Proposta de combate ao “crime” de Moro criminaliza a mulher
Na história do Judiciário, é razoavelmente ampla a lista de processos que, por sua peculiaridade, serviram como fonte para mudança de posicionamento ou de interpretação das leis.
O caso Doca Street pode ser alocado como um desses processos paradigmáticos, mormente por ter funcionado como fonte de amplo debate sobre a legitimidade da paixão como justificativa para o homicídio.
Aconteceu no final do ano de 1976. Inconformado com o término da relação, o empresário Doca Street desferiu quatro tiros em sua mulher, três no rosto e um na nuca, ferindo de morte a socialite Ângela Diniz.
Após um primeiro julgamento amplamente favorável ao empresário, a Justiça determinou um novo júri, oportunidade em que a paixão foi lançada ao banco dos réus juntamente com Doca Street, servindo-se a acusação do slogan “quem ama não mata”, cunhado pelos movimentos feministas da época.
A pesada condenação de Doca Street no segundo julgamento serviu como mote para o enfraquecimento do uso da paixão como argumento de defesa em casos equivalentes, em que o homicídio estaria vinculado a sentimentos próprios ao ciúme.
Mais do que a interpretação de uma tese jurídica, o caso Doca Street funcionou como vetor para a otimização da legislação pátria no que tange a busca de instrumentos para a proteção da mulher em uma sociedade historicamente marcada por razões (e emoções) de índole eminentemente machistas.
Apenas como exemplo, no ano de 1988, ainda sob o eco dos tiros que atingiram Ângela Diniz, foi promulgada a atual Constituição Federal, que determinou a paridade de direitos e tratamento igualitário entre homens e mulheres, bem como o exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal em igualdade de condições (artigo 5º, caput; e artigo 226, parágrafo 5º, da CF/88)[1].
A simples menção à isonomia entre os sexos pela Constituição não garantiu, no entanto, uma mudança de comportamento da sociedade num plano geral, fato este que demandou o incremento de normas como a Lei Maria da Penha, responsável pela oferta de instrumentos voltados ao reforço da proteção da mulher perante parceiros abusivos, como as medidas protetivas de afastamento do agressor do lar e proibição de realização de contato com a vítima (artigo 22, inciso II e inciso III, “a”, da Lei 11.340/2006).
Já no ano de 2015, criou-se a figura do feminicídio, prevista no artigo 121, parágrafo 2º, inciso VI, do Código Penal, que passou a punir de forma qualificada as hipóteses de homicídio praticado contra a mulher por razões ligadas à condição de sexo feminino.
A análise objetiva dos eventos acima destacados indica a existência de uma clara evolução do pensamento jurídico pátrio, no sentido da necessidade da criação de soluções voltadas à proteção da mulher na sociedade como um todo e, principalmente, no âmbito das relações afetivas.
Essa diretiva se encontra, atualmente, ameaçada por meio do pacote “anticrime” elaborado pelo Ministério da Justiça, concentrando-se o retrocesso na pretendida alteração do artigo 23 do Código Penal, que prevê atualmente o rol de excludentes da ilicitude, como o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito.
A alteração proposta, indicada como “medidas relacionadas à legitima defesa”, pretende acrescentar dois parágrafos ao citado artigo, o primeiro para firmar a responsabilização do agente por eventual excesso doloso ou culposo, posição esta anulada pelo parágrafo subsequente, para o qual se pretende a seguinte redação: “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Basta um mínimo de experiência na rotina do tribunal do júri para compreender que o acatamento à proposta do pacote “anticrime” possui uma capacidade perturbadora de funcionar ao contrário, ou seja, de servir como fomento ao crime por meio da difusão da ideia da impunidade aos homicídios de índole passional, em regra praticados contra mulheres.
Ora, a associação entre o conceito de paixão e a violenta emoção citada no projeto de lei que perfaz o objeto da presente crítica é algo que dispensa maiores elucubrações. Trata-se de termos inequivocamente vinculados, remissivos, tudo a permitir o resgate da potencialidade discursiva da paixão como justificativa (a ser legitimada por lei) para matar.
É certo que o projeto “anticrime” pretende vincular o uso da paixão (ou violenta emoção) para fins absolutórios à hipótese da legítima defesa, o que não impede, em absoluto, o seu uso como justificativa para homicídios passionais sob o manto da legítima defesa da honra, discurso apto a ser adotado por todo aquele que venha a retirar a vida de sua parceira ao ser tomado de violenta emoção decorrente de uma paixão não correspondida.
A propósito, é bom lembrar que a brilhante defesa desenvolvida pelo saudoso Evandro Lins e Silva no primeiro julgamento favorável a Doca Street pugnava, exatamente, pelo reconhecimento da paixão como fator condicionante da legítima defesa da honra com excesso culposo.
Ao permitir a possibilidade do afastamento da punição até mesmo pelo excesso sustentado por Evandro Lins e Silva no caso que defendera, o projeto “anticrime” regride muito mais do que 40 anos, equiparando-se ao quanto previsto no título 38, n.º 1, das Ordenações Filipinas que vigoraram no Brasil de 1603 até 1830 (!), donde se extrai a previsão de um direito de matar a ser desempenhado pelo marido contra a mulher que viesse a cometer adultério.
Trata-se de um retrocesso considerável, sendo possível afirmar que o projeto “anticrime” apresenta um potencial tão lesivo à luta pelo reconhecimento e preservação da dignidade das mulheres quanto os quatro tiros recebidos por Ângela Diniz naquela triste noite de dezembro de 1976.
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Referências bibliográficas
ELUF. Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus. 2009. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
Ministério da Justiça. Projeto de Lei. Brasília (DF), 2019 [acesso em 26.fev.2019]. Disponível em: http://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1550594052.63/pl-mjsp-medidas-contra-corrupcao-crime-organizado.pdf.
NNDM – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Carta das mulheres brasileiras aos constituintes. Brasília (DF): Ministério da Justiça, 1986 [acesso em 26.fev.2019]. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/a-constituinte-e-as-mulheres/arquivos/Constituinte 1987-1988-Carta das Mulheres aos Constituintes.pdf
[1] O marco para a constitucionalização dos direitos das mulheres se deu na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, documento elaborado no ano de 1986 pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).
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Douglas Lima Goulart é sócio do Lima Goulart e Lagonegro – Advocacia Criminal.
Rinaldo Pignatari Lagonegro Jr. é sócio do Lima Goulart e Lagonegro – Advocacia Criminal.
Publicado originalmente no Conjur