Caminho da barbárie: a PEC 187 e a destruição das políticas públicas
A Proposta de Emenda Constitucional 187: Objetivos e Justificativa
(Apresentação feita à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal no dia 11 de fevereiro de 2020 sobre os impactos da PEC 187)*
Na Justificativa da PEC, argumenta-se “que a proposta visa a modernizar e aperfeiçoar os mecanismos de gestão orçamentária e financeira da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, permitindo que os respectivos Poderes Legislativos reavaliem os diversos fundos públicos hoje existentes, de forma a restaurar a capacidade do Estado Brasileiro de definir e ter políticas públicas condizentes com a realidade socioeconômica atual, sem estar preso a prioridades definidas no passado distante, que dadas as dinâmicas políticas, sociais, econômicas e demográficas, podem não mais refletir as necessidade e prioridades da sociedade brasileira no momento atual” (Relato do Senador Otto Alencar).
Essa justificativa, contudo, não se sustenta à luz de uma análise um pouco mais cuidadosa dos elementos constitutivos da PEC em consideração. Com efeito, como irei argumentar na sequência, a PEC 187 se constitui numa grave ameaça à institucionalidade da gestão das políticas públicas no Brasil, fazendo tábula rasa não só dos mecanismos de vinculação de recursos para o financiamento de políticas de Estado em áreas essenciais ao desenvolvimento econômico e social do Brasil, como também dos mecanismos de gestão e controle de aplicação desses recursos, sem propor nada para por no lugar.
A PEC 187, pelos seus potenciais efeitos destruidores, caso aprovada pelo Congresso Nacional, seria o equivalente nos dias de hoje ao saque de Roma pelos Bárbaros liderados por Alarico em 24 de agosto de 410 D.C. Essa data marcaria o fim de fato, ainda que não de jure, do Império Romano do Ocidente, mergulhando a Europa Ocidental numa idade das trevas por 300 anos, a qual começaria a ser desfeita apenas com o Imperador Carlos Magno.
Destruir sem criar
Primeiramente, precisamos ter claro que a PEC 187 não estabelece nenhum parâmetro para (sic) “modernizar e aperfeiçoar os mecanismos de gestão orçamentária e financeira”; resumindo-se a destruir a institucionalidade existente, construída arduamente ao longo de várias décadas, por intermédio:
(i) da desvinculação das receitas públicas aos fundos públicos ao final do exercício financeiro em que ocorrer a promulgação da EC. Nesse contexto, cabe perguntar como os programas que são atualmente financiados pelos recursos desses fundos serão financiados? A PEC deixa implícita a ideia de que as destinações desses recursos serão extintas, pois somente dessa forma será possível “abrir espaço fiscal”
(ii) da extinção dos fundos públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios existentes na data da promulgação da Emenda Constitucional, se não forem ratificados pelos respectivos Poderes Legislativos, por meio de lei complementar específica para cada um dos fundos, até o final do segundo exercício financeiro subsequente à data da promulgação da Emenda Constitucional.
Considerando que atualmente existem 248 fundos públicos infraconstitucionais (Raimundo e Abouchehid, 2020) e que a existência de cada fundo teria que ser ratificada pelo poder legislativo competente, de forma individual e por intermédio de lei complementar, num prazo máximo de dois anos; o cenário mais provável é que a imensa maioria desses fundos seja extinta em função da incapacidade dos poderes legislativos de avaliar de forma adequada os custos e benefícios de cada fundo e assim deliberar sobre a conveniência ou não de cada um deles.
Deve-se observar que o Ministério da Economia não elaborou, até o presente momento, nenhum estudo pormenorizado sobre a eficiência e/ou conveniência dos fundos atualmente existentes, delegando para os parlamentares a tarefa de julgar, sem o necessário embasamento técnico e a “toque de caixa”, uma PEC que muda de forma radical e profunda a institucionalidade da gestão orçamentária e financeira do Estado Brasileiro.
Pressupostos da PEC 187
A PEC 187 é elaborada com base em dois pressupostos:
Primeiro Pressuposto: grande parte dos fundos públicos existentes atualmente reflete escolhas políticas que não seriam mais compatíveis com os anseios da sociedade brasileira e, portanto, devem ser extintos.
Segundo Pressuposto: As vinculações entre receitas e despesas públicas poderiam gerar ineficiências na alocação de recursos. Uma prova dessa ineficiência seria o acúmulo de recursos financeiros pelos fundos, devido ao excesso de receitas vinculadas em relação às despesas executadas, enquanto o setor público como um todo incorre em elevado déficit fiscal e endividamento. Com efeito, os fundos teriam, atualmente, um superávit financeiro de R$ 219 bilhões, o qual poderia ser redistribuído para outras finalidades e para o abatimento da dívida pública.
Como ficará claro na sequência, ambos os pressupostos são incorretos.
