Gestão democrática em tempos de terrorismo na política educacional
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Paulo Freire
No que se refere a uma administração educacional popular, o que significa participar e descentralizar? Para Paulo Freire, esses “objetivos estão presentes no discurso de políticos cuja orientação é oposta à nossa. O que nos diferencia deles é o conteúdo que imprimimos a esses princípios e a nossa decisão de não permitir que eles fiquem apenas no terreno das intenções (…) Para nós, descentralização e participação dizem respeito ao ato de decidir. O equívoco que mais frequentemente se comete em relação a essas questões é descentralizar a execução das tarefas e manter as decisões centralizadas”.
A propósito da coerência das práticas educacionais participativas, Freire enquanto Secretário da Educação do município de São Paulo afirmava que a “participação não pode ser reduzida a uma pura colaboração que setores populacionais devessem e pudessem dar à administração pública”. E alerta para a impossibilidade de democratizar a escola “sem abrir a escola à presença realmente participante dos pais e da sua própria vizinhança nos destinos dela. Participar é bem mais do que, em certos fins de semana, “oferecer” aos pais a oportunidade de, reparando deteriorações, estragos das escolas, fazer as obrigações do próprio Estado”.
Gestão democrática
É dentro desse contexto que passou-se a pensar no princípio de “gestão democrática”. O artigo 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) é claro ao afirmar que os sistemas de ensino “definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes”.
O intuito é permitir que toda a comunidade escolar (pais, alunos, professores e demais funcionários) tenha voz ativa nos rumos da escola. No que se refere ao ensino público, portanto, essa ideia é presença cativa nos respectivos projetos políticos pedagógicos (PPP) das unidades escolares. Nesse sentido, a formação de conselhos escolares e grêmio estudantis, por exemplo, se apresentam como uma pequena engrenagem que possibilita uma maior participação dos setores populacionais nas unidades, conforme estipula a Lei.
Porém, a política educacional do Ministro da Educação, Abraham Weintraub – que se apresenta como uma ceifadora da ideologia de esquerda – se posiciona contra a gestão democrática da escola. Essa nova política do MEC, que beira a um terrorismo de Estado e se caracteriza pela precarização do ensino público, com cortes e ataques a alunos e professores, abre espaço para que as instituições privadas e militares de ensino ganhem cada vez mais espaço. O que se quer é transformar essas premissas não numa “expressão e (…) o caminho de realização democrática”, mas sim num mero slogan atrelado a um passado que se deseja esquecer.
Militarização da educação
As escolas particulares, por sua veia empresarial, muitas vezes, apresentam um projeto pedagógico e de gestão prontos. Sem a participação de agentes que compõem a comunidade escolar. Nesse sentido, o material didático, o sistema de avaliação e o próprio currículo básico, por exemplo, acompanham apenas os interesses dos donos das empresas que dirigem a instituição. E esses interesses se alinham às demandas do mercado. Já nas escolas militares, a educação é tratada de forma diferenciada da educação civil. Algo estipulado pelo artigo 83 da própria LDB, que diz que o “ensino militar é regulado em lei específica, admitida a equivalência de estudos, de acordo com as normas fixadas pelos sistemas de ensino”. Dessa forma, a disciplina militar e sua moral conservadora dificultam o processo participativo da sociedade civil nas práticas pedagógicas dessas instituições.
O embuste defendido pelo Governo em sua política educacional tem o objetivo, mais do que óbvio, de impor a ideologia do Estado sem abrir espaço para o debate. Sem respeitar os diversos discursos que podem ser encontrados na comunidade escolar, do pessoal da limpeza passando pela heterogeneidade dos alunos à administração dos gastos. Por isso o ministro coloca um interventor nas escolas e prepara uma cartilha para orientar cidades, servidores e gestores acerca de “possíveis ilícitos que envolvam os movimentos políticos partidários nas instituições públicas de ensino na esfera federal”. Uma política antigrêmio estudantil já está sendo desenvolvida nas escolas do Rio de Janeiro. Tudo com o foco de conter a participação democrática e cidadã dos jovens.
Gestão Paulo Freire
A concepção de participação popular na educação desenvolvida pela gestão democrática da Prefeitura do Município de São Paulo, na gestão 1989 – 1991, quando Paulo Freire foi secretário, teve quatro objetivos que, segundo ele, marcaram sua administração: “Ampliar o acesso e a permanência dos setores populares; democratizar o poder pedagógico e educativo; incrementar a qualidade da educação, mediante a construção coletiva de um currículo interdisciplinar e a formação permanente do pessoal docente; eliminar o analfabetismo dos jovens e adultos”.
Contudo, a democracia quando se torna ampla, quando garante liberdades participativas (em tese seu objetivo final), acaba por se tornar um empecilho para os interesses do mercado. Para que um modelo econômico, que pretende garantir os maiores ganhos para o lado dos investidores, seja aplicado, a liberdade, não apenas em relação à participação nos negócios públicos, mas em relação à própria intimidade, precisa ser brecada. A liberdade é um risco à propriedade. Deste modo, o modelo educacional que busca se implantar no país acompanha a política neoliberal iniciada em 2016. Esse processo prova que a proposta da Terceira Via, de conciliar a liberdade de mercado com o progresso da sociedade civil pautado na liberdade e responsabilidade, não deu certo. Tal utopia cedeu lugar ao que há de mais draconiano na política.
A educação, em boa medida, é a principal responsável por equalizar oportunidades. E isso só é possível num espaço aberto e participativo, onde os agentes envolvidos (pais, professores, alunos etc) tenham a opção de escolha nas práticas diárias dentro do próprio espaço escolar. Para Freire, participar “é discutir, é ter voz, ganhando-a, na política educacional das escolas, na organização de seus orçamentos. Sem uma forte convicção política, sem um discurso democrático cada vez mais próximo da prática democrática sem competência científica nada disto é possível.”. Só assim é que a escola – mais do que mera formadora de mão-de-obra para o mercado de trabalho – poderá preparar seus alunos para a vida.
*Raphael Silva Fagundes é doutor em História Política pela UERJ e Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
**Wendel Barbosa é pós-graduado em História Social e Cultural do Brasil pela FEUC e professor da rede estadual e particular de ensino.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO. Planejamento. Instrumento de mobilização popular. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1992. P. 65-6
FREIRE, P. A educação na cidade. 5a edição, São Paulo: Cortez, 2001, p. 75.
Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil