O novo proletariado e a centralidade do trabalho
Por Nivaldo Santana
No final do século 20, três fatores levaram alguns teóricos a prognosticar que o trabalho teria perdido a centralidade – e que os trabalhadores não deteriam mais o protagonismo político. Com isso, a teoria de Karl Marx sobre as classes sociais e a superação do capitalismo teriam igualmente perdido a validade.
O primeiro fator foi a crise que se abateu sobre as experiências socialistas e socialdemocratas, particularmente na Europa. Em segundo, o avanço do conservadorismo neoliberal. Terceiro: as profundas mudanças no processo e na organização do trabalho, com a diminuição do peso da indústria e o avanço do setor de serviços.
Vários pensadores passaram a pregar o fim da centralidade do trabalho – de seguidores da Escola de Frankfurt a teóricos dissidentes dos partidos comunistas europeus, passando por pensadores pós-modernos. André Gorz (1923-2007), autor do livro Adeus ao Proletariado, foi um deles, com alguma influência no Brasil. Foi refutado no Brasil, dentre outros, pelo professor da Unicamp Ricardo Antunes, no livro Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho.
Gorz considerava que o trabalho socialmente organizado seria extinto; que cada vez menos pessoas produziam cada vez mais riquezas; e que estamos em um período de transição – de substituição da sociedade do trabalho para a sociedade do conhecimento. Segundo ele, a economia imaterial – cuja riqueza maior são as ideias, a criatividade, a capacidade de aprendizagem – estaria superando a riqueza material.
Conforme esse pensamento, o proletariado, com a perda da centralidade do trabalho, deixaria a condição de vanguarda. Na sociedade pós-industrial, emergiriam novos movimentos para liderar o processo de transformação. Questões ligadas a meio ambiente, feminismo, direitos humanos, paz, economia solidária, etc. expressariam com maior representatividade as demandas da sociedade contemporânea, ultrapassando as teorias universalizantes e científicas. A defesa de causas particularistas – e não os grandes ideais – seria o motor das transformações.
O que Marx dizia
Para refutar a tese da perda da centralidade do trabalho, é necessário resgatar e reafirmar as concepções essenciais de Marx e sua crítica ao capitalismo – cujo desdobramento é a necessidade de que esse modo de produção seja substituído e superado pelo socialismo.
Para Marx, “como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre o homem e a natureza e, portanto, da vida humana”. Engels reforça essa compreensão, ao dizer que “o trabalho é a fonte (ao lado da natureza) de toda a riqueza. É a condição básica fundamental de toda vida humana”.
A teoria marxista ensina que os grandes avanços tecnológicos, o brutal aumento da produtividade, a concentração e a centralização do capital pelo desenvolvimento das forças produtivas são inerentes ao capitalismo. Provocam mutações no trabalho e um declínio relativo do trabalho humano, do “trabalho vivo” (capital variável) – e, em contrapartida, um crescimento do “trabalho morto”, com a ampliação do uso de máquinas, equipamentos, instalações, etc. (capital constante).
A substituição da força de trabalho por meios de produção – o chamado “aumento da composição orgânica do capital” – é um problema fundamental da economia capitalista e está na base para a lei de tendência para a queda da taxa de lucro, decorrente da mesma lógica do sistema. Essa lei, para Marx, é um problema fundamental da economia capitalista.
Conforme sintetiza o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, “o capitalismo é um sistema que vive em permanente transformação, mas continua o mesmo. Desenvolve novas tecnologias, amplia os mecanismos de exploração da força de trabalho, multiplica os espaços geográficos para a produção. Mas permanece com a mesma estrutura, buscando ampliar o capital e mantendo-o concentrado nas mãos dos proprietários dos meios de produção”.
O impacto das revoluções industriais
As transformações do capitalismo mudam o conteúdo do trabalho, mas não negam a sua centralidade. O próprio Marx já antecipava essas metamorfoses: “As diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato da produção de mercadorias – este trabalha mais com as mãos, aquele mais com a cabeça, um como diretor, engenheiro ou técnico, etc., outro como capataz, um outro como operário manual direito ou inclusive como simples ajudante”.
As três grandes revoluções industriais reforçam esse entendimento. Com a 1ª Revolução Industrial, iniciada por volta de 1750, na Inglaterra, as máquinas a vapor, movida por carvão, passaram a ser usadas, com o tear mecânico impulsionando a indústria têxtil. Nessa fase, havia o trabalhador especializado, a superação do trabalho rural-agrícola pelo trabalho urbano-industrial. Os catastrofistas da época julgavam que o desemprego se generalizaria.
De 1850 até 1945, graças à 2ª Revolução Industrial, a Alemanha e os Estados Unidos se juntaram à França e ao Reino Unido na liderança da indústria. O uso da energia elétrica, do petróleo, do motor à explosão, do telégrafo, da ferrovia, do aço, do alumínio provoca um grande aumento da produtividade do trabalho. É o período do fordismo-taylorismo – marcado por produção em massa, linha de montagem e grande concentração de trabalhadores. A organização do trabalho é científica e o trabalhador, diferentemente da fase anterior, é “desqualificado”.
Já com a 3ª Revolução Industrial, a partir de 1950, a indústria entra na era da informática, da microeletrônica, da robótica, da biotecnologia. O computador é a máquina símbolo do período. Há uma superação do fordismo-taylorismo por outras formas de gestão e organização do trabalho, com destaque para o toyotismo. O trabalho é mais descentralizado. Enquanto diminui o trabalho fabril, cresce o setor de serviços. O trabalho é flexível, polivalente, adquire outros conteúdos.
Novo perfil dos trabalhadores
Existe hoje um proletariado de serviços, em número muito maior do que o proletariado industrial. Cresce o número de trabalhadores precários e em plataformas digitais (aplicativos). Esse novo perfil do trabalhador requer uma visão renovada da conceituação do “proletariado” – que incorpore o proletariado do setor de serviços, os trabalhadores por conta própria, informais, etc. Há uma imensa diversificação e precarização das ocupações, com aumento – e não diminuição – no número de trabalhadores.
Hoje se discute se há uma 4ª Revolução Industrial ou o aprofundamento da 3ª Revolução. Independentemente de ser a continuidade da terceira ou nova revolução industrial, o fato é que há enormes avanços no trabalho, com a vigência da inteligência artificial, da internet das coisas, da impressora 3D, etc. Há uma substituição do trabalho humano por máquinas inteligentes e robôs, o fim de diversas profissões e, paralelamente, o surgimento de outras.
Como em outras épocas de mudanças no mundo do trabalho, agora também se busca construir uma narrativa segundo a qual a revolução tecnológica e o desemprego em larga escala são irreversíveis e deve-se limitar a luta para mitigar suas consequências. Os dados, no entanto, apontam em outra direção.
Em recente palestra no Centro de Estudos Sindicais (CES), o professor Márcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, afirmou que os cinco países mais adiantados no uso de robôs – China, Japão, Coreia do Sul, Estados Unidos e Alemanha – são os que têm menos desemprego. Com taxas médias de desocupação inferiores a 4%, essas nações vivem um quase “pleno emprego”. Inversamente, países como o Brasil, com grande defasagem tecnológica, têm índices de desemprego superiores a dois dígitos
Outro exemplo dado pelo professor Pochmann é o do setor bancário brasileiro – um dos que mais investem em automação. O número de bancários, ao contrário do que se acredita e se propaga, cresceu bastante. No Brasil, além dos 400 mil bancários com vínculos formais aos bancos, há 1,2 milhão de correspondentes bancários e mais de 110 mil autônomos que fazem trabalho de consultoria bancária. A automação ampliou e diversificou as atividades bancárias, gerou novos empregos e novas funções.
A necessidade de um partido classista
Não se pode cair, portanto, na armadilha de que o progresso técnico é ruim porque gera desemprego. Os números não corroboram essa tese. As inovações tecnológicas mudam o perfil do trabalhador, o trabalho fica mais heterogêneo, coexiste o trabalho precário com trabalho sofisticado e há uma imensa diversificação dos locais de trabalho.
Os capitalistas se aproveitam disso para camuflar o vínculo trabalhista, apelidando as novas relações de “empreendedorismo”, “trabalho por conta própria” ou “PJ” (pessoa jurídica). Nesse rumo, pretende-se consolidar a individualização das relações do trabalho e nivelar por baixo os direitos trabalhistas.
Todas essas mudanças, no entanto, afetam a subjetividade do trabalhador. Seu grau de pertencimento de classe fica difuso. A organização, no plano partidário e sindical, exige novas abordagens. Há uma “concorrência” com outras formas de organização para conquistar coração e mente dos trabalhadores. Premidos pelas dificuldades, muitos buscam na religião – e alguns até em atividades ilícitas – formas para exercer sua sociabilidade. Esse quadro complexo de aumento da exploração do trabalho e degradação das condições de vida formam o caldo de cultura para ideias da extrema-direita.
Mais do que nunca, porém, o enfrentamento do capitalismo e a luta por uma nova sociedade passam pela reafirmação da centralidade do trabalho como força estruturante da sociedade – e dos trabalhadores como protagonistas das transformações. Só o partido político de classe, organização superior e de vanguarda dos trabalhadores, será capaz de dar uma resposta global ao capitalismo. Daí a sua necessidade histórica!
A atualização do pensamento marxista, sempre necessária, não pode negar os eixos centrais da análise do capitalismo. A centralidade do trabalho, a exploração do trabalho assalariado como fonte da mais valia, a propriedade privada dos meios de produção e a crescente centralização e concentração do capital permanecem como base do sistema. Assim, a contradição entre capital e trabalho, mesmo adquirindo novos conteúdos e novas formas, continua como uma contradição fundamental do capitalismo.
Nivaldo Santana é Secretário de Relações Internacionais da CTB e secretário de Movimento Sindical do PCdoB. Foi deputado estadual em São Paulo por três mandatos (1995-2007)