O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis vive há três décadas no exterior e roda o mundo para divulgar sua pesquisa científica. Por isso, não tem dúvidas ao sentenciar: a comunidade internacional está perplexa com os desmontes e cortes na educação pública anunciados pelo governo brasileiro, chefiado por Jair Bolsonaro (PSL).

“O mundo inteiro está pasmo. Revistas internacionais de ciência dedicaram espaços que o Brasil nunca ganha, como por exemplo na Nature, para falar do total espanto e choque que é qualquer governo de um país como o nosso tentar criminalizar e afogar as universidades, ao invés de promover, defender e ampliar seus horizontes”, diz.

Em maio, estudantes e professores protagonizaram protestos massivos por todo o país após o anúncio do cortes de bolsas e da redução do orçamento das instituições federais, que respondem por mais de 90% da pesquisa científica no país. 

Nicolelis é um dos principais nomes da ciência brasileira. O engenheiro biomédico foi considerado, em 2009, um dos 20 maiores cientistas da atualidade pela revista Scientific American. 

Professor da Duke University, nos Estados Unidos, ele lidera o Projeto Andar de Novo. O trabalho já logrou que dois paraplégicos voltassem a caminhar por meio do desenvolvimento de um dispositivo de estimulação muscular e de uma interface cérebro-máquina.

Na entrevista, ele lembra que o extinto programa Ciência Sem Fronteiras levou o Brasil para outro patamar no mercado científico internacional. “Foi um dos maiores programas de fellowships científicas do mundo”, defende.

Ele afirma que o asfixiamento das universidades públicas, a perseguição das ciências humanas e a redução científica impactam em perda de soberania do país. “Nenhum país distribui colaboração ou know-how espacial. O Brasil teve que construir tudo na força da sua própria competência científica, no CTA [Centro Técnico Aeroespacial] de São José dos Campos e aplicando na base de Alcântara. E nós estamos dando de mão beijada isso.” 

O pensamento crítico, lembra o cientista, é o antídoto para conter o avanço de pensamentos anticientíficos como o terraplanismo e teorias que negam as mudanças climáticas – que cada vez mais ganham espaço internacionalmente.

Abaixo, confira a íntegra da conversa.

Brasil de Fato: A pauta da educação movimentou, neste semestre, os maiores protestos no país. E o tema também esteve no centro de algumas crises do governo, que culminou em queda, por exemplo, do primeiro ministro nomeado para pasta. Qual sua avaliação da gestão da educação pelo governo federal nestes seis meses?
Miguel Nicolelis:
O fato que a educação mobilizou tanta gente no Brasil mostra que ela é central no discurso e no pensamento da sociedade brasileira. O grande drama, que sinto, é a falta de aprofundamento dessa questão. Falar que é a favor da educação, todo mundo é a favor. E a gente viu que o tema foi capaz de mobilizar talvez o maior número de pessoas [nas ruas] desde a eleição. O que é surpreendente, por um lado. Mas, por outro, não é porque todas as famílias e camadas sociais brasileiras sabem que a esperança de seus filhos, netos e todos os jovens têm — e o país tem — de um futuro melhor reside nas oportunidades educacionais.

Eu acho que o que mobilizou mais ainda, que é muito diferente de qualquer outra coisa que a gente viu em muito tempo — eu não me lembro nem no governo militar de ter visto nada semelhante — é a perspectiva de asfixiamento das universidades e institutos federais. Eles correspondem a mais de 90% da produção científica do Brasil. E o almejo da grande maioria dos jovens brasileiros de cursar um ensino superior de alto nível, que se transformou em uma das maiores malhas educacionais de ensino superior público do mundo. 

Então, eu acho que no momento em que a sociedade brasileira começou a ver declarações, medidas e decretos que claramente apontavam para um estrangulamento das universidades federais, gerou-se um fator catalisador. Essas expressões, curiosamente, se desenvolveram a partir da perspectiva de se perder esse grande patrimônio nacional, que é a rede universitária federal. E, evidentemente, que até agora a gente não viu qual é a proposta do governo para os ensinos superior, básico nem ensino nenhum. O que a gente viu foi uma crise atrás da outra. 

