Vale: uma empresa financeirizada
A empresa apresentou uma elevada rentabilidade na última década, sobretudo pela recuperação do preço do minério de ferro em decorrência do bom desempenho do setor siderúrgico chinês, puxado pelos setores de bens de capital, construção civil e infraestrutura, doméstica e externa, incluindo os projetos da iniciativa “one belt and one road” [um cinturão e uma estrada]. No período de 2008 a 2017, a Vale acumulou um lucro aproximado de US$ 57 bilhões, apesar do estrondoso prejuízo de 2015 de US$ 14 bilhões. Só no biênio 2016-2017 foram mais de US$ 9 bilhões de lucro. No acumulado dos três primeiros trimestres de 2018, o lucro líquido atingiu US$ 3 bilhões.
A comparação com uma amostra de 230 grandes empresas de capital aberto de 35 setores de atividades, doravante denominada de Amostra de Empresas, copiladas pelo Instituto Assaf,[3] a partir de dados da CVM, corrobora o argumento da elevada lucratividade da empresa. Os resultados só foram negativos no período 2013-2015, em função da queda no preço do minério de ferro, principal produto da empesa, mas teve forte recuperação em 2016-2017 (gráfico 1).
Gráfico 1. Margem líquida de Vendas (em %) – 2000 a 2017
Fonte: Instituto Assaf. Elaboração do autor.
(*) inclui as empresas Miner, MMX e CCX com menos de 0,1% das vendas do setor.
Apesar da Vale atuar em setores bastante intensivos em capital – mineração, metalurgia, energia e logística –, que exigem uma grande imobilização de capital (próprio e de terceiros), dados os elevados lucros obtidos, tem sido possível um retorno expressivo sobre o capital próprio. O retorno sobre o patrimônio líquido (ROE) tem sido superior ao dos demais setores da Amostra de Empresas, excluindo-se o período 2012-2015 de baixa lucratividade (gráfico 2). Na média do período 2001-2017, o ROE da Vale foi de 17,1%, (20,2% se desconsideramos o ano atípico de 2015) contra 9,9% da Amostra de Empresas.
Gráfico 2. Retorno sobre o Patrimônio Líquido – ROE
Fonte: Instituto Assaf. Elaboração do autor.
(*) inclui as empresas Miner, MMX e CCX com menos de 0,1% das vendas.
Os dados de distribuição do valor adicionado da Vale e da Amostra de Empresas comprovam a adoção de uma estratégia agressiva de maximização do valor de seus acionistas (MVA). Em 2017, a Vale destinou 33% do seu valor adicionado para os acionistas e 21% para impostos, taxas e contribuições (governo). A título de comparação, se consideramos a Amostra de Empresas essa distribuição foi de 10% para acionistas e 42% para governo (quadro 1). Embora seja uma empresa privatizada em maio de 1997, no governo FHC, com atividades concentradas na área extrativa, a Vale usufrui de elevados incentivos fiscais por sua atuação no Norte e Centro-Oeste do Brasil. E também usufrui de um elevado benefício tributário pelo abatimento dos juros sobre o capital próprio do lucro tributável. Embora esse benefício tributário se aplique a todas as empresas, ele é proporcionalmente maior para as companhias com elevados lucros tributáveis. A título de ilustração, a Vale teve um benefício tributário sobre os juros sobre o capital próprio de R$ 2,3 bilhões em 2017. Somados aos incentivos fiscais de R$ 1,2 bilhão e a outros benefícios, o tributo sobre o lucro foi reduzido de R$ 8,4 bilhões para R$ 4,6 bilhões.
Quadro 1. Distribuição do Valor Agregado – Amostra de Empresas de Capital Aberto e Vale
Dentro de sua estratégia de MVA, a Vale adota uma política bastante favorável de distribuição de dividendos e, mais recentemente, de recompra de ações. A empresa distribuiu em termos nominais US$ 37,6 bilhões em dividendos para seus acionistas, majoritariamente na forma de juros sobre o capital próprio, no período 2008-2017, o que correspondeu a aproximadamente 66% do lucro líquido acumulado no período. Cabe destacar que o limite mínimo obrigatório a ser distribuído é de 25%, conforme aponta o Formulário de Referência 2018 da empresa: “de acordo com o artigo 38 do Estatuto Social da Vale, pelo menos 25% dos lucros líquidos anuais, ajustados na forma da lei, serão destinados ao pagamento de dividendos”. Para 2018, a empresa anunciou uma distribuição de dividendos da ordem de US$ 2,1 bilhões (R$ 7,7 bilhões) e a recompra de ações no montante de US$ 270 milhões (R$ 1 bilhão).
O indicador de endividamento total (relação entre a dívida total e o patrimônio líquido) da Vale foi inferior ao da Amostra de Empresas ao longo dos anos 2000. Entretanto, no período 2010-2016, a empresa aumentou seu endividamento de forma expressiva. Sua dívida líquida saltou de US$ 16 bilhões em 2010 para US$ 25 bilhões em 2016. O indicador de endividamento total atingiu o patamar de 1,55 em 2015, ano em que a empresa teve elevado prejuízo operacional e financeiro (gráfico 3). Desde então, a companhia vem adotando uma agressiva política de desalavancagem financeira. A dívida líquida da Vale foi reduzida para US$ 18,1 bilhões em dezembro de 2017 e para US$ 10,7 bilhões no terceiro trimestre de 2018 (a dívida bruta caiu de US$ 29,3 bilhões em 2016 para US$ 22,5 bilhões em 2017 e US$ 16,8 bilhões em 2018); ou seja, uma amortização de mais de US$ 14 bilhões em menos de dois anos (gráfico 4). Essa estratégia, como veremos, teve forte impacto sobre os investimentos, uma vez que não foi anunciada e/ou programada uma redução na distribuição de dividendos.
Gráfico 3. Endividamento Total – Dívida total / Patrimônio líquido
Fonte: Instituto Assaf. Elaboração do autor.
(*) inclui as empresas Miner, MMX e CCX com menos de 0,1% das vendas.
Gráfico 4. Evolução da Dívida líquida e bruta (em US$ milhões)
Fonte. Vale. Elaboração do autor.
A redução do grau de alavancagem e a forte geração de caixa, no período recente, tem permitido uma melhora sensível na relação entre os encargos financeiros e a receita líquida, que foi crescente no período 2003-2014. O indicador teve um aumento exponencial em 2015, diante da queda nas receitas líquidas, o que contribuiu para a geração de um elevado prejuízo. No biênio 2016-2017, observa-se uma expressiva melhora no indicador, fruto do processo de redução da alavancagem e de expansão da receita líquida (gráfico 5). Ainda assim, como analisado anteriormente, em 2017, em função da ainda elevada alavancagem financeira, a Vale pagou proporcionalmente mais juros que a média das empresas: 28% contra 23% do valor adicionado. Importante destacar que os credores da Vale ficaram com uma parcela do valor adicionado superior à parcela dos empregados (14,5%) e do governo (21%), só perdendo para os acionistas 33%.
Gráfico 5. Relação Despesas financeiras e Receita líquida (em %)
Fonte: Instituto Assaf. Elaboração do autor.
(*) inclui as empresas Miner, MMX e CCX com menos de 0,1% das vendas.
As estratégias de MVA e de desalavancagem financeira têm reduzido os investimentos totais e, sobretudo, em novos projetos. O patamar anual de investimento de US$ 3,8 bilhões em 2017 e de mesmo valor projetado para 2018 foi bem inferior ao patamar médio do período 2010-2014 de US$ 14 bilhões e de anos mais recentes (US$ 5,2 bilhões em 2016 e US$ 8,4 bilhões em 2015) (gráfico 6). Outra tendência importante é que os investimentos em manutenção das operações, também em queda desde 2014, excederam os novos projetos de expansão em 2017 (52% contra 48%) e em 2018 (76% contra 24%, no acumulado nos três primeiros semestres). Para 2018 foram projetados e aprovados investimentos de apenas US$ 972 milhões para novos projetos e de US$ 2,87 bilhões para manutenção de operações. A relação investimento / receita líquida (intensidade de Capex) também se reduziu no período recente (gráfico 6).
Gráfico 6. Investimento por modalidade (em US$ milhões) e Intensidade do Capex (em %)
Fonte: Vale. Elaboração do autor.
(*) acumulado nos três primeiros trimestres.
