‘O discurso de pacificação não é novidade, forja uma ideia de ausência de conflitos no Brasil’
Entrevista por Luís Eduardo Gomes
Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA), Caroline Silveira Bauer avalia que o discurso da pacificação não é uma novidade na história política brasileira, tendo sido utilizado, por exemplo, na transição da ditadura militar para a democracia. “Acredito que seja cedo para a gente saber como que vai se dar essa pacificação, esse não é um discurso inédito e tem esse sentido histórico muito forte dentro do Brasil, forja uma certa ideia de um brasileiro cordial, de não haver desavenças históricas e de não haver conflitividade na sociedade brasileira”, avalia.
É mais novo, porém, a utilização da figura do Duque de Caxias como exemplo de pacificador. Patrono do Exército Brasileiro, Caxias recebeu essa alcunha por seu trabalho na repressão violenta a revoltas populares, como a da Balaiada, no Maranhão (1838-1841). Também foi responsável pelo acordo com as tropas farroupilhas que resultou no Massacre de Porongos, que resultou no extermínio dos chamados Lanceiros Negros, soldados negros que lutavam junto ao exército farroupilha por sua liberdade. Ela atribui essa “inspiração” de Bolsonaro à sua carreira militar e uma tendência recente de “militarização da política” no Brasil.
Ela chama a atenção para o fato de que o governo federal vem passando por uma militarização, com a ocupação de cargos por militares, mas ressalva que é uma tendência que vem desde o segundo governo de Dilma Rousseff (PT), reforçada sob Michel Temer (MDB). “Desde o processo de transição política, as relações entre civis e militares não foram bem configuradas. Ou melhor, não houve uma total submissão em relação ao poder civil pelas forças armadas, sempre foi mantida uma certa autonomia que foi negociada, inclusive, dentro do processo de transição política. Isso significou que determinados setores estratégicos do governo federal, já no período democrático, continuassem sob regência militar”, afirma.
Caroline argumenta, contudo, que é preciso ter cuidado com comparações históricas para que não se caia em simplificações ou generalizações de períodos distintos, como numa comparação entre o atual período e aquele que antecedeu o golpe militar de 1964. Porém, salienta que há elementos comuns. “Uma das continuidades que a gente pode dizer do comportamento das nossas elites é essa ideia de que todas as forças progressistas ou todas as iniciativas de diminuição da desigualdade social são vistas como uma ameaça ao status quo e identificadas com esse histórico anti-comunismo brasileiro”, diz.
Confira a entrevista a seguir.
Sul21 – O Bolsonaro se apresentou após ser eleito com alguém que deseja ser o pacificador do País. Ele citou, em resposta a uma pergunta, Duque de Caxias, que entrou para história com essa alcunha de pacificador, mas que também foi um grande repressor de revoltas. Que tipo de pacificador pode ser Bolsonaro?
Caroline Bauer: Em primeiro lugar, acho que é importante a gente fazer referência ao fato de que se referenciar como pacificador não é nenhuma novidade. Esse discurso de buscar a pacificação, a união nacional, como ele bem mesmo referenciou no discurso dele tem uma longa história, uma longa trajetória. Foi recuperada no momento da transição política da ditadura para a democracia também, essa ideia de uma pacificação nacional para que a democracia se concretizasse. E, na verdade, é um discurso que está enraizado historicamente na sociedade brasileira como uma ideia de dirimir conflitos e a conflitividade que sempre esteve presente na sociedade. Nos nossos dois últimos pleitos eleitorais para presidente, vivemos situações de polarização muito forte. Essa última eleição tem questões bastante inéditas do ponto de vista da violência política e acredito que o discurso dele tenha esse tom de pacificação e conciliação como uma tentativa de forjar uma governabilidade, mas é muito cedo para tentar entender como que se dará essa pacificação e se ela efetivamente ocorrerá. Um presidente governa para todos os brasileiros, mas há muitas discordâncias em relação às propostas que foram apresentadas por esse candidato. Então, novamente, acredito que seja cedo para a gente saber como que vai se dar essa pacificação, esse não é um discurso inédito e tem esse sentido histórico muito forte dentro do Brasil, forja uma certa ideia de um brasileiro cordial, de não haver desavenças históricas e de não haver conflitividade na sociedade brasileira.
Bolsonaro também se apresentou como pacificador em um dos pronunciamentos pelas redes sociais que fez neste domingo | Foto: Agência Brasil
Sul21 – Voltando ao Duque de Caxias, esse exemplo de pacificação pode servir de inspiração para o Bolsonaro ou é um discurso muito raso diante da complexidade dos problemas pelos quais o Brasil passa?
