Lecio Morais: O Brasil, a China e a manipulação cambial
A intervenção do nosso Banco Central responde a um movimento de câmbio que está sendo considerado negativo aos interesses de nossa economia. Esse mesmo tipo de intervenção – mas em sentido inverso – ocorreu também na China no início de agosto, quando o Banco da China “permitiu” que sua moeda se desvalorizasse cinco centésimos acima de sete yuans – um outro patamar mágico.
No caso da China, a desvalorização, de imediato, provocou a acusação do governo americano de que o enfraquecimento do yuan é uma manipulação cambial para prejudicar os Estados Unidos, uma retaliação comercial. Em seguida, o Tesouro americano enquadrou-a oficialmente como manipuladora cambial.
As agências de notícias logo reproduziram o discurso pró-americano e informaram ser a desvalorização do yuan uma represália à nova imposição de tarifas pelo governo Trump.
A manipulação cambial de que se acusa a China é definida pelo FMI e pelos EUA com uma política cambial de seguidas desvalorizações da moeda nacional para baratear suas exportações, uma prática comercial considerada desleal para com seus concorrentes.
O Banco Central chinês negou a manipulação cambial, por ela não se enquadrar na definição canônica, argumentando que a desvalorização do yuan ocorreu devido a uma resposta do mercado ao aumento do fluxo de saídas de capitais da China. Um fluxo cambial que ocorre desde 2018, devido a escalada agressiva de tarifação dos EUA contra as exportações chinesas, recentemente agravada por Trump.
Na verdade, a China vem evitando a desvalorização do yuan, mantendo-o estável desde 2015, como decorrência de sua política de comércio exterior, que promovia a estabilidade dos preços das importações, ao mesmo tempo em que estabilizava a pressão americana. Isso custou caro às reservas da China. No entanto, durante todo esse período, a China nunca foi acusada de manipular seu câmbio.
Comentando essa desvalorização, Joseph Stiglitz, em recente artigo no site Project Syndicate (Trump’s Deficit Economy), comenta que o “mais irônico é o fato de que o recente declínio na taxa de câmbio da China surgiu porque a China deixou de interferir na taxa de câmbio, parando de sustentar a taxa de câmbio do yuan”.
O fato de o banco central chinês acompanhar o movimento do mercado de câmbio, não significa que essa autoridade fixe uma taxa corrente. O banco chinês certamente influencia e age no mercado, vendendo e comprando divisas, utilizando para tanto suas reservas. E assim o faz para defender a estabilidade e objetivos prioritários do país. Essa presença do banco central junto ao mercado ocorre em todo o lugar do mundo, inclusive nos EUA. É isso que o FED faz a cada 45 dias, nas atas de reuniões do seu conselho monetário, e até diariamente, ao aceitar reservas bancárias. Em situações de estresse, o banco central intervém e é necessário que assim o faça, não para salvar especuladores, mas para proteger a economia, o país e a sociedade. Todos fazem isso, basta que aconteça situações críticas.
Porém, se um país sofre uma fuga continuada de capitais – como é o caso da China desde o início da “guerra comercial” em 2018 e que se agravou ultimamente – sua moeda tem que se desvalorizar em algum momento. Sustentar uma moeda tem custo, há perdas de divisas.
Ademais, uma desvalorização do yuan também não é favorável à China. Desde os primeiros anos do século, o balanço comercial chinês tem-se mantido equilibrado, exportações empatam com importações. O superavit que ela tem com os EUA, é compensado pelo deficit que ela tem com outros países. Uma desvalorização eleva o preço interno das importações e, pior, prejudica todos seus parceiros comerciais.
O caso brasileiro
No caso brasileiro, a situação é exatamente a mesma. Assim como na China, estamos enfrentando uma fuga de capitais desde 2018 e que tem se acelerado no último mês. Nos últimos 12 meses, saíram da bolsa 30 bilhões de dólares, sendo 10 bilhões só em agosto. A razão é, em parte, a mesma da China, a fuga para buscar proteção em títulos do governo americano.
Na verdade, nessa lógica idealista e oportunista de Trump, haveria muito mais razão de sermos considerados um país que manipula seu câmbio. Aqui, o problema é termos um mercado de câmbio menor. Enquanto as transações cambiais cotidianas alcançam um giro normal de algumas centenas de milhões de dólares, nas grandes bolsas, esse giro chega a vários bilhões de dólares e o número de moedas conversíveis é também maior. Sendo menor, nosso mercado não tem profundidade, o que faz com que, frequentemente, falte liquidez, com todos querendo comprar sem ninguém na outra ponta querendo vender, e vice-versa.
O que obriga o Banco Central, mesmo em condições normais, a intervir semanalmente ou mesmo diariamente no mercado, comprando ou vendendo dólar. Uma iniciativa que permite artificialmente que possamos ostentar a existência de um mercado de moedas, embora para que funcione ele precise ser pesadamente subsidiado
Mas, em vez de proteger nossa balança comercial o funcionamento desse mercado só beneficia o capital, reduzindo seus riscos, com o Banco Central assumindo parte desses riscos, esforçando-se para manter o câmbio estável e compatível com a política monetária contracionista. Geralmente, essa ação estabilizadora é feita por meio de operações de swap que simulam uma compra ou venda de dólares, sem que os tomadores, investidores e especuladores tenham que ter dólares.
Agora, o Brasil, tal como a China, vem enfrentando uma fuga de dólares, que buscam a segurança nos títulos do Tesouro americano, devido à instabilidade mundial, causada principalmente pela política do America First de Trump.
Por essa razão, o fluxo de saída de dólares se acelerou. E o Banco Central mudou de tática, passando a utilizar como ação estabilizadora não mais os swaps, mas a venda de dólares físicos. Assim, o custo da intervenção foi transferido, passando da dívida pública para a perda de reservas.
Essa não é a melhor política para a economia brasileira. Ela, certamente, envolve uma evidente manipulação cambial, mas por ser sobremaneira favorável aos capitais financeiros, subsidiando-os, é considera positiva. Mas não é desenhada para ajudar nossa economia.
Na aparência, os casos da China e do Brasil parecem semelhantes, ambas não trazem benefícios às suas exportações, a diferença é que o banco chinês, assim como outros grandes bancos centrais, não subsidia seu mercado de câmbio, nem este parasita o seu governo.
(*) Lecio Morais é economista