A crise da Boeing e a criminosa entrega da Embraer
Não existe caso de outro modelo de avião comercial de passageiros em fabricação que tenha tido dois acidentes fatais em tão curto espaço de tempo. E acidentes causados por falhas no projeto da própria aeronave, como está claro para todos que acompanham as notícias referentes ao assunto.
Dois acidentes com muitas semelhanças: ocorridos poucos minutos após a decolagem, com aviões novinhos em folha, tripulações experientes, levando a trágica morte de 346 pessoas e causados por problemas nos sistemas do novo jato narrow-body (corredor único), que obteve as maiores e mais rápidas vendas da história da Boeing.
O 737 Max é a última geração da extremamente bem-sucedida família 737, com 10.463 aviões fabricados até janeiro de 2019.
Para se ter uma ideia da importância desse modelo para a Boeing basta observarmos que, desde seu primeiro jato comercial, o clássico quadrimotor 707 projetado no final dos anos 50, até janeiro de 2019, a Boeing Commercial Airplane fabricou 19.564 aeronaves, com as famílias do 737 respondendo por 53,4% desse total.
E essa importância é ainda maior para o futuro da empresa norte americana. No final de janeiro de 2019 a Boeing tinha em sua carteira de pedidos firmes um total de 5.948 jatos comerciais. Desse total 4.611 eram 737 Max.
O modelo 747-8 tem apenas 24 encomendas e os outros wide-bodys (dois corredores) de grande sucesso 787, 777 e 777 X (cujo lançamento a Boeing adiou por conta dos problemas com o 737 Max) tem pedidos, respectivamente, 632, 103 e 326 aviões.
De cada 5 aviões da Boeing encomendados nada menos que 4 são 737 Max.
A empresa pretendia no decorrer de 2019 atingir o ritmo de fabricar 57 737 Max por mês – 684 aviões em 12 meses – em sua fábrica em Renton, no Estado de Washington, chegando num futuro próximo a 63 aviões mensalmente (756 por ano).
Em 2018 a Boeing bateu seu recorde, com 806 aviões comerciais entregues. Destes 580 foram 737, das versões Max e NG (em fase de encerramento de produção, com suas últimas entregas). Sem o 737 a gigante fica bem menor.
No desenvolvimento do 787 a Boeing já havia enfrentado problemas com as baterias de lítio, causando atrasos no programa e prejuízos aos operadores, mas nada comparado ao que ocorre agora.
O estrago na reputação da empresa é imenso, com risco de jogar no ralo a própria credibilidade da FAA, a Agência Federal de Aviação dos EUA.
No insuspeito jornal The Seattle Times, do estado de Washington, onde fica sediada a Boeing, de 17 de março, o jornalista especializado em aviação, Dominic Gates, publicou uma matéria bombástica onde relata que, em 2015, quando a Boeing corria atrás da Airbus, que lançava a família A320Neo, a diretoria da FAA pressionou seus técnicos para que estes passassem para a própria Boeing a análise necessária para a certificação do 737 Max, para que esse modelo entrasse o mais rapidamente em operação.
Nunca o próprio fabricante foi responsável por atestar a segurança e as capacidades operacionais de seu próprio produto. Ao menos não com conhecimento público, pois isso constitui um escândalo de proporções globais.
E assim foi feito, com a FAA certificando o 737 Max em 8 de março de 2017 e o modelo entrando em operação com passageiros já no final de maio daquele ano, através da Malindo Air, subsidiária da Lion Air.
Os novos motores do 737 Max, CFM International Leap-1B, são bem maiores que os das versões anteriores de 737, o que exigiu uma asa inteiramente nova e um modo de acoplar as turbinas diferente, que altera a estabilidade de vôo.
A Boeing então desenvolveu o novo sistema de navegação MCAS (Maneuvering Characteristics Augmentation System) que está na causa dos dois acidentes. Esse sistema não foi devidamente testado pela pressa irresponsável da Boeing e da FAA.
Antes do acidente da Ethiopian Airlines diversos pilotos de empresas aéreas norte americanas relataram problemas graves com o MCAS e as autoridades da FAA e a Boeing nada fizeram. Isso vai ter um custo enorme.
Hoje todos os mais de 350 737 Max entregues para as companhias aéreas estão fora de operação, por medidas de segurança.
Cada dia de um avião fora de operação tem um custo para as empresas operadoras, que precisam readequar sua malha com outros aviões, causando grandes transtornos no seu planejamento. Os prejuízos com o prolongamento do período de proibição de operar com os 737 Max vai ter de ser coberto pela fabricante.
As ações da Boeing na Bolsa de Nova York na semana passada já indicavam uma queda de cerca de 30 bilhões de dólares no valor da empresa.
Em meio a tudo isso a manutenção da venda da Embraer para essa mesma Boeing chega a ser criminosa sob a ótica dos interesses do Brasil.
Como afirmamos que ocorreria, em artigo anterior, a carteira de pedidos firmes (backlog) da Embraer teve um crescimento expressivo no último trimestre de 2018, passando de US$ 13,6 para US$ 16,3 bilhões, o que representa quase o quádruplo do valor pelo qual a empresa está sendo entregue (4,2 bilhões).
Desse backlog 9,7 bilhões (59,5%) vem diretamente da aviação comercial e 1,9 bi (11,6%) dos serviços e suportes pós-venda, que é em sua maior parte decorrente da manutenção dos aviões comerciais.
Defesa e segurança representam 3,9 bilhões (23,9%) com as Forças Armadas brasileiras como principal cliente, enquanto a aviação executiva, que vai permanecer no que restar da Embraer, tem apenas US$ 800 milhões de pedidos firmes (menos de 5% do backlog total).
Lembrando que a Boeing está comprando inicialmente 80% da aviação comercial da Embraer e ainda vai ficar com 49% do projeto do super cargueiro militar KC-390 pela bagatela de 4,2 bilhões de dólares que vão direto para as contas dos atuais acionistas da Embraer. Ainda tem a opção de comprar os 20% restantes da aviação comercial no futuro.
A Embraer sequer vai ter assento assegurado no conselho ou no board da nova empresa de aviação comercial, enquanto a Boeing terá a diretoria financeira na joint venture do KC 390.
É tão desvantajoso para o interesse nacional que o atual diretor financeiro da Embraer, ávido pela aprovação da venda sabe-se lá por quais interesses, omitiu uma série de informações da CVM, que teve mais rigor que o Governo, mesmo sendo este detentor das golden shares pela posição estratégica que a Embraer tem para o país e pelo tanto que o Estado Brasileiro investiu na empresa desde sua criação.
Entregar a Embraer é um despropósito em qualquer circunstância – já que se trata da maior empresa brasileira exportadora de alta tecnologia – e fazer isso agora, para a Boeing, com as incertezas por que passa a empresa norte americana, é mais absurdo ainda.