Não só eu, mas o mundo inteiro está pasmo. Revistas internacionais de ciência dedicaram espaços que o Brasil nunca ganha, como por exemplo na Nature, para falar do total espanto e choque que é qualquer governo de um país como o nosso tentar que criminalizar e afogar as universidades, ao invés de promover, defender e ampliar seus horizontes. Basicamente usar o corte de verbas como a grande estratégia para calar o pensamento intelectual, o pensamento dos jovens, dos professores e dos funcionários. É uma grande calamidade.

O governo tem como alvo prioritário as ciências humanas, fala muito da ideologização da sociologia e filosofia, mas a extensão desses cortes também afeta a totalidade da produção científica…
Em nenhuma das duas bandeiras faz nenhum sentido, né. Eu sou um cientista biomédico. E não existiria ciência biomédica sem a filosofia. A ciência humana é a ciência do homem, por definição. O estudo do homem, das suas relações sociais, antropológicas, as suas ambições e anseios. Então, não se pode criar essa separação. Essa separação não faz o menor sentido. E evidentemente ela não contribui em absolutamente nada para o avanço da educação dos nossos jovens. Você remover o ensino de filosofia, sociologia do Ensino Médio, por exemplo, é um descalabro tão grande do ponto de vista intelectual que fica até difícil comentar. Você não vê qual o parâmetro que pode levar esse tipo de proposta. 

E não é só aqui  [que isso é visto com preocupação], mas fora do Brasil também. Eu estava dando uma palestra na Universidade de Lisboa há quase dois meses. Era o dia da primeira manifestação dos estudantes no Brasil. Quando eu contei aos estudantes e professores da universidade o que estava acontecendo no Brasil e pedi o apoio deles, foi um choque. O Brasil forneceu estudantes para Portugal, por exemplo, com o Ciência Sem Fronteiras, que Portugal nunca teve. Os EUA tiveram um fluxo de 25 mil estudantes brasileiros. E, pela primeira vez na minha vida, eu vi universidades americanas como o MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts] e [Universidade de] Harvard abrirem escritórios em São Paulo e Rio de Janeiro para recrutar os melhores estudantes brasileiros. Eles viram não só que o talento humano era muito grande, mas eles recebiam o dinheiro do governo brasileiro para receber cada um desses alunos. 

[O Ciências Sem Fronteiras] foi um dos maiores programas de fellowships científicas do mundo. Quando eu fui para a China, os chineses estavam falando desse programa e da admiração do fato de que 108 mil brasileiros foram para o exterior estudar, no limite do conhecimento humano, para ver o que existia e voltar para cá, né. Então, na realidade, o que choca é a própria falta de lógica e noção da proposta. Você iniciar o governo tratando como inimigo a universidade pública brasileira, você está pedindo para ter problemas de grande porte. 

É preciso dar continuidade a essa manifestação de desagravo. Não adianta se ela for pontual, apenas. Claro que passa a emoção daquele dia de manifestações, que foram muito parecidas com as manifestações das Diretas Já, quando eu era aluno aqui no Brasil. Mas você precisa dar continuidade a isso porque é óbvio que é uma estratégia que não vai ser posta de lado. Ela vai continuar. E existem universidades que daqui a alguns meses não tem como funcionar. Elas não têm como desempenhar suas funções.

E como todo esse contexto reposiciona o país, geopoliticamente, e em relação à soberania?
O Brasil estava tendo uma ascendência meteórica com os investimentos que foram feitos tanto pelo Ministério da Educação quanto pelo Ministério da Saúde e [Ministério da] Ciência e Tecnologia. Essa ascendência foi notada em número de publicações, na qualidade das publicações, na qualidade de alunos brasileiros, na penetração dos cientistas brasileiros no mercado internacional de ciência… Isso era tudo muito claro. Era tangível. Você podia medir, ver. 