Os investimentos de manutenção de operações foram reduzidos sistematicamente no período 2014-2017: US$ 4 bilhões em 2014, US$ 2,8 bilhões em 2015, US$ 2,3 bilhões em 2016 e US$ 2,2 bilhões em 2017 (tabela 1). Quando esses investimentos são desagregados, observa-se que os gastos em “pilhas e barragens de rejeitos” foram reduzidos pela metade entre 2014 e 2017 (US$ 474 milhões para US$ 202 milhões). O mesmo ocorreu com os gastos em “saúde e segurança” (US$ 359 milhões para US$ 207 milhões). Apenas os investimentos nas áreas “social e proteção ambiental” mantiveram-se relativamente constantes no patamar de US$ 250 milhões, apesar da terrível tragédia humana e ambiental do rompimento da barragem de Mariana em novembro de 2015. Fica evidente que a nova tragédia de Brumadinho poderia ter sido evitada e/ou seus impactos minimizados, poupando dezenas de vidas, se maiores investimentos em manutenção e segurança das barragens de rejeitos tivessem sido realizados.
Além de acesso a financiamento externo, a Vale contou com financiamento público doméstico. A empresa foi a quarta maior tomadora de empréstimos junto ao BNDES no período 2007-2018, mesmo não tendo tomado nenhum novo empréstimo no período mais recente de 2016-2018. No total, a Vale contratou empréstimos no montante de R$ 22,5 bilhões (US$ 11,2 bilhões). Os maiores projetos financiados foram a modernização do complexo produtivo de Itabira, a implantação de unidade de extração de minério de ferro em Canaã dos Carajás e a construção do ramal ferroviário no sudeste do Pará.[4]
Tabela 1. Investimento em Manutenção por Modalidade
É notório o impacto negativo da estratégia de MVA sobre os investimentos. Se considerarmos o acumulado do período 2008-2017, o volume de investimentos (expansão, aquisição e manutenção) foi de US$ 42,5 bilhões. Se a política de distribuição de dividendos tivesse sido conservadora no patamar mínimo de 25%, a empresa teria um volume adicional de recursos próprios de US$ 28 bilhões, suficientes para expandir em dois terços o montante de investimento realizado.
Os impactos negativos da estratégia agressiva de MVA também podem ser constatados nas atividades inovativas. Revertendo uma estratégia de reforço dessas atividades adotadas na primeira década dos anos 2000, a Vale tem reduzido seus gastos em P&D no período recente. Segundo dados da Industrial R&D Investment Scoreboard (IRI) da União Europeia, no quinquênio 2008-2012, a média anual de gastos em P&D da Vale foi de US$ 1,2 bilhão, que se reduziu à metade no quadriênio 2013-2016 (US$ 600 milhões). Como analisado, essa queda nos gastos em P&D não pode ser atribuída apenas à queda de receita e de rentabilidade no período 2013-2015. Até porque o indicador de intensidade tecnológica, dado pela relação entre os gastos em P&D e a receita líquida, reduziu de um patamar médio de 3% no período 2008-2012 para 1,7% em 2013-2016, ou seja, a redução nos gastos em P&D foi proporcionalmente muito maior (gráfico 7). Cabe destacar que com as sucessivas reduções, o indicador de intensidade tecnológica em 2016 regrediu ao patamar de dez anos atrás (2005).
Gráfico 7. Vale: Gastos em P&D (em US$ milhões de Euro) e Intensidade Tecnológica (em %)
Fonte IRI- Comissão Europeia. Elaboração do autor.
O fato de a remuneração do pessoal ser responsável por apenas 15% do valor adicionado da empresa pode ser parcialmente explicado pela sua atuação em um setor capital-intensivo, enquanto para a Amostra de Empresas a participação eleva-se para 25%. Mas a forte discrepância entre os baixos salários de chão-de-fábrica e as elevadas remunerações da alta gerência também explica essa distorção.
A adoção da estratégia de MVA pressupõe a adesão ou cooptação da alta direção da empresa. Além dos salários, os benefícios de participação no lucro, remuneração com ações (stock options) e outras vantagens financeiras permitem elevadas remunerações.[5] A remuneração anual do presidente da Vale foi de R$ 19 milhões em 2017. O ex-presidente recebeu entre remuneração e indenização R$ 58,5 milhões. A média salarial da diretoria foi de R$ 12,4 milhões. O quadro abaixo compara a remuneração dos diretores e presidente com outros cargos administrativos e operacionais. A título de ilustração, a relação entre a remuneração média da diretoria e do menor salário administrativo foi de 630 vezes e em relação ao salário de um engenheiro da empresa de 100 vezes.
