A previdência social, o consumo das famílias e a equidade
A reforma da Previdência proposta pelo governo trata como privilégio a aposentadoria ou pensão dos que a conquistaram com o suor de seu trabalho – para a maioria dos brasileiros pesado, árduo, muitas vezes incapacitante. Só assim se compreende a divulgação da reforma com acento apenas em seu aspecto contábil, ou seu impacto no déficit público: economizar R$ 1 trilhão em dez anos. A imprensa vem aos poucos trazendo a lume os meandros do projeto, seus muitos “sacos de maldades”, como gostam de dizer os economistas, num importante trabalho de informação e esclarecimento da população e, espero, dos políticos que votarão a reforma. Gostaria de trazer contribuição original a esse debate, apresentando alguns números até aqui ausentes das discussões.
Segundo dados da Pnad Contínua Anual de 2017, 14,1% da população brasileira recebiam algum tipo de aposentadoria ou pensão, num total de R$ 51 bilhões, pagos a cerca de 29 milhões de pessoas todo mês. Destas, 12,5 milhões eram homens e 16,6 milhões mulheres. A aposentadoria (ou pensão) média foi de R$ 1.932 para os homens e R$ 1.600 para as mulheres, a preços de 2017. Apenas 18% dessas pessoas tinham uma ocupação remunerada além da aposentadoria, majoritariamente como trabalhadores/as por conta própria. Ou seja, mais de 80% tinham na aposentadoria a única fonte de renda. Mais ainda: 45% dos segurados recebiam exatamente o salário mínimo (R$ 937 em 2017) (44% dos homens e 51% das mulheres); entre os mais pobres (8% que recebiam menos de um salário mínimo), as mulheres eram maioria (60%), e entre os 5% mais ricos, 53% eram homens.
O ministro da Economia, Paulo Guedes , durante a cerimônia de transmissão do cargo do novo presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes.
Naquele ano de 2017, 62 milhões de pessoas viviam em famílias com ao menos um membro aposentado/a ou pensionista, sendo que 10 milhões viviam em famílias nas quais a aposentadoria ou pensão era a única renda disponível. E 30 milhões de pessoas viviam em famílias nas quais 50% ou mais da renda familiar provinham de aposentadoria ou pensão.
Engana-se quem imagina que esta é uma realidade do mundo rural. Na verdade, 82% dessas pessoas (com pelo menos 50% da renda familiar provenientes de aposentadoria ou pensão) viviam nas cidades, e nada menos do que 41% estavam na Região Sudeste (19% no estado de São Paulo, 10% no do Rio de Janeiro), contra 30% vivendo no Nordeste e 16% na Região Sul.
Por fim, o dado mais relevante: quase 60% das famílias nas quais 50% ou mais da renda familiar eram provenientes da aposentadoria de um ou mais de seus membros (abrigando 16 milhões de pessoas), tinham renda familiar per capita de 1 salário mínimo ou menos, e 32% dessas famílias (abrigando 9 milhões de pessoas) tinham renda familiar per capita de meio salário mínimo ou menos.
Esses dados deixam claro que parcela expressiva da população depende inteiramente (ou centralmente) dessa fonte de renda para sua sobrevivência. Ou seja, o consumo cotidiano dessas famílias depende dessa fonte de renda. Famílias com dependência de aposentadorias ou pensões com renda familiar per capita de 1 salário mínimo ou menos muito provavelmente gastam todo o seu dinheiro com despesas obrigatórias: alimentação, moradia, habitação, saúde, educação dos filhos. Para a maioria não sobra nada ou quase nada para outras despesas. Esse não é um mundo de privilégios. É um mundo de necessidades vitais.
Quando Paulo Guedes diz que precisa economizar R$ 1 trilhão em dez anos, o valor mágico é apresentado como simples operação contábil. Nem ele nem ninguém até aqui mencionou o fato de que, o que é apresentado como “economia” para o governo, na verdade representará um enxugamento brutal de recursos hoje disponíveis para o consumo das famílias. E para proporção expressiva destas, o único recurso disponível. É claro que isso terá impacto direto no mercado interno, com redução do potencial de crescimento econômico e de geração de empregos no médio e no longo prazos.
Em tempo: aposentados e pensionistas que figuravam entre os 5% mais “ricos” se apropriavam de 25% dos valores pagos em 2017. Se a essas pessoas fosse aplicado o teto do INSS (R$ 5.531 naquele ano), haveria uma “economia” mensal de R$ 100 bilhões, ou R$ 1,2 trilhão em dez anos, segundo a mesma Pnad Contínua. Qualquer governo que visse na reforma a chance de tornar o sistema brasileiro mais equitativo enfrentaria o problema dos altos rendimentos, propondo soluções que não punissem os mais pobres, maioria da população e também dos segurados. A proposta atual, ao contrário, implica em sua punição brutal e desumana, como vêm mostrando as análises sobre as regras de transição, as chances escassas de acesso ao benefício no futuro e a tendência de transformar o salário mínimo no teto do INSS.
*Adalberto Cardoso é professor do IESP-UERJ.
Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil