Plano econômico de Bolsonaro regride a liberalismo pré-Geisel
Depois de Costa e Silva e Delfim, militares compreenderam que só a economia não era capaz de reduzir a desigualdade
São Paulo – O tema da desigualdade aparece apenas no programa de governo do candidato a presidente a Jair Bolsonaro (PSL) como uma consequência do desequilíbrio fiscal do Estado, defendendo cortes nas despesas públicas com a proposta de orçamento de “base zero” e privatização de estatais como formas de equilibrar as contas públicas. O candidato e o seu economista Paulo Guedes baseiam-se na crença ultraliberal de que a “economia de mercado é o principal instrumento de criação de empregos, renda e inclusão social”. Seu vice já falou até em acabar com o 13º.
Trata-se de um “pressuposto falso”, segundo o professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) Eduardo Fagnani, pois é um “dado histórico e evidente” que as economias de mercado criam a desigualdade. Ele diz que essa visão liberal havia sido abandonada ainda durante a ditadura, quando o plano econômico elaborado no governo Geisel – o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) – explicitava que “a política econômica isoladamente é incapaz de reduzir a desigualdade social”.
Era uma crítica às diretrizes econômicas adotadas pelos governos militares até então, resumidas no lema “fazer o bolo crescer para depois dividir” do economista Delfim Neto, então ministro da Fazenda dos governos Médici (1967-69) e Costa e Silva (1969-73), responsável pelo chamado “milagre econômico”. Era quando o país crescia a altas taxas, com a riqueza produzida apropriada por uma minoria, que ficava com a maior parte do “bolo”, aprofundando a concentração de renda e a desigualdade.
Segundo Fagnani, a política econômica ultraliberal idealizada por Bolsonaro e Guedes representa uma radicalização das propostas adotadas no governo Temer, que apostou no corte dos gastos públicos que, em pouco tempo, produziram resultados catastróficos. “É levar ao limite a política econômica do governo Temer. E essa política, em dois anos já provocou aumento da desigualdade, aumento da pobreza, do trabalho infantil, da evasão escolar, porque as crianças têm que trabalhar para ajudar no sustento da família. Depois de 30 anos, a mortalidade infantil aumentou. Produziu todos esses resultados em termos de desigualdade. Agora vai pegar essa política e levar ao limite? Será que vamos ter crescimento?”, questiona.
Nos últimos quatro anos, a miséria no Brasil subiu 33%. São cerca de 6,3 milhões de “novos pobres” – o equivalente à população do Paraguai, segundo estudo intitulado Qual foi o impacto da crise sobre a pobreza e a distribuição de renda?, elaborado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) Social. Desde 2014, o índice Gini, que mede a desigualdade, subiu numa velocidade 50% maior do que a queda registrada no período anterior iniciado em 2001, explicitando o aumento da concentração de renda.
“Países que tiveram um Estado de bem-estar social, onde a desigualdade é relativamente menor, combinaram tributação progressiva – quem ganha mais paga mais – e políticas sociais”, diz Fagnani. Ele afirma que as elites brasileiras nunca aceitaram os direitos sociais previstos na Constituição que encerrou o período de exceção. “A questão é que o liberalismo no Brasil nunca aceitou a Constituição de 1988 no seu conteúdo redistributivo.” O professor lembra inclusive de ultimato dado pelo então presidente José Sarney que se os constituintes não alterassem o conteúdo final da nova Carta, o país ficaria “ingovernável” por conta dos direitos sociais aprovados.
“Estruturalmente o Brasil é de um capitalismo arcaico que não entende que para que funcione tem que ter consumidor e, para isso, é preciso distribuir renda. Tivemos um sopro de democracia redistributiva entre 1988 e 2014. São menos de 30 anos em mais de 500. O Brasil real não é o que vivemos nos últimos trinta anos, mas o que a gente está vendo de volta agora. Uma elite que não aceita de maneira nenhuma abrir mão de absolutamente nada. É uma política burra. Qualquer país capitalista com C maiúsculo sabe que precisa de consumidor”, explica o economista.
Ética da desigualdade
“É o absurdo termos seis famílias que tem mais riqueza que a metade mais pobre da população brasileira. Temos os 5% mais ricos com mais recursos do que os 95% seguintes”, diz o economista Ladislau Dowbor, professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Segundo ele, a desigualdade social é também uma questão “ética”, além de “política e social”.
Ele diz que se o PIB brasileiro fosse dividido pela conjunto da população, restaria uma renda de cerca de R$ 12 mil por mês para cada família de quatro pessoas. O que é inadmissível, segundo Dowbor, é a “extrema riqueza” e a “extrema pobreza” que se verificam no Brasil. Para além da discussão ética, o professor diz também que “nenhum país consegue funcionar de maneira democrática, equilibrada, com segurança e bem-estar para as pessoas com esse elevado grau de desigualdade. Estamos entre os países mais desiguais do mundo.”
São não bastassem as implicações morais e políticas, Dowbor concorda com Fagnani e diz que a desigualdade também não funciona em termos econômicos. Com políticas de distribuição de renda e tributação progressiva, sobra dinheiro na base da pirâmide para alimentar o consumo, que estimula a atividade econômica. Com a economia aquecida, as empresas contratam mais, num círculo virtuoso que fortalece o mercado interno e contribui inclusive para a saúde das contas públicas. O fortalecimento da atividade econômica faz com que o Estado volte a arrecadar, afastando a necessidade do aumento de tributos ou corte de receita.
“As contas fecham”, diz Dowbor, ressaltando que esse modelo funcionou para tirar os Estados Unidos da Grande Depressão, com o New Deal – que programas sociais com política de emprego a partir do investimento estatal em obras públicas. Funcionou também na Europa do pós-guerra, com a criação do chamado Estado de bem-estar social, que redistribuía parte dos ganhos do capital a partir de um forte sistema público de educação, saúde e previdência, e segue funcionando atualmente em países de matrizes econômicas diferentes, como a Coreia do Sul e a China, mas que também adotam tributação progressiva e políticas de estímulo à economia. O entrave aqui no Brasil, segundo o professor, é a concentração do sistema financeiro que extrapola qualquer padrão internacional de comparação.