Marc Morgan e Amory Gethin (abaixo), da Paris School of Economics, especialistas em desigualdade: “É importante lembrar que, no Brasil, as famílias com renda inferior a dois mínimos representam entre 40% e 50% da população”

Orientando do autor de “O Capital no Século XXI” e pesquisador do Laboratório de Desigualdade Mundial da escola parisiense, Morgan estudou a evolução da desigualdade brasileira de 2001 a 2015, constatando que ela pouco diminuiu no período. Economista do mesmo laboratório, Gethin analisou comportamentos eleitorais no Brasil, África do Sul, Austrália, Canadá e Japão e sua relação com a implementação de políticas redistributivas nesses países.

 

Para os especialistas em desigualdade, a ascensão da direita populista no Brasil é diferente daquela da Europa e Estados Unidos. Nas economias desenvolvidas, dizem, o movimento teve apoio principalmente das camadas mais pobres e menos instruídas, num momento em que a social democracia voltou-se para temas como ambiente, igualdade de gênero e direitos LGBT, negligenciando pautas relacionadas a renda e emprego.

Para Morgan e Gethin, o oposto parece ter ocorrido no Brasil, onde “o populismo de [Jair] Bolsonaro encontrou forte apoio entre as classes média e alta, em parte devido às políticas redistributivas do PT”, afirmam eles, em entrevista ao jornal Valor Econômico realizada por e-mail. 

O diagnóstico vai ao encontro da avaliação da própria equipe de Bolsonaro, conforme expresso pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, em entrevista ao jornal “El País” em agosto. “Bolsonaro está representando uma classe média esquecida e abandonada, agredida em seus princípios e valores, e que quer ordem”, disse Guedes à época.

Morgan e Gethin comentam ainda os impactos que as políticas econômicas podem ter para tornar ou não a distribuição de renda mais igualitária num país como o Brasil, que é ainda apontado como exemplo internacional de desigualdade extrema.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Amory Ghetin

Valor: Qual foi o papel da desigualdade de renda na eleição de Jair Bolsonaro?

 

Marc Morgan/Amory Gethin: Sob sucessivos governos petistas, as politicas economicas contribuiram para melhorar significativamente as condicoes de vida dos pobres, enquanto as familias de classe media ou proximas ao topo da distribuicao viram sua renda crescer apenas moderadamente, ou ate diminuir. Essa “classe media espremida” está no centro da ascensao de Bolsonaro. Enquanto outras questoes como corrupcao, seguranca ou ate mesmo religiao tiveram papel importante na chegada dele ao poder, a divisao economica de classes parece ser uma das clivagens mais importantes da sociedade brasileira atual. A vitoria da extrema direita pode ser entendida, ao menos parcialmente, como resultado dessa oposicao crescente entre ricos e pobres. Bolsonaro reuniu na?o so? os desiludidos com a corrupc?a?o do sistema poli?tico: ele tambe?m satisfez as elites urbana e rural que sentiam ter gradualmente perdido privile?gios desde a eleic?a?o de Lula em 2002 e que culpam o PT pela recessa?o iniciada em 2014.

Valor: Em um artigo recente, voce?s dizem que a reduc?a?o da desigualdade na era petista “foi feita a? custa da classe me?dia, e na?o dos mais ricos”. Por que isso aconteceu?

Morgan/Gethin: As poli?ticas implementadas pelo PT, combinando valorizac?a?o do sala?rio mi?nimo, programas sociais e investimento pu?blico substancial, beneficiaram principalmente os mais pobres. Isso fica evidente, por exemplo, na queda pela metade, entre 2002 e 2014, das fami?lias vivendo abaixo da linha de pobreza. Por outro lado, condic?o?es favora?veis nos mercados financeiros e a expansa?o significativa do cre?dito subsidiado beneficiaram principalmente os mais ricos. O fato de o Congresso liderado pelo PT na?o ter feito nenhuma reforma fundamental no sistema tributa?rio, cujo componente de renda e? suportado principalmente pela classe me?dia alta, tambe?m explica por que essas categorias viram seu padra?o de vida estagnar nos u?ltimos 15 anos, enquanto os pobres e os muito ricos prosperaram.

