“Para mudar um regime político é preciso antes destruir a sociedade”, diz o mantra cunhado pela empresa Cambridge Analytica e seus mentores, entre eles o pernicioso neofascista americano Steve Bannon, consultor informal do atual presidente do Brasil. E é a isto que se dedica, há um ano, o governo do país, cujo avanço mais recente, numa área de grande importância estratégica, a da Cultura, se deu esta semana, com a efetivação vergonhosa de uma autora de telenovelas ordinárias no cargo de diretora da Fundação Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, no Rio de Janeiro. 

Uma instituição federal emblemática, de renome internacional, reconhecida pela excelência do trabalho em Pesquisa não apenas no Brasil, mas na Europa e nos Estados Unidos, a Casa de Rui Barbosa abriga um acervo de livros e periódicos que inclui mais de 37 mil volumes, incluindo uma edição da Divina Comédia de 1481, deixados como herança pelo seu morador histórico. Além da preciosa coleção, lá funcionam um museu, um núcleo acadêmico e um dos maiores arquivos de literatura do país.

A nova chefe da Casa de Rui Barbosa, indicada por um pastor evangélico com direito a administrar o latifúndio que lhe cabe no infeliz estado do Rio de Janeiro, vem fazer companhia a uma nova diretora da Ancine, (Agência Nacional do Cinema, reguladora que fomenta e fiscaliza a indústria cinematográfica brasileira), notória integrante da organização fundamentalista Opus Dei. 

”Eles pensam que trancafiando o cadeado do jardim impedirão que as flores brotem; pior: acreditam que aprisionam os pensamentos,” vem lembrando o cineasta carioca, um dos nomes mais respeitáveis do documentário brasileiro, Silvio Tendler, presente ao protesto de mais de uma centena de pessoas ligadas à Cultura, à Arte e à Pesquisa que encontraram os portões da Fundação Federal trancados por cadeados, foram impedidos de entrar e bloquearam a rua com a manifestação, há poucos dias. 

“A Casa é minha/ A luta é nossa/ Abram as portas/ da Casa de Rui Barbosa” foi o slogan ouvido durante as três horas do ato de protesto. 

Funcionários – pesquisadores, historiadores, arquivistas e profissionais da Cultura –  foram mantidos incomunicáveis dentro do prédio da instituição federal durante todo o horário de expediente. A sua saída só ocorreu no fim da tarde. 

Com a pequena multidão que fechou a Rua São Clemente, um cartaz rememorava as palavras de Rui: “A força do direito deve superar o direito da força”.

”A Casa de Rui Barbosa,” lembra Silvio Tendler, ”é um dos mais emblemáticos espaços do Rio de Janeiro com o seu arquivo, com a sua equipe de pesquisadores e sua organização. Ela é fundamental para o trabalho de documentaristas, por exemplo.”

”Hoje,” ele continua, ” não se faz o roteiro de um grande filme de tema histórico sem uma pesquisa bem fundamentada. No caso dos documentários, a pesquisa é a coluna dorsal do filme porque o doc contemporâneo não trabalha muito com roteiro. O que serve de base de sustentação do filme e permite que o espectador perceba a intenção do diretor é a pesquisa. Ter uma equipe como a da Casa de Rui Barbosa à disposição é um luxo.”

No início de janeiro, foram exonerados da Fundação cinco dos principais pesquisadores e coordenadores de pesquisa, notificados grosseiramente pelo Diário Oficial. Os funcionários temem que as demissões sejam o primeiro passo do atual governo para o desmonte do centro de pesquisa.

”Creio que as pessoas continuarão resistindo, sobretudo aquelas que trabalham na instituição há mais tempo,” diz Marta de Senna. Ela  foi pesquisadora do Setor Ruiano durante quinze anos (entre 2002 e 2017), e presidente da Casa de 2016 a fevereiro de 2019, quando pediu exoneração.

”No entanto, há sempre o risco de os mais novos se deixarem intimidar pela perseguição político-ideológica posta em prática pela presidente atual. Essa pessoa nem poderia estar no cargo, uma vez que a lei 4.943, de 6 de abril de 1966, preconiza que, para presidir a Casa, é preciso “ser brasileiro ou brasileira de reconhecido saber e experiência em assuntos ruianos”, o que efetivamente não é o caso da atual presidente,” completa a doutora em Letras pelo King’s College da Universidade de Londres  com pós-doutorado em literatura e filosofia pela Universidade de Oxford.

A importância da Casa de Rui Barbosa para a Cultura e para a História do país é imensa: o Museu Casa de Rui Barbosa, que abriga, além de mobiliário da época do patrono, a sua imensa e riquíssima biblioteca, foi o primeiro museu/casa instituído no Brasil; o Arquivo Museu de Literatura Brasileira tem a custódia dos arquivos pessoais de escritores brasileiros do porte de Carlos Drummond de Andrade – que em 1972 sugeriu a sua criação -, e de Pedro Nava, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, dentre outros autores. 

O Arquivo Histórico e Institucional guarda um exemplar da primeira Constituição da República, promulgada em 1891, além de uma minuta da mesma Constituição, revisada por Rui Barbosa. Guarda ainda documentos de figuras proeminentes da história do país, como Pandiá Calógeras e o próprio Rui Barbosa, cujo arquivo documental mereceu o selo Mémoire du Monde, concedido pela Unesco. 

Esses setores, mais a biblioteca São Clemente, constituem o Centro de Memória e Informação da Casa. 

“Também o Centro de Pesquisa, centro de produção de conhecimento, sendo seus pesquisadores autores de livros e sítios eletrônicos importantes para a história e a cultura do país, como o  Vocabulário do português medieval e o sítio machadodeassis.net. E o Programa de Pós-Graduação em Memória e Acervos, criado em 2015, aprovado pela Capes, único na área no Rio de Janeiro. Parece evidente a relevância da Fundação Casa de Rui Barbosa para o nosso país, ” ressalta Marta de Senna.

De acordo com o decreto 9.727, de 15 de março de 2019, baixado pelo atual Presidente da República, os ocupantes de cargos comissionados do nível DAS 6, devem possuir, entre outros requisitos, experiência profissional de no mínimo cinco anos em atividades correlatas às áreas de atuação do Órgão a que venham a pertencer; ou ter ocupado cargo comissionado equivalente a DAS 3 ou superior, em qualquer dos três poderes, por no mínimo três anos; ou ainda ter o título de Mestre ou Doutor em área correlata às áreas de atuação do Órgão. “O currículo da atual presidente não atende nem à lei, nem ao decreto,” lembra a antiga diretora. 

 

Manifestação em frente à Casa de Rui Barbosa (Foto: O Globo)

Atualmente, a  atmosfera na Fundação Casa de Rui Barbosa  é a pior possível. Não houve demissões, uma vez que todos os pesquisadores são servidores públicos efetivos, concursados. 

O que houve foram exonerações de cargos comissionados: o do Diretor do Centro de Pesquisa (Antonio Herculano Lopes, historiador, referência nos estudos de História Cultural, reconhecido internacionalmente por sua produção acadêmica); e os chefes dos vários setores de pesquisa: Pesquisa Ruiana (José Almino de Alencar e Silva Neto, sociólogo, grande conhecedor da história política do Segundo Reinado e da Primeira República, autoridade em Joaquim Nabuco e Rui Barbosa).

Pesquisa em Filologia (Flora Sussekind, doutora em letras, ensaísta de renome internacional, referência em toda a academia por sua obra de crítica da cultura em geral e da literatura em particular); Pesquisa em História (Joëlle Rouchou, doutora em comunicação, autora de importante livro sobre a cultura judaica no Brasil, e de uma obra também referencial sobre Samuel Wainer e a história do jornalismo na República Velha); e Pesquisa em Direito e Ciência Política (Charles Gomes, regente da cátedra Sergio Vieira de Melo, chancelada pelo ACNUR-ONU, conhecido no mundo acadêmico nacional e internacional por sua atuação na área de migrações e refúgio).

E a exoneração da diretora executiva da Casa, que ali trabalhava há nada menos que 26 anos, Lucia Velloso.

“Embora estejam circulando pela Casa pessoas a convite da atual presidente, as quais seriam, eventualmente, candidatas a preencher cargos de confiança, não houve até agora (15 de janeiro) nenhuma nomeação. Hoje, pelo Twitter, a presidente anunciou a indicação do pesquisador Christian Lynch para a chefia da Pesquisa Ruiana, mas, tendo o Secretário Especial de Cultura do Ministério do Turismo vetado a indicação, também ele através do Twitter, sob a alegação de que o referido pesquisador se referira ao atual Governo como tendo “um caráter reacionário inédito na história do Brasil”, a presidente recuou e rapidamente apagou o seu post. 

Ou seja: não se entendem nem entre si, e há uma subserviência abjeta a quem está um galho acima na árvore do poder. ”

E conclui Marta de Senna: ” Todos reconhecem o direito que tem a presidente de nomear pessoas de sua confiança para os cargos comissionados. Mas todos ficaram indignados com a maneira pela qual a exoneração foi feita: os pesquisadores souberam pelo Diário Oficial de 8 de janeiro que haviam sido exonerados. A Associação dos Servidores da Casa não é recebida pela presidente. E o pior: a presidente, particularmente, ou o Governo de forma geral, não tem quadros para substituir os intelectuais exonerados.” 

”Como afirmou em entrevista recente o agora ex-chefe da Pesquisa Ruiana, José Almino Alencar, que presidiu a Casa entre 2002 e 2010, “essa falta de quadros, até o Olavo de Carvalho reconhece”…

“De agora em diante, como dantes”, conclui por sua vez Silvio Tendler, ” a luta vai continuar, nas áreas da Arte, da Educação, da Cultura e afins contra a proposta malévola dos que querem destruir tudo e recomeçar do zero.”

”Nenhuma civilização”, diz ele, ” brotou em cima da barbárie, mas sim sobre um conjunto de conhecimentos acumulados pela humanidade ao longo dos milênios. Agora, não seria diferente. E os energúmenos que nos governam vão perceber isto.”

A propósito da resistência à tentativa de desmonte de Fundação Cada de Rui Barbosa, é salutar recordarmos a carta descoberta há menos de um mês, do escritor francês Albert Camus ao general de Gaulle, escrita durante a França ocupada pelos nazistas – a França de Vichy – onde ele se mostra preocupado com o que ” virá depois ( da guerra); qual a França que sobrará da mediocridade imposta.”

Na carta, um documento histórico intitulado Um intelectual resistente, escreve Camus: ”O dever de todo resistente é o de lembrar as pessoas todos os dias, todas as horas se necessário, em todos os artigos, em todas as transmissões, todas as reuniões, todas as proclamações o que se está defendendo na reação aos nazistas. O que se está combatendo quando se combate a escuridão; qualquer escuridão.”

Aqui, a reação à escuridão programada pelos energúmenos.