Ampliar a excludente de ilicitude amplia a barbárie
Há quem queira legitimar a barbárie como método de abordagem policial, modelando a lei penal brasileira para que agentes de segurança tenham uma licença prévia para agir com violência e até mesmo matar no exercício profissional. É a tal ampliação do excludente de ilicitude que o chamado pacote anticrime, enviado por Sérgio Moro ao Congresso, pretende consagrar.
É uma tentativa de atender promessas de campanha de Bolsonaro, que mobilizou o sentimento de insegurança da população e o ódio que viceja na sociedade para vencer a eleição. No entanto, vai na contramão das boas práticas em matéria de segurança pública. A proposta de estender a excludente de ilicitude para casos ocorridos sob “escusável medo”, “surpresa” ou “forte emoção” criaria, na prática, uma licença para matar, instituiria a política pública do faroeste.
O artigo 23 do Código Penal já estabelece a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal como excludentes de ilicitude, possibilidades suficientes para resguardar a ação daqueles que são obrigados a tomar medidas de força para repelir o crime. O artigo 25 conceitua que age em legítima defesa “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
Mas o que se deseja com a ampliação é justamente dar abrigo legal para os excessos cometidos por maus policiais, casos que têm se avolumado e atingido uma condição de guerra aberta do poder público contra os pobres e as periferias.
O Brasil tem números estarrecedores de violência: são mais de 65 mil homicídios ao ano, segundo o Atlas da Violência de 2019. Quem são os alvos? Em geral, jovens, negros, pobres, moradores das periferias. Nossa polícia está entre as mais letais do mundo: 5.159 pessoas foram mortas em decorrência de ações policiais no ano de 2017 – cerca de 14 óbitos por dia! -, de acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública.
Vivemos um retrocesso civilizatório no país. Agentes públicos, que deveriam dar o exemplo, estão por aí comandando operações em que policiais atiram a esmo contra civis, elogiam a tortura e não se compadecem com o sofrimento alheio. À medida que autoridades incentivam a violência para obter dividendos eleitoreiros, a resposta só pode ser o aumento de tragédias como a que vitimaram Ághata: em 2019, no Rio de Janeiro, já ocorreram 1.249 mortes em operações policiais.
É evidente que parcelas das forças de segurança estão se sentindo legitimadas ao uso desproporcional da força. Caso venham a ser ampliadas as possibilidades de excludente de ilicitude, ainda mais a partir de tipos penais abertos como “escusável medo” ou “surpresa”, aquilo que deveria ser exceção passará a ser regra. Maus agentes, inclusive aqueles comprovadamente envolvidos com milícias e grupos de extermínio, encontrariam campo aberto para justificar agressões e assassinatos.
Há ainda outro agravante, não só os policiais seriam abrangidos pela mudança, mas também os civis poderiam alegá-la em seu proveito. Afinal, quem de nós, que vive nas grandes cidades, não se viu surpreendido ou teve justificável medo em alguma situação cotidiana? Seria um convite ao caos.
O governador Witzel levou três dias para se pronunciar sobre o ocorrido no Complexo do Alemão. Quando o fez, foi para dizer que não se deve politizar a tragédia. Ocorre que quem utiliza os corpos como palanque é ele. Quem saiu por aí dizendo que ia “atirar na cabecinha” foi ele. Quem admitiu antecipadamente que outras vítimas inocentes de sua política de segurança poderiam ocorrer foi ele.
Para tudo deve haver limites. O Brasil não pode tolerar uma política de Estado genocida, que causa dor e sofrimento todos os dias. O combate ao crime não pode virar escudo para aqueles que há muito perderam os sentimentos que nos irmanam na família humana. Cedo ou tarde os propagadores da barbárie pagarão por seus atos. Que Ághata não seja mais um número nas estatísticas, porque todas as vidas importam.
*Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB-SP.