopolítica e geoeconômica está em constante metamorfose. Mas, se o tabuleiro econômico global parece hoje mais orientado para uma crescente supremacia econômica, tecnológica e logística da China às custas dos Estados Unidos e da Europa, o mesmo não pode ser dito para a ordem geopolítica internacional. A China, depois de se tornar a economia de tecnologia mais avançada em muitos setores, sendo capaz de controlar as rotas globais da logística e do transporte, está agora minando a liderança estadunidense na exploração dos big data e nas biotecnologias e, em um futuro próximo, poderia inverter o primado financeiro de Wall Street.
“No plano político, no entanto, a situação é mais complexa. Apesar das aparências, um novo bipolarismo está se afirmando dentro das relações capitalistas internacionais entre um eixo austral, capitaneado pela China, com a Índia, África do Sul e Brasil(embora em crise) de apoio (o desenvolvimento intracomercial entre esses países em forte ascensão), e um inédito eixo boreal, fundado sobre a trindade Estados Unidos(Trump), Grã-Bretanha (saída da Europa) e Rússia (Putin). Trata-se de uma crescente tensão capitalista entre um Norte e um Sul do mundo, que obviamente não pode mais ser remetida à tradicional dialética dos anos 1970 entre ‘desenvolvimento-subdesenvolvimento’.
“Nestes dias, os encontros de Donald Trump com Theresa May (a assinatura de um pacto de livre comércio entre os Estados Unidos e o Reino Unido em função antieuropeia) e com Vladimir Putin para selar uma partilha de interesses estratégicos em oposição à China parecem confirmar isso. Vai nessa direção a guerra comercial que Trump começou a mover efetivamente contra a Europa (introdução de tarifas sobre o aço e o alumínio) e que constantemente ameaça contra a China (que, ao contrário da Europa, tem armas mais poderosas de resposta).
“Ao mesmo tempo, também nestes dias, uma delegação europeia se encontrou com as mais altas autoridades chinesas, e um novo tratado de livre comércio foi assinado entre a Europa e o Japão.
“A situação, portanto, está em fase de ebulição, em busca de um equilíbrio que hoje parece muito improvável. Por isso, a entrevista com Martin Jacques (grande conhecedor da realidade chinesa) é de extrema importância, especialmente porque nos permite assinalar a incapacidade europeia de entender de que lado deve estar neste novo conflito, de modo a evitar o seu próprio declínio. Trata-se de uma fase nova, em que os princípios da ‘democracia’ não importam mais (atordoados, desde que o liberalismo econômico se tornou hegemônico), e novas armas de ‘destruição em massa’ (militares e econômicas) se assomam no horizonte.”
A entrevista foi concedida a Yohann Koshy e publicada em New Internationalist, 09-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto para IHU-OnLine.
Eis a entrevista:
Como a China respondeu à crise financeira global?
Foi essencialmente uma crise ocidental, mas a China teve que responder porque os mercados estadunidense e europeu, dos quais ela dependia bastante, caíram muito inicialmente, e ela fez isso promovendo um enorme programa de estímulo. Ela bombeou grandes quantias de dinheiro para a economia, e a consequência foi que o crescimento chinês caiu um pouco, mas permaneceu muito alto. Ele beirava os 9% e 10% durante esse período e, de fato, subiu para 12% e 13%.
No período mais longo, basicamente o que aconteceu foi uma séria tentativa de mudar o centro de gravidade da economia chinesa. Em 1978, a economia da China era a 20ª em comparação com a economia dos Estados Unidos. As reformas ao longo das décadas seguintes foram no sentido de ela se tornar uma economia voltada para a exportação, dependente de mão-de-obra barata que vinha de poderosos movimentos migratórios da zona rural para as grandes cidades, com uma contribuição muito forte do Estado, é claro.