 

Valor: Na última pesquisa Datafolha antes das eleições, era possível ver que Haddad somente liderava nas intenções de voto entre pessoas com renda familiar de até dois salários mínimos. Acima disso, em todas as faixas de renda, Bolsonaro estava à frente na disputa. Isso significa que a classe média baixa também escolheu o candidato do PSL, mesmo sua renda não tendo sofrido tanto quanto a da classe média alta, segundo os dados apresentados por vocês. Então como explicar o voto da classe média baixa em Bolsonaro?

Morgan/Gethin: Há diversas razões que podem explicar por que uma parcela importante dos eleitores de baixa renda apoiou Bolsonaro. É preciso primeiro levar em conta que seu principal oponente foi Fernando Haddad, que até recentemente era mais ou menos desconhecido do público em geral. Há cerca de um ano, uma pesquisa Datafolha sugeria que, no segundo turno contra Bolsonaro, Lula teria recebido 58% dos votos e 70% da parcela mais pobre da população adulta teria votado nele. Também é preciso lembrar que famílias com renda inferior a dois mínimos representam entre 40% e 50% da população. O fato desse grupo ter preferido Haddad, enquanto as classes média e alta deram maioria de votos a Bolsonaro, retrata a extrema divisão de classes visível no país atualmente. Interpretações das causas da recessão recente, o aumento de desemprego e o ressentimento com a corrupção do PT podem explicar por que até mesmo a classe média baixa escolheu Bolsonaro.

 Valor: O Norte do Brasil, que tem características socioeconômicas parecidas com o Nordeste, e as periferias de Sul e Sudeste votaram em Bolsonaro. É justo então dizer que há mais nesse voto do que apenas a desigualdade de renda?

Morgan/Gethin: É claro. A política eleitoral sempre envolve múltiplas questões, e explicações unilaterais sobre comportamentos eleitorais nunca são suficientes. Clivagens baseadas em características socioeconômicas, como renda e nível de instrução, são apenas uma face da eleição de 2018. Questões relacionadas a corrupção, segurança, valores religiosos, ou até mesmo de preferências democráticas, que podem ter sido mais ou menos relevantes em diferentes regiões do país, tiveram sem dúvida seu papel. Em nosso artigo, descobrimos que as questões de corrupção e segurança pública contribuíram para reforçar as divisões de classe, na medida em que as classes média e alta tendem a dar mais importância a esses temas. As crenças com relação à democracia, por outro lado, serviram para borrar essas divisões: alguns indivíduos de classe alta, apesar de apoiarem o programa econômico liberal de Bolsonaro, se voltaram para o PT porque discordavam fortemente das visões do candidato do PSL acerca das instituições democráticas. De maneira similar, alguns eleitores mais pobres que têm fortes preferências com relação ao programa educacional de seus filhos, ou que relacionam o aumento recente do desemprego com o PT, se voltaram para Bolsonaro.

Valor: Alguns analistas argumentam que a rejeição ao PT é em alguma medida um subproduto de suas políticas econômicas, no sentido que elas geraram um nova classe média que agora quer mais, mas acabou perdendo com a recessão. Como vocês avaliam esta perspectiva?

Morgan/Gethin: Isso pode ser verdade em alguma medida: como políticas do PT beneficiaram principalmente os mais pobres, algumas famílias que conseguiram escalar a pirâmide social graças ao partido podem ter novas prioridades. Porém, a ideia de “rejeição ao PT” como algo inevitável deve ser qualificada. Há poucos meses, Lula tinha o apoio de uma clara maioria, mesmo entre a classe média baixa. Embora as divisões de classe tenham gradualmente crescido desde 2002, devido às consequências econômicas das políticas do PT, a rejeição ao partido e a vitória de Bolsonaro por si só têm mais a ver com fatores contextuais.

Valor: Como a ascensão do populismo de direita no Brasil se diferencia da Europa e Estados Unidos?

Morgan/Gethin: Apesar de as razões por trás da ascensão do populismo de direita na Europa e EUA ainda estarem sob discussão, estudos mostram que movimentos populistas são frequentemente apoiados por indivíduos de menor renda, instrução ou percepção própria de bem-estar. Uma interpretação possível é que partidos social-democratas abandonaram gradualmente a ideia de igualdade econômica e pleno emprego, priorizando outras questões sociais – como ambiente, igualdade de gênero e direitos LGBT -, perdendo com isso o apoio dos mais pobres. O exato oposto parece ter ocorrido no Brasil, onde o “populismo reacionário” de Bolsonaro encontrou forte apoio entre as classes média e alta, em parte devido às políticas redistributivas do PT. Os movimentos populistas de extrema direita no Brasil, Europa e EUA têm, contudo, semelhanças: tendem a propor uma visão idealizada do passado e um profundo ressentimento com a atual classe política.

Valor: O principal conselheiro econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, estuda mudar a taxação de renda no Brasil para um modelo em que pessoas com rendimento até cinco salários mínimos não pagam nada, mas todas as rendas acima disso pagam apenas 20%. Isso reduziria a tributação para a classe média, mas também para os muito ricos. Que efeito isso teria?

Morgan/Gethin: Pessoas com rendimento de até cinco salários mínimos mal pagam Imposto de Renda hoje. A maior parte é paga pelo top 15% a 1% (aqueles que ganham entre cinco e 50 salários mínimos). Assim, a classe média alta pode acabar pagando mais impostos com a nova reforma. Vai depender muito de como as atuais exceções regressivas para certas categorias de renda (por exemplo, lucros distribuídos e dividendos) serão tratadas. Não está claro se todas as rendas serão fundidas num único inventário pagando 20%. Isso afetaria o aspecto distributivo do imposto, já que o sistema atual é fortemente tendencioso contra a renda do trabalho, enquanto a renda distribuída do capital está sujeita a alíquotas muito menores. De qualquer maneira, sistemas tributários uniformes, como o proposto por Guedes, beneficiam mais os com renda maior. Tal redução adicional na progressividade tributária aumentaria a desigualdade de renda no Brasil. Parte dos dramáticos aumentos na desigualdade de renda que ocorreram nos Estados Unidos e Reino Unido nos últimos 40 anos, especialmente no topo da distribuição, está relacionada precisamente a reduções nas alíquotas marginais. Defensores da tributação reduzida e não progressiva costumam argumentar que menos impostos estimulam o crescimento e eventualmente beneficiam os grupos mais pobres. A trajetória de crescimento dos Estados Unidos desde 1980 é uma indicação clara de que esse efeito cascata é um mito: enquanto os 1% mais ricos ficaram ainda mais ricos, a renda média dos 50% mais pobres literalmente estagnou. A popularidade de Bolsonaro pode aumentar entre as classes média e alta no curto prazo, mas, a menos que o bem-estar material dos pobres continue a melhorar, eles sentirão que os benefícios diretos do corte de impostos para os mais ricos não terão trazido nada.

Valor: O Brasil é frequentemente citado como um exemplo internacional de desigualdade extrema. Quais as perspectivas para o país?

Morgan/Gethin: O Brasil de fato se destaca como um dos países mais desiguais do mundo. Desde 2002, a parcela dos 1% mais ricos na renda nacional tem se mantido acima dos 25%. O dado correspondente equivale a 15% na Alemanha e 11% na França. Hoje, o 1% de brasileiros mais ricos recebem uma fatia da renda nacional duas vezes maior que os 50% mais pobres. O programa econômico do Bolsonaro não contém nenhuma política que poderia contribuir para reduzir essa disparidade. A redução da participação do Estado na economia, o menor poder de barganha dos trabalhadores e o programa de privatizações devem, ao contrário, beneficiar principalmente as classes mais altas.

Valor: É possível adotar políticas econômicas que equilibrem ao mesmo tempo interesses das classes baixas, média e alta?

Morgan/Gethin: Ao essencialmente procurarem estimular o crescimento e melhorar o padrão de vida médio, políticas econômicas sempre criam “vencedores” e “perdedores”. Quem são eles depende crucialmente de quem o governo é eleito para representar e como conflitos distributivos são mediados pelo sistema político. Assim, é importante deixar de lado a ideia de que as políticas econômicas podem ser “ótimas” e beneficiar a todos. Para que a distribuição de renda se torne mais igualitária ao longo do tempo, o crescimento de renda de diferentes grupos precisa ser desigual – rendas menores precisam crescer mais rápido que as maiores. Há políticas públicas que tendem a esse resultado, como aumentos contínuos e significativos do salário mínimo e leis relacionadas ao compartilhamento do lucro corporativo com os trabalhadores. No entanto, embora ganhadores e perdedores relativos sejam mais visíveis no curto prazo, num horizonte mais longo, os efeitos colaterais de uma distribuição mais igualitária – como o aumento da expectativa de vida, melhores serviços públicos, preços mais estáveis – beneficiariam a todos.

11/6/2018 ”Classe média espremida pesou na eleição”