CB: Olha, eu acredito que boa parte das referências e dos exemplos que o Bolsonaro tenha provêm do meio militar por causa da sua formação. Os heróis que ele já enunciou como sendo seus provêm desse meio. Então, não me parece algo estranho ele referenciar ao Caxias como uma das suas referências e exemplos na questão da pacificação. Acredito que isso seja muito por causa da sua inserção no meio militar. Mas não lembro de nenhuma outra ocasião do Caxias sendo utilizado como um ‘estratega’ político para lidar com a conflitividade dentro da política. Isso é por causa de uma cultura militar e é uma tendência recente que nós vimos nos últimos dois anos, de militarização da política.
Sul21 – Sobre essa tendência de militarização, Bolsonaro eleito faz um discurso de respeito à Constituição, mas há um temor baseado em declarações passadas de que o governo dele possa enveredar para uma linha autoritária. Quais são os elementos que a senhora vê que indicam que o governo pode ou não se encaminhar para esse viés?
CB: Acho que a gente tem que tentar buscar algumas referências históricas quanto a isso, e pensar que, desde o processo de transição política, as relações entre civis e militares não foram bem configuradas. Ou melhor, não houve uma total submissão em relação ao poder civil pelas forças armadas, sempre foi mantida uma certa autonomia que foi negociada, inclusive, dentro do processo de transição política. Isso significou que determinados setores estratégicos do governo federal, já no período democrático, continuassem sob regência militar. E aí esse processo de militarização mais recente, ao que me refiro, vem desde o segundo governo Dilma, quando a gente começa a ter a presença de militares em cargos estratégicos, o que, com a posse do Temer, foi elevado a uma potência muito maior.
Então, nós temos militares na Casa Civil, no Gabinete de Segurança Institucional, dentro do Ministério da Defesa. É a ocupação de cargos chave dentro do governo, vinculados à área de segurança, de estratégia e de defesa, por militares. Eu não consigo fazer previsões, mas, pelo que já foi anunciado pelo Bolsonaro, há uma predisposição para que pessoas com conhecimento técnico ocupem determinados espaços, imagino que exista um encaminhamento para que mais militares ocupem mais postos nessa concepção tecnicista. Mas, novamente, é muito cedo. Ontem ele referenciou três ministros já previamente escolhidos [Paulo Guedes, Fazenda, Onyx Lorenzoni, Casa Civil, e General Augusto Heleno, Defesa], talvez um quarto já [o astronauta Marcos Pontes, Ciência e Tecnologia], mas a gente sabe que, no seu entorno, há uma presença muito forte de militares da reserva e da ativa.
Sul21 – Falando do ambiente na sociedade. Hoje a gente usa o termo ditadura civil-militar, não apenas militar mais, porque existiu uma legitimação daquele período autoritário. Quais são os elementos que podem ser comparáveis, se é que podem ser comparados elementos, na sociedade entre o pré-64 e agora?
CB: Isso é bem difícil. Essas comparações históricas têm que ser feitas com muito cuidado, para não haver simplificações, nem generalizações. Por exemplo, acho que a principal diferença que a gente pode demarcar em relação a 64 é o fato de que, naquele momento, a gente viver dentro de uma lógica da Guerra Fria, de haver realmente uma cultura revolucionária, forças de esquerda muito mais organizadas, que faziam parte de movimentos naquele período, coisa que agora não se configura. Mas acredito que uma das semelhanças que a gente viu muito presentes nessa campanha eleitoral foi um apelo a uma ameaça comunistas, que, nesse momento, à semelhança de 64, era impossível de acontecer qualquer coisa nesse sentido no Brasil. Uma das continuidades que a gente pode dizer do comportamento das nossas elites é essa ideia de que todas as forças progressistas ou todas as iniciativas de diminuição da desigualdade social são vistas como uma ameaça ao status quo e identificadas com esse histórico anti-comunismo brasileiro.
Sul21 – A gente teve presidentes eleitos com a bandeira da luta contra a corrupção e defendendo uma mudança sistêmica. Diz-se até que tem acontecido a cada 29 anos, pois ocorreu com o Jânio em 1960, Collor em 1989 e agora com o Bolsonaro. Há uma semelhança entre esses movimentos ou cada uma dessas figuras deve ser analisada a parte?
CB: Cada uma dessas figuras têm as suas peculiaridades e cada uma delas é produto de seus momentos. Mas elas têm algumas questões que parecem ser sempre bastante cativantes do ponto de vista eleitoral, que são esses discursos que fazem referência à corrupção, que fazem referência a uma melhor gestão, combate a privilégios, que parecer ter sido um retorno à propaganda política do início dos anos 90. Então, acho que determinadas estruturas e determinas promessas têm realmente um efeito muito forte. Então, acho que há, sem dúvida alguma, semelhanças. A principal diferença está na especificidade da nossa conjuntura desde 2016. Acho que se potencializou discursos, posições políticas e demandas da sociedade para resoluções de questões e problemas políticas fora da política. Esse é o principal problema e é por isso que a defesa da democracia foi colocada como uma bandeira unificador de diversos setores da sociedade para que todas as soluções colocadas para a crise política e econômica que o Brasil está enfrentando sejam dentro da política.
Acredito que essa deve continuar sendo a grande luta, com a perspectiva de que nós não caiamos no perigo de buscar essas soluções fora do sistema político que temos. Toda essa ideia de uma defesa da democracia também ressalta a fragilidade do sistema democrático de permitir que, ainda dentro do jogo democrático, se possa ir contra à democracia, na ameaça à igualdade de direitos, na ameaça à defesa das minorias, enfim, outras questões que foram colocadas como pautas de um projeto político.
Sul21 – Desde 2013, a gente viu uma explosão de pautas na sociedade. Tivemos uma ruptura com o que vinha sendo uma certa estabilidade de governos petistas com alta aprovação e vimos emergirem muitas pautas, muitas delas não dialogando entre si. Em 2013, por exemplo, tínhamos uma reivindicação pela maior qualidade de serviços públicos, enquanto agora temos também a defesa de privatizações, redução do Estado. Como a senhora vê a capacidade do Bolsonaro, que se apresenta com a proposta de um governo ultraliberal e conservador nos costumes, de responder a essa complexidade de demandas?
CB: A gente ainda tem poucas informações sobre a constituição do governo e para pensar como vai ser a governabilidade com o Legislativo que foi eleito, além da própria relação com estados e municípios. Pensar numa resposta para isso passa por primeiro tentar entender as demandas da população, e as contradições e paradoxos nessas demandas. Eu acho que há uma insatisfação muito grande, um sentimento de revolta potencializado pela crise econômica e pela crise política. Esse sentimento de revolta e essas demandas sociais que se apresentam exigem e acabam se somando a soluções rápidas. Tudo que é apontado como solução rápida para resolução dos problemas aparece como uma grande solução. No entanto, nós vivemos num sistema federativo o qual a cada ente da federação correspondem determinadas práticas e políticas a serem elaboradas. Esse funcionamento da política, de certa forma, parece ser desconhecido para grande parte da população. Então, demandas que foram apresentadas única e exclusivamente a uma pessoa, colocar uma única pessoa como a solução de todos os problemas, geralmente pode resultar em grande decepção.
Muitas coisas não dependem única exclusivamente do chefe do Executivo, ainda que ele possa capitanear, e aqui é curioso esse trocadilho, a execução de determinadas políticas. Do ponto de vista das medidas propostas, do plano de governo ou de como se desenhou a política econômica do presidente eleito, imagino que algumas coisas vão enfrentar resistência, porque são contraditórias a tendências históricas do brasileiro. Como um Estado relativamente regulador e controlador da economia, uma economia nacionalizada, o que a gente chama de nacional-estatismo, que é histórico. Nem a nossa ditadura conseguiu, na verdade nem tinha interesse e reforçou esse nacional-estatismo. Então, acho que essas questões vinculadas ao direcionamento da economia, vinculadas mais à legislação trabalhista, à questão previdenciária, isso vai encontrar resistências bastante grandes em setores sociais e da classe política.
Sul21 – Na questão da renovação da política que ele promete fazer. Qual é a margem que o Bolsonaro tem para renovar a forma como se faz política no Brasil?
CB: Sinceramente, não sei te responder. Se continuar esse presidencialismo de coalizão que há anos estamos desenvolvendo, acho que tem determinadas pautas, determinados compromissos internacionais que o Brasil assumiu, que serão muito difíceis de serem revogados. Então, uma certa moderação no discurso, como parece já ter havido ontem, pode ser uma tendência. Mas, é muito cedo ainda para pensar como o sistema vai se comportar e como o Bolsonaro vai se comportar com relação ao sistema.