Comunicação pública, mais um tiro na democracia, alvejada sem resistência
Uma das primeiras medidas do governo golpista ao tomar o poder em 2016 foi a de acabar com a comunicação pública no Brasil. Através de medida provisória, transformou a EBC em empresa estatal extinguindo para isso o seu Conselho Curador, órgão máximo da empresa, formado por 22 pessoas, sendo 15 indicadas pela sociedade, quatro representantes do governo federal, um da Câmara dos Deputados, um do Senado e um dos funcionários.
A composição do Conselho respeitava critérios geográficos e sociais trazendo para o interior da empresa e para suas políticas editoriais as experiências, reflexões e expectativas de amplos setores da sociedade brasileira.
Com o atual governo, o processo de desmonte foi institucionalizado. Ao arrepio da Constituição, que prevê a “complementaridade dos sistemas público, privado e estatal”, o presidente da EBC publicou portaria fundindo em uma só as TVs Brasil (pública) e a NBR (estatal). Esta última difere da pública por ser dirigida exclusivamente pelo poder governamental, sem nenhuma mediação da sociedade.
Ao mesmo tempo foi anunciada a programação da emissora resultante da fusão, marcada pela prevalência de programas oficiais voltados para propagandear ações do governo e de exaltação às Forças Armadas. Desaparece na prática, e de forma explícita, o caráter público com que foi constituída a EBC. A portaria, por incúria ou incompetência, só trata das televisões deixando de se referir aos demais veículos da empresa, suas oito emissoras de rádio e duas agências de notícias. Pode-se deduzir, obviamente, que seguirão a linha oficial imposta às televisões.
Termina de forma melancólica um processo iniciado em 2007, que pretendia trazer para o Brasil experiências democráticas de comunicação consagradas desde a primeira metade do século 20 na Europa e nos Estados Unidos.
Aqui o rádio, desde os anos 1930, e a televisão, a partir da década de 1950, consolidaram-se como empreendimentos comerciais, naturalizando a ideia de que apenas esse tipo de modelo institucional poderia operar no setor. Como consequência, o fato de tratarem-se de concessões públicas outorgadas pelo Estado em nome da sociedade esteve sempre obscurecido, prevalecendo a ideia de que famílias, grupos empresariais e religiosos são donos absolutos desse tipo de serviço, sem nenhum crivo social.
Com o crescimento do poder desses meios, tornando praticamente homogêneas as ideias correntes na sociedade, ficou impossível fomentar um debate mais amplo e aprofundado da importância da comunicação pública para a democracia.
As experiências regionais de emissoras não comerciais, conhecidas de modo geral como “educativas”, nunca se consolidaram como empresas de caráter público. Todas elas, inclusive a Fundação Padre Anchieta gestora da TV e da Rádio Cultura de São Paulo, gerida por um Conselho Curador, nunca assumiram uma personalidade pública na medida em que operam sob tutela dos governos estaduais. No caso paulista, a captura do Conselho pelo partido que governa o estado há mais de duas décadas é emblemática.
A primeira tentativa real de romper essas barreiras ocorreu com a realização do primeiro Fórum Nacional de TVs Públicas, convocado em 2006 pelo governo federal, constituindo-se no embrião da EBC. Tive o privilégio de participar do grupo de trabalho liderado pelo ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins, onde não foi poupado em nenhum momento o debate aprofundado a respeito dos princípios que deveriam nortear a constituição de uma empresa pública de comunicação, comprometida com a diversidade e a pluralidade de ideias existentes na sociedade.
O governo, dessa forma, impulsionava a criação do sistema público de comunicação tendo a clareza de que não iria controlá-lo, dando à sociedade esse poder. Num país marcado pelo patrimonialismo, tratava-se de aposta ousada, daí a importância das referências internacionais, cuja modesta contribuição dei no meu livro A melhor TV do mundo, ainda nos anos 1990.
A ela, outras experiências vieram-se agregar, trazidas em seminário internacional realizado em Brasília, convocado pelo governo federal. A incompreensão e a ignorância de funcionários de emissoras comerciais presentes ao evento era tão grande, tanto que os vi fazendo chacotas com a rainha da Inglaterra, na tentativa de desqualificar o debate.
Isso tudo foi superado e a EBC, ainda que recebendo ataques de todos os lados, especialmente da mídia comercial, foi implantada. Durou cerca de nove anos. Pode demonstrar ao longo desse tempo a importância de levar ao público uma programação de rádio e TV, e um conteúdo informativo, através da Agência Brasil, fundados num olhar amplo e contextualizado da vida, atendendo necessidades simbólicas da sociedade, negadas pelos meios comerciais.
Nem tudo, no entanto, foram rosas. Ousou-se pouco na busca efetiva pela audiência que não deve ser obsessão na comunicação pública, mas também não pode ser desprezada. O sinal da TV Brasil em nenhum momento teve abrangência nacional, as emissoras de rádio não podiam ser ouvidas em São Paulo, por exemplo. Apenas nos últimos meses antes do golpe tentou-se de forma correta reverter essa situação, mas aí já era tarde. Mesmo assim, nesse período derradeiro, quando o jornalismo tornou-se mais ousado, refletindo anseios e expectativas de amplos setores da sociedade, foi possível constatar a ampliação do interesse público pelas emissoras da EBC.
Um apoio que poderia ter sido conquistado há mais tempo, se tais equívocos não houvessem sido cometidos. Com ele, talvez a destruição da comunicação pública não ocorresse com tanta facilidade como acabou acontecendo. Resta esperar que num novo momento histórico a experiência da EBC, seus erros e acertos, ajude a construir uma comunicação pública mais sólida e duradoura.
*Laurindo Lalo Leal é professor aposentado da Escola de Comunicação e Artes da ECA-USP, foi ouvidor da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), é diretor do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.
Artigo publicado originalmente na Rede Brasil Atual