A Berlinale 2019, o Brasil e o ‘marxismo cultural’
Li sem surpresa a notícia de que o diretor-presidente da Petrobras anunciou, seguindo pedido do presidente Jair Bolsonaro, a suspensão do financiamento de cinema e teatro pela empresa, ela que é (ou era) a maior fomentadora de cultura no país. Compreende-se a medida. Dou como exemplo o que está acontecendo aqui na Berlinale, o Festival Internacional de Cinema de Berlim, na sua 69ª edição.
O Brasil costuma ter presença marcante no Festival, que integra o chamado “Trio do Ouro” do cinema europeu, junto com Cannes e Veneza. Dois filmes brasileiros já ganharam o Urso de Ouro, prêmio máximo da Berlinale, para o melhor filme: Central do Brasil, em 1999, e Tropa de Elite 1, em 2010. Filmes brasileiros ganharam o primeiro prêmio em outras modalidades, ou foram destacados com segundos e terceiros lugares: prêmio de votação do público, o Teddy (Ursinho) para filme de temática LGBTI, prêmio da Anistia Internacional, e por aí vai.
Desta vez o Brasil está presente com 12 filmes, entre produções próprias e co-produções com outros países, como França, Alemanha, Cuba, além de alguns mais. São 11 longas e um curta.
Obedecendo à classificação temática e estética que prevalece no governo de Bolsonaro, é tudo “marxismo cultural”, ou seja, lixo. São filmes que, seguindo a forte tradição do cinema brasileiro, abordam temas “detestáveis”, como direitos humanos, meio ambiente, “ideologia de gênero”, temáticas LGBTI, movimento estudantil, situação dos trabalhadores no capitalismo neoliberal, a dura vida dos peões de rodeio, tem até filme sobre guerrilheiro assassinado pela repressão durante a ditadura militar! É o fim da picada!
Como se isso não bastasse, há os protestos durante as sessões: a gente ouve “Lula Livre”, “Marielle presente”, “Anderson presente”, condenações à Lava Jato, protestos perante a passividade do STF, condenações à repressão contra manifestações de estudantes e outras, louvores ao MST etc..
Já não se ouve “Fora Temer!”, porque ele já saiu, mas vez por outra a palavra de ordem aparece nas imagens, bem como o “Volta Dilma”. Um horror, para quem acredita em conspiração do “marxismo cultural” e do “globalismo”, que veio substituir a conspiração “comuno-judaico-maçônica” dos anos 30 do século passado.
Nada, absolutamente nada que agrade Bolsonaro e famiglia, Damares, Araújo, Vélez, Salles, Heleno, Moro ou Onyx “Liquidificador” Lorenzoni. Nem mesmo (o ano de) 64 escapa dos ataques: não se fala em “movimento” não. É golpe mesmo, e ditadura.
A coisa é tão grave que a Embaixada do Brasil em Berlim cancelou, sem qualquer explicação, a tradicional recepção que oferecia a cineastas, atores, atrizes, produtores, jornalistas brasileiros e locais, interessados no nosso país, sem maiores nem menores explicações.
Bom, mas deve-se registrar que toda a Berlinale é puro “marxismo cultural” na veia, segundo esta ótica. São 404 filmes neste ano, exibidos durante os dez dias do Festival, dispersos pela cidade inteira. Não dá pra assistir tudo, mas como as sinopses estão disponíveis, pode-se ver que não há um único que defenda o salvacionismo da civilização cristã-ocidental pregado por Trump, Orban, Salvini et alii e seguido à risca pela “nova” diplomacia brasileira.
Dentre as inúmeras opções, hoje destaco dois documentários excepcionais na forma e no conteúdo, cada um dentro do seu estilo.
O primeiro é Espero tua (re)volta, dirigido por Eliza Capai, que faz o levantamento das manifestações estudantis em São Paulo quando da tentativa de reestrutruração do sistema escolar do estado pelo governo Alckmin. Com uma linguagem extremamente inovadora, entre vaivéns no tempo e no espaço, o filme historia o processo que levou à ocupação de 200 escolas no estado, do Centro Paula Souza e da Assembleia Legislativa pelos estudantes, bem como a repressão violenta pela polícia e pelas autoridades.
Um golaço cinematográfico. Estreou no auditório da Casa das Culturas do Mundo, que abriga 1.250 assentos e estava completamente lotado. O filme e a equipe presente foram aplaudidos de pé, ao final, numa consagração ímpar perante o exigente público que comparece às sessões.
O outro é Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, sobre a cidade de Toritama, no Agreste Pernambucano. Numa linguagem muito delicada, o documentário mistura uma aura de memória do diretor, que nasceu na região, com a observação do dia-a-dia atual na cidade, que se transformou na “capital do jeans” no Brasil, num processo de 20 anos.
Neste vaivém temporal, o diretor explora as condições de trabalho reviradas pela introdução das práticas neoliberais na vida dos trabalhadores. Estes e estas almejam ter seu próprio negócio e, para tanto, se esfalfam num cotidiano absolutamente estafante.
O ponto máximo desta estafa é demonstrado por uma das senhoras costureiras, dona de seu negócio (no jargão local chama-se “fração”), que diz levantar-se às seis da manhã para trabalhar; ao meio dia interrompe o trabalho para o almoço. Às 13h, volta ao trabalho e vai até as 6 da tarde, quando volta para casa e faz o jantar. Retorna ao trabalho até as 10 da noite, quando vai dormir direto.
Esta rotina segue por seis dias da semana. Domingo não é dia de folga, é dia de ir à feira vender a produção excedente a viajantes e turistas que ali vêm. O filme tem um autêntico “corifeu”, o Leo, que define o seu fio narrativo com sua verve de filósofo do sertão.
No debate, o diretor Marcelo Gomes deu uma definição magistral do que acontece nestas circunstâncias: ao tornar-se “autônomo, mas aprisionado pela ideologia do mercado, o trabalhador torna-se “o escravo de si mesmo”, numa inversão dolorosa da conhecida “dialética do senhor e do escravo”, de Hegel. Amo e escravo se confundem num único corpo que aliena completamente a percepção do seu tempo de vida, em que o tempo do descanso torna-se apenas o intervalo entre os momentos de trabalho e alienação.
Como se vê por estes dois exemplo (outros serão comentados oportunamente), nada há que possa agradar aos que se pretendem os novos donos do tempo brasileiro.
Fonte: Rede Brasil Atual