Mas, desde a crise financeira, a mudança tem sido em direção a uma economia cada vez mais dependente do consumo interno, e não do consumo externo, com uma dependência muito maior da pesquisa e do desenvolvimento, e com uma taxa de crescimento menor. A nova norma para uma taxa de crescimento é entre 6,5% e 7%, o que a China tem mantido até hoje. Mas, quando a economia está crescendo nesse ritmo, dado o tamanho de todo o país, o impacto global ainda é enorme: a China tem sido responsável, desde a crise financeira ocidental, por algo entre 40% e 50% do crescimento global. Sem a economia chinesa, a economia global seria uma confusão.
A China poderia estar seguindo a rota da financeirização como as economias ocidentais? Blackrock, o enorme hedge fund, recebeu recentemente uma licença para começar a operar lá.
Bem, eu não acho que o anúncio do Blackrock, em si mesmo, constitua algo parecido. Eu acho que os chineses resistirão fortemente a seguir esse caminho. É claro, eles precisam de um setor financeiro forte. Eles precisarão desenvolver mercados de capitais[locais financeiros onde o dinheiro possa ser levantado para investimento]. Mas o fato é que a economia chinesa é muito diferente da economia dos Estados Unidos. Ela ainda tem uma tremenda capacidade de produção e ênfase na importância do trabalho científico e técnico. O Estado é muito fundamental para o modo como a economia chinesa funciona. Eles também têm sido muito mais capazes de lidar com interesses especiais de um jeito que as economias ocidentais não conseguiram. O setor bancário tornou-se dominante nas sociedades ocidentais durante o período neoliberal do fim dos anos 1970 até o colapso financeiro. Parece-me que há muito pouca evidência de que isso está acontecendo na China.
E quando Mark Carney diz que está preocupado com o sistema bancário paralelo na China…
O principal problema da dívida na China é a dívida corporativa. O sistema bancário estatal, mas também, até certo ponto, o sistema bancário paralelo, acumulou um endividamento porque, às vezes, está excessivamente voltado a esquemas, planos e investimentos que não eram tão saudáveis, e isso aumentou. Mas, como nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, não é o Estado que está endividado… Então, é um problema, mas é um problema interno, e não externo. O que realmente ajudou as economias asiáticas menores durante a crise financeira asiática [nos anos 1990] foi que elas detinham importantes ativos em moedas estrangeiras e, de repente, à medida que suas moedas caíam, suas dívidas aumentavam rapidamente.
Além disso, a população chinesa em si mesma não está endividada. Eles tendem a ter poupanças muito grandes, que é uma das razões por trás da força financeira do país… É preciso dizer que a gestão econômica da economia chinesa tem sido bastante notável. Eles passaram 35 anos sem uma crise séria. Compare isso com o Ocidente!
Um dos principais desenvolvimentos desde a crise é a criação por parte da China do Novo Banco de Desenvolvimento e do Banco Asiático de Desenvolvimento de Infraestrutura, que até a Grã-Bretanha e a Alemanha assinaram embaixo – para o descontentamento dos Estados Unidos. Por que eles estão criando essas alternativas ao Banco Mundial e ao FMI?
Depois de 2007-2008, os chineses perceberam que não podiam confiar no alinhamento de interesses entre a economia dos Estados Unidos e a economia global. Eles tinham que desenvolver suas próprias instituições. Os estadunidenses também se arrastaram nas reformas do FMI, porque queriam manter o controle sobre ele.
Nessa situação, você não quer instituições como o FMI e o Banco Mundial, que são essencialmente instituições ocidentais cuja principal função é servir as economias ocidentais. Você precisa de algo com uma visão do mundo muito mais ampla e inclusiva… É por isso que vimos o Banco Asiático de Desenvolvimento de Infraestrutura, o Novo Banco de Desenvolvimento (o banco dos BRICS), e veremos um desenvolvimento muito maior de tudo isso junto com a iniciativa Belts & Road [um enorme programa de infraestrutura que visa a melhorar a conectividade entre a Europa, o Oriente Médio, a Ásia e a Australásia]. O veículo para a transformação global para o próximo período será a iniciativa Belts & Road.
Eu entendo por que o investimento chinês foi bem recebido pelos governos. No Equador, no entanto, há comunidades indígenas protestando contra as vorazes empresas chinesas de mineração. No Gâmbia, os pescadores locais estão sendo esmagados pelas empresas chinesas. Em um nível moral e político, como a China deveria lidar com essas lutas? Porque não há desenvolvimento sem conflito…
Você está certo: sempre há conflito no desenvolvimento. A China desenvolveu, com grande velocidade, uma presença em muitos países em desenvolvimento. Por um lado, isso levou a uma demanda crescente por produtores de commodities [em países mais pobres] – do petróleo a metais como o minério de ferro – e teve um efeito poderoso sobre as suas economias. Por outro lado, a China também é extremamente competitiva em muitas indústrias, e isso pode ter efeitos negativos. Há muitos exemplos em que a China, na produção de baixo custo, venceu a concorrência com empresas do mundo em desenvolvimento que não têm escala e nível de investimento para competir.
Em termos de relacionamento com lugares como a África e o Sudeste Asiático, as empresas chinesas têm sido um fator importante no desenvolvimento do início de uma capacidade de produção séria em lugares como a Etiópia, que, em geral, nunca a teve antes. Eu acho que a relação da China com a África tem sido basicamente muito positiva. Não estou dizendo que não houve problemas. Por exemplo, há muito ressentimento sobre as empresas chinesas que levam mão-de-obra chinesa para alguns dos desenvolvimentos infraestruturais. Mas a razão pela qual eu acho que isso tem sido amplamente positivo é que a China era uma nova fonte de demanda por produtores de commodities na África. Isso significa que eles não estavam mais apenas dependentes da demanda ocidental. Tornou-se um mercado competitivo, que elevou o preço das commodities durante esse período e fez com que eles estivessem em uma situação econômica melhor.
Em segundo lugar, e é por isso que eu sou profundamente contra o argumento de que a China é a nova potência colonial na África, a China entende o problema dos países em desenvolvimento. Um dos grandes problemas é o desenvolvimento de infraestrutura que forneça transporte, energia e os blocos de construção necessários para uma economia mais desenvolvida. O que a China tem feito em todos os principais países da África é fornecer sistemas rodoviários, ferroviários e assim por diante. Para os chineses, é tudo desenvolvimento.
A China nem sempre se comportou bem. Se você olhar para Mianmar, ele ficou muito próximo do regime militar [que está perseguindo os Rohingya], e uma fraqueza dos chineses é… [que eles frequentemente chegam em novos países sem serem] suficientemente sensíveis à opinião local. Isso definitivamente aconteceu em Mianmar e no Sri Lanka. Então, esse tipo de tensões é real e importante. E não há dúvida de que os chineses vão cometer muitos mais erros. A questão é se eles aprendem com eles. Então agora eles estão aprendendo a lidar com a sociedade civil em outros países, porque eles não têm uma sociedade civil da mesma forma que a maioria dos países.
Vamos terminar com a questão dos Estados Unidos. Há uma crescente belicosidade entre as duas superpotências. No entanto, suas economias também são dependentes uma da outra. A China possui mais dívidas dos Estados Unidos, na forma de títulos do Tesouro, do que qualquer outro país, o que, por sua vez, permite que os Estados Unidos gastem além de seus meios e comprem produtos chineses. Isso é sustentável?
A dificuldade no Ocidente é a incapacidade de entender a China. Ouça o programa Today da BBC, leia o Guardian: há pouca noção dessa mudança no mundo. Quantos artigos foram publicados sobre a iniciativa Belt & Road, que é o projeto global mais importante desta era?
Ironicamente, Trump foi o primeiro político estadunidense a reconhecer o declínio dos Estados Unidos: esta é a premissa do “Make America Great Again”. No entanto, ele está iludido na crença de que ele pode reverter isso. Eu acho que vai haver uma guerra comercial, mas nada irá [reverter a ascensão da China]. Estas são forças históricas profundas em ação, assim como a ascensão da Europa nos séculos XVI e XVII foram profundas tendências históricas. Portanto, os Estados Unidos precisam fazer as contas com a ascensão da China e renegociar a sua relação com a China. No centro de qualquer resposta à sua pergunta está isto: como o Ocidente lidará com o seu próprio declínio relativo?