O mercado internacional de ciência não é fácil de se penetrar. Existem uma série de preconceitos. Eu vivo há 31 anos nos EUA, conheço de cor e salteado como você faz para impedir que certas áreas da ciência de ponta tenha a participação de países como Brasil. Na pesquisa aeroespacial, por exemplo. Na minha visita à Alcântara [no Maranhão] uns anos atrás, eu descobri que nenhum país distribui colaboração ou know-how espacial. O Brasil teve que construir tudo na força da sua própria competência científica, no CTA [Centro Técnico Aeroespacial]de São José dos Campos e aplicando na base de Alcântara. E nós estamos dando de mão beijada isso. Nem sabemos o que vamos acontecer ali dentro. 

Então, esse momento, que já vem desde 2015, quando o Brasil deixou de ser governável, com a preparação do impeachment e do golpe, e depois, no governo [de Michel] Temer, a curva, eu chamo, é de ascensão e o crash da ciência brasileira. De repente, se puxou o tapete. Então imagina, você foi para fora do Brasil com uma bolsa do governo brasileiro para fazer uma pesquisa em astrofísica na Harvard e, agora, você é um doutor em astrofísica e quer voltar para o Brasil… Você vai para onde? Você vai trabalhar onde? Você vai reposicionar o Brasil nessa área como? A conclusão é essa: é uma grande tragédia que compromete drasticamente a soberania do Brasil. Não agora, somente, mas em várias décadas que estão por vir ainda.

Uma pesquisa do INCT, divulgada nesta semana, mostra que 67% dos jovens brasileiros têm interesse por ciência, o que é um dado…

Maravilha!

…muito positivo. Mas, em contrapartida, um a cada quatro, acredita que vacinas fazem mal. E 54% afirmam que os cientistas exageram, por exemplo, com relação a mudanças climáticas. Teorias terraplanistas, por exemplo, estão ganhando espaço em todo o mundo… Como o sr. enxerga o avanço dessas teorias anti-científicas? 
É um fenômeno histórico da humanidade, né. O que é mais assustador no momento atual é que, com a interconectividade global que existe, você consegue espalhar esse tipo de absurdo muito rapidamente. Você consegue criar movimentos, por exemplo, teve um congresso de terraplanistas nos EUA, perto de onde moro. Quer dizer, os caras foram no espaço, fotografaram a terra… Se você tinha qualquer dúvida, teve gente lá em cima que fotografou. A evidência é óbvia. Circunavegaram  a terra antes de sair para o espaço. Não dá nem para entrar em um debate como esse…

Sobre a questão climática, toda a evidência disponível e experimental de gente séria que trabalha na área evidente que demonstra o impacto humano…

Então o que explica essa negação de evidências?
A falta da formação do pensamento crítico. Os sistemas educacionais ao longo do mundo não estão conseguindo dar conta de formar pessoas que conseguem pensar criticamente. E isso não é um fenômeno nacional. Nos EUA, eu moro em uma região do país onde isso é muito frequente. E os cientistas são atacados até mesmo fisicamente.

Então, é quase curioso que depois de todo o desenvolvimento que nós experimentados cientificamente nós estejamos voltando para uma época, com toda a tecnologia que foi desenvolvida, toda a hiperconectividade… Eu falo isso no meu livro, inclusive: estamos voltando para uma época em que parece que voltamos 800 anos atrás. Estamos negando princípios básicos da descoberta científica que são clássicas. E isso é muito preocupante.

Para mim, isso é um reflexo claro do momento em que o mundo vive de como as tecnologias digitais estão reprogramando nossos cérebros, como elas estão alterando nossa percepção da realidade e como é tão fácil uma pessoa criar uma realidade paralela e conseguir administrar ela para milhões de outras pessoas. Na minha opinião, esse é um dos problemas mais sérios que nossa espécie enfrenta nesse instante: como não transformar o ser humano em um robô, num autômato, que não tem mais a capacidade de pensar por si só e de ser crítico. 

É um bombardeio, se você for parar para pensar. Se você olha para o que sai hoje nas redes sociais, é um contínuo bombardeio de teorias da realidade. E se você não tiver o mínimo de formação, o mínimo de capacidade de discernir o que é real e o que não é, fica muito difícil. Às vezes, quase impossível com as manipulações de imagens e de vídeo que são feitas hoje. 

Por Rute Pina. Edição: Vivian Fernandes