Quadro 2. Vale: Comparação das Remunerações da Diretoria e Empregados
A remuneração variável dos diretores, que representa quase 75% da remuneração total, está em grande medida associada à evolução do preço das ações. Por sua vez, a precificação das ações pelos agentes do mercado financeiro está associada aos resultados financeiros da empresa e à adoção da estratégia de MVA. Portanto, a junção de interesses de diretores e acionistas (e credores) reforçam a adoção da estratégia de MVA e de suas remunerações, em detrimento dos interesses dos demais atores (funcionários, fornecedores e governo) e da sociedade em geral. A tabela 2 permite observar a expressiva valorização das ações da Vale desde sua privatização: suas ações se valorizaram dez vezes mais que a média das demais ações do Ibovespa. No período 2016-2018, as ações da Vale quase quadruplicaram de valor, enquanto o índice Bovespa duplicou. Os ganhos recentes com as ações da Vale (no período 2016-2018) mais que compensaram as perdas do período 2011-2015. Os acionistas e gestores da Vale, remunerados em ações, agradecem.
Tabela 2. Variação do Valor das Ações da Vale e do Ibovespa (em %)
Comentários finais
Uma empresa que tem a oportunidade e a concessão de explorar as riquezas minerais de um país deveria contribuir para o seu desenvolvimento econômico, regional e social juntamente com sua estratégia de crescimento, acumulação e de remuneração de seus acionistas. Esse desenvolvimento deveria vir da geração de empregos e de renda, de encadeamentos produtivos e tecnológicos, da transferência à sociedade de renda excedente, na forma de pagamento de tributos superiores aos das demais atividades econômicas produtivas e da realização dos investimentos, inclusive em segurança e proteção ambiental. Ao adotar uma estratégia agressiva de maximização do valor de seus acionistas, que compromete e/ou limita seus investimentos e que reduz as transferências de renda à sociedade, a Vale deixa de contribuir para o desenvolvimento do país e se limita ao enriquecimento de seus acionistas e gestores.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp; e Fernando Sarti é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (Neit).
[1] A Vale tinha um montante de US$ 37,4 bilhões de ativos no exterior em 2016, o que corresponde a 37,7% dos seus ativos totais. O exterior ainda é responsável por 92,5% das vendas, com destaque para as vendas para a China; e por 21,3% do emprego total. Ver a respeito Unctad – World Investment Report 2018. Investment and New Industrial Policies.
[2] Segundo o departamento de relações com os investidores da Vale, a composição acionária em 28 de dezembro de 2018 era: investidores estrangeiros (47,74%), investidores nacionais (13,24%), ações vinculadas ao Acordo até 2020 (20,28%) e ações não vinculadas ao acordo (18,75%). O acordo de acionistas está associado à incorporação da Valepar em agosto de 2017. Segundo informações do relatório de Demonstrações Financeiras da Vale, “os acionistas anteriormente controladores da Valepar celebraram um novo acordo de acionistas (‘Acordo Vale’) que vincula somente 20% do seu total de ações ordinárias emitidas pela Vale, e terá vigência até 9 de novembro de 2020, sem previsão de renovação”.
[3] Instituto Assaf. Finanças Corporativas e Valor no Brasil.
[4] Ver a respeito: BNDES. Quem são os nossos 50 maiores tomadores de recursos. www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/consulta-operacoes-bndes/maiores-clientes.
[5] O Formulário de Referências da Vale S.A. tem uma descrição bastante detalhada da política ou prática de remuneração da diretoria estatutária. A remuneração fixa representou apenas 27% da remuneração total em 2018, o restante foi remuneração variável de curto-prazo (28%) e de longo prazo baseada em ações (46%), ou seja, “73% da remuneração da diretoria executiva está diretamente associada ao retorno aos acionistas”. Ainda segundo a empresa o “objetivo principal é incentivar o ‘sentimento de dono’, alinhando os esforços dos gestores aos interesses dos acionistas” (grifo nosso) (p.432-433).
Fonte: Oberservatório da Democracia
Publicado originalmente no Observatório da Economia Contemporânea