A cortina de fumaça que encobre a Amazônia
O fogo é uma tecnologia ancestral e é, até hoje, amplamente utilizada na agropecuária brasileira, apesar dos inconvenientes como empobrecimento do solo, poluição, destruição de redes de eletricidade e cercas, acidentes rodoviários. Todos os anos estes e outros reflexos das queimadas causam prejuízo para o Brasil.
As queimadas ocorrem em todo o território nacional, sendo utilizadas majoritariamente em formas agrícolas primitivas, praticadas por pequenos e médios produtores, indígenas e caboclos. Exatamente a fração produtiva que tem menos acesso a políticas de Estado como financiamento e tecnologias. Queimadas são utilizadas para limpar áreas, renovar pastagens, queima de resíduos, eliminar pragas e doenças, dejetos de serrarias, lixo urbano, ou até como técnica de caça. Existem muitos tipos de queimadas, motivadas por diversos interesses, em sistemas de produção e biomas diferentes, inclusive para acelerar o desmatamento ilegal, inclusive para acelerar o desmatamento ilegal.
As queimadas e incêndios florestais no Brasil alcançam todos os anos grandes grandes dimensões. Segundo dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), são mais de 300 mil focos de queimadas por ano. Deste total, 85% acontecem em áreas da Amazônia Legal e é recente o esforço do poder público para construir alternativas para a prática das queimadas na agricultura. Foi nessa década que a coibição por multas e até prisões dividiu espaço com uma campanha para sensibilizar as comunidades para a questão, e oferecer tecnologias que substituam o uso do fogo nos principais sistemas de produção agropecuária.
A Embrapa, através de pesquisa investimento em ciência, tecnologia e recursos humanos, desenvolveu soluções alternativas para as principais atividades agrícolas que se utilizam de queimadas em seu manejo, como ampla aplicação zoneamento agroecológico e adequação do uso das terras, programa de Desenvolvimento Agrícola Municipal (PDAM), uso da mistura múltipla “banco da proteína” como complemento de pastagem nativa restabelecimento da capacidade produtiva das pastagens, entre outras.
Parcerias foram firmadas com os governos dos estados de Mato Grosso, Tocantins, Pará, Maranhão. Houve o envolvimento comunitário, por intermédio das prefeituras municipais, órgãos representativos da classe, secretarias de agricultura, de meio ambiente, ONGs e de outras forças atuantes dentro de cada município, uma verdadeira força tarefa para reduzir o número de queimada nos últimos anos.
Diante dessa situação, os produtores precisam usar sistemas de produção adequados para manter a capacidade produtiva dos solos e sua competitividade. Não é interessante para nenhum segmento, sejam produtores agrícolas, ambientalistas ou sociedade civil, a perda de serviços florestais que a Amazônia pode fornecer.
Para abordar o tema tocamos, aqui, em pontos essenciais para o sucesso de uma política que visa aliar desenvolvimento e preservação: o investimento em ciência e tecnologia; a valorização dos instrumentos de monitoramento, controle e fiscalização; a construção de parcerias institucionais com várias esferas do poder público e da sociedade civil; a compreensão da necessidade de aliar preservação com produtividade e crescimento.
Paradoxalmente vivemos um momento em que exatamente esses pontos foram colocados em cheque.
Primeiramente, ainda na campanha eleitoral de 2018, o Presidente da República atacou os instrumentos de controle ambiental, prometendo um “afrouxamento” e até extinção de uma parte da política ambiental do Brasil. Foram diversas mudanças em órgãos responsáveis pelo IBAMA e ICMBio, limitando a inglória tarefa de um efetivo tão reduzido fiscalizar a principal atividade produtiva em um país continental e agrícola como o Brasil. A descredibilização de parte do aparato estatal brasileiro pelo próprio Chefe de Estado é uma mensagem política que provocou um descontrole das instituições sobre o sistema produtivo.
Outra questão envolve a perseguição ideológica e o sufocamento de instituições científicas brasileiras. Foram sucessivos cortes nas universidades, o CNPqq sequer poderá honrar com bolsas de pesquisa já concedidas, projetos e pesquisadores tiveram ou terão seu trabalho interrompido, dados oficiais foram questionados publicamente, exonerações e nomeações arbitrárias viraram rotina. Não há nenhuma estabilidade em um ambiente que trabalha com a lógica de médio e longo prazo. Os frutos colhidos pelo trabalho científico demoram, pelo menos, uma safra para se apresentar.
A parceria institucional também foi posta em cheque. O presidente afirmou nesta quarta-feira (21/08) que governadores da região Norte são “coniventes” com o aumento do desmatamento e de queimadas na Amazônia, que alguns governadores “não estão movendo uma palha” para resolver a situação e que “estão gostando”. Isso após o rompimento de doações de países que financiavam o Fundo Amazônia. O curioso é que esses países mantêm atividades poluidoras na região, como a mineração. É norueguesa a Hydro, empresa que contaminou as águas de Barcarena, no Pará, em 2018. O repasse suspenso da Noruega para o Fundo Amazônia é irrisório perto do faturamento das atividades desenvolvidas na região. Com ar de altivez, na prática, nosso chefe de Estado abre mão de poucas medidas compensatórias que esses países deixam para a Amazônia.
Também na arena internacional, os mecanismos de pagamentos por redução de desmatamento, conhecidos como REDD , só ganharam alguma importância por meio do protagonismo da diplomacia brasileira na área ambiental. Conquistas como estas e como o tratamento especial dado aos países em desenvolvimento, grupo do qual o Brasil faz parte, têm sido também postos em cheque pelo desmonte da diplomacia brasileira e pelo seu aparelhamento e ideologização. Com uma diplomacia amarrada à ideologia e à obediência cega a Trump, fica difícil para o país conseguir bons resultados lá fora, especialmente na área ambiental.
A questão ambiental deve ser olhada de forma sistêmica, interligada, não só entre os serviços ambientais como entre ambiente, sociedade e economia. Os últimos acontecimentos, como o carregamento de material particulado proveniente de queimadas fora de controle na Amazônia Legal para São Paulo, devem mostrar aos brasileiros que a região norte não é um vazio demográfico. É uma região ocupada, com atividades produtivas relevantes, com atores complexos, que sofrem com a pouca presença do Estado e que, principalmente, a retirada dessa pouca presença nos remete a tempos obscuros de uma ocupação desordenada. Ou seja, não é a ocupação ou as atividades produtivas que são o problema, elas sempre estiveram lá. Estamos lidando com a ausência de uma política responsável para a região e precisamos olhar com atenção para os interesses que existem em torno da Amazônia. A agitação por parte do poder executivo do Brasil está levando o nosso país ao caos e é isso que deve ser combatido. Temo a “ordem” que pode ser proposta como alternativa a essa crise, a Amazônia não pode ser uma cortina de fumaça para outros interesses que não considerem a nossa soberania.
*Marcela Rodrigues – Engenheira Ambiental e Mestranda em Ciências Mecânicas na UnB.
**Luiz Rodrigues – Agrônomo e Especialista em Políticas Públicas