Políticas públicas financiadas pelos fundos
Dos 241 fundos infraconstitucionais sujeitos a extinção, foram divulgados os patrimônios financeiros de 43 fundos, somando um valor de R$ 212,9 bilhões. Se considerarmos os fundos com patrimônio superior a R$ 300 milhões, teremos um total de 24 fundos, os quais concentram 93% dos recursos estimados pelo governo.
Áreas de atuação desses 24 fundos:
– Políticas Sociais: seguridade social e educação.
– Setores específicos: exportação, cafeeiro, aviação civil e telecomunicações.
– Desenvolvimento tecnológico: Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações.
– Segurança Pública e Defesa: fundos ligados às forças armadas e ao setor penitenciário, entre outros.
Entre esses 24 fundos com maior relevância em termos de resultado financeiro, podemos destacar os seguintes:
Fundo Social:
Criado em 2010 tem por objetivo constituir fonte de recursos para o desenvolvimento social e regional nas áreas de educação e saúdes públicas. Fonte de financiamento: royalties do petróleo do pré-sal; em 2018, 97% dos recursos do FS se concentraram no MEC.
Fundo de Desenvolvimento do Nordeste:
Tem por objetivo assegurar recursos para a realização de investimentos na área de atuação da SUDENE. Finalidade: Empreendimentos no setor de infraestrutura, principalmente nas áreas de saneamento, abastecimento de água e energias renováveis.
Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico:
Tem por objetivo financiar a inovação e o desenvolvimento tecnológico. A FINEP exerce a função de secretaria executiva do FNDCT. Os recursos do fundo são destinados a ações de financiamento de empresas, ações não reembolsáveis e operações especiais.
Fontes do FNDCT:
– Royalties sobre a produção de petróleo ou gás natural;
– Percentual da receita operacional líquida de empresas de energia elétrica; percentual dos recursos decorrentes de contratos de cessão de direitos de uso da infraestrutura rodoviária para fins de exploração de sistemas de comunicação e telecomunicações;
– Percentual dos recursos oriundos da compensação financeira pela utilização de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica;
– Percentual das receitas destinadas ao fomento de atividade de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico do setor espacial;
– As receitas da contribuição de intervenção no domínio econômico;
– Percentual do faturamento bruto de empresas que desenvolvam ou produzam bens e serviços de informática e automação;
– Percentual sobre a parcela do produto da arrecadação do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante – AFRMM que cabe ao Fundo da Marinha Mercante – FMM; o produto do rendimento de suas aplicações em programas e projetos, bem como nos fundos de investimentos;
– Recursos provenientes de incentivos fiscais;
– O retorno dos empréstimos concedidos à Finep;
– Recursos do Tesouro;
– Empréstimos de instituições financeiras ou outras entidades
O FNDCT financia:
– Programas de construção, modernização e manutenção dos laboratórios de pesquisas do país e infraestrutura em universidades;
– Aquisição, instalação e manutenção de equipamentos;
– Programas de interação de Institutos de Ciência e Tecnologia (ICTs) com Empresas;
– Programas de fomento e subvenção econômica à inovação empresarial e empreendedorismo tecnológico;
– Projetos e plantas industriais de tecnologia avançada ou em desenvolvimento
Fundo Nacional de Assistência Social:
Proporciona recursos para o BPC e para serviços, programas e projetos de assistência social; sendo de fundamental importância na política de assistência social aos municípios.
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação:
Trata-se de autarquia federal criada pela lei 5537 de 21/11/1968 e alterada pelo decreto lei 872 de 15/09/1969 é responsável pela execução das políticas educacionais do MEC.
Em 2018 os programas do FNDE distribuíram cerca de R$ 18,5 bilhões entre Estados e Municípios.
Fundo Nacional sobre Mudança do Clima:
Criado pela lei 12.144 de 09/12/2009, trata-se de um fundo vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e gerido pelo BNDES, tem por objetivo oferecer suporte financeiro para o desenvolvimento dos programas e metas da Política Nacional de Mudança do Clima.
Entre as fontes de recursos do FNMC encontram-se:
– Doações realizadas por entidades nacionais e internacionais, públicas e privadas.
– Empréstimos de instituições financeiras nacionais e internacionais.
Entre as destinações de recursos do FNMC temos:
– Desenvolvimento de produtos e serviços que contribuam para a dinâmica da conservação ambiental e estabilização da concentração de gases do efeito estufa.
– Apoio a cadeias produtivas sustentáveis.
– Pagamento por serviços ambientais às comunidades e aos indivíduos cujas atividades comprovadamente contribuam para a estocagem de carbono, atrelada a outros serviços ambientais.
Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES):
Constituído em 1999 por MP, transformado em lei em 2001. É um fundo gerado pelo MEC e pelo FNDE, tendo por objetivo oferecer financiamentos a alunos matriculados em cursos de graduação presencial em IES não-gratuitas para a cobertura do pagamento de suas mensalidades ao longo do período de vigência da matrícula. Após a conclusão do curso o aluno se compromete a ressarcir os recursos do fundo nos termos contratuais. É o caso típico de um “fundo rotativo”, pois no longo-prazo os pagamentos feitos pelos estudantes já formados deverão cobrir os novos financiamentos; tornando desnecessário novos aportes de recursos por parte da União.
À luz dessas considerações, uma primeira pergunta se coloca, a saber: O Congresso Nacional realmente acha que as políticas públicas financiadas por intermédio desses fundos, de fato, não representam mais as preferências e as necessidades da sociedade brasileira? Vamos acabar com o FNDE, com o FS, com o FIES, com o FNDCT, entre outros? Como as políticas públicas financiadas pelos mesmos serão executadas?
Com quais recursos? O que vai ser posto no lugar desses fundos? Já paramos para pensar nisso?
Uso das receitas desvinculadas
O artigo 4 da PEC 187 estabelece que parte dos recursos desvinculados sejam usados em projetos de erradicação da pobreza e investimento em infraestrutura. Acontece que dadas as regras fiscais existentes hoje no Brasil, esses recursos só estarão efetivamente disponíveis para esses fins se, e somente se, as despesas antes financiadas com os recursos vinculados forem EXTINTAS.
A desvinculação de receitas, por si só, não aumenta a arrecadação de impostos e nem diminui a despesa primária, tendo impacto nulo sobre o resultado primário e, portanto, sobre a evolução da dívida pública. Logo, a simples desvinculação de receitas e despesas não abre espaço fiscal no orçamento da União, Estados e Municípios. Além disso, devemos recordar que, em função da Emenda Constitucional 95 (do Teto dos Gastos), para que uma rubrica do orçamento da União possa aumentar, alguma outra rubrica precisa ser reduzida.
Em suma, a aprovação da PEC 187 implica a extinção de todos os programas financiados pela vinculação de receitas, a imensa maioria dos quais possui relevantes impactos sociais e econômicos. É o caminho para a barbárie.
Cabe aqui uma outra questão relevante para a reflexão. Os defensores da PEC poderiam argumentar que se os fundos públicos, ao menos aqueles mais importantes em termos de tamanho, financiam políticas públicas relevantes; então por que razão os mesmos possuem tantos recursos ociosos na forma de superávit financeiro? Isso não seria um sinal claro de que as vinculações orçamentárias estariam gerando um (sic) “excesso de receitas” para essas finalidades?
A resposta a essa pergunta é um rotundo não. Isso porque o acúmulo de resultado financeiro é, na maior parte das vezes, consequência de dois fatores:
Em primeiro lugar, do efeito combinado da meta de resultado primário e do teto de gastos que impede a realização de uma despesa discricionária mesmo quando existe previsão orçamentária para a mesma. Isso ocorre na fase de elaboração da Lei Orçamentária Anual, a qual precisa obrigatoriamente respeitar a meta de primário e o teto de gastos fazendo com que despesas discricionárias com previsão de receita sejam suprimidas da Lei Orçamentária Anual (L.O.A).
Em segundo lugar, do contingenciamento de recursos feitos periodicamente pelo governo, o que termina por impedir a realização de gastos discricionários que tenham sido aprovados na Lei Orçamentária Anual.
Em função dos fatores mencionados acima, a vinculação de receitas, num contexto em que não há obrigatoriedade em executar as despesas que seriam financiadas pelas mesmas, tem como contrapartida a geração de um “superávit financeiro”, de natureza puramente contábil, o qual acaba sendo remanejado para obter a meta de resultado primário definida na L.O.A.
Uma última indagação diz respeito aos possíveis efeitos da PEC 187 sobre a evolução da dívida pública da União. Um das questões levantadas em prol da defesa da PEC 187 é que o resultado financeiro desses fundos poderia ser usado para abater a dívida pública. Afinal de contas esses fundos (sic) inúteis têm uma disponibilidade de R$ 219 bilhões ociosos na Conta Única do Tesouro Nacional. Sendo assim, não seria melhor usar esses recursos para abater a dívida pública?
Com respeito a essa possibilidade, A Instituição Fiscal Independente, no seu comentário número 4, datado de 08 de novembro de 2019, afirma que:
“(…) No caso da União, não há como utilizá-los para reduzir a dívida pública federal, já que o eventual uso para resgate da dívida mobiliária junto ao mercado levaria à necessidade de compensar o aumento de liquidez com a realização de operações compromissadas do governo federal que também compõe o passivo federal. Uma possível providência seria fazer um encontro de contas entre o saldo da conta única e a carteira de títulos públicos que são, respectivamente, uma obrigação e um ativo junto ao Tesouro Nacional” (IFI, 2019, p.4).
Da citação acima vemos que não há nenhum impacto direto da PEC 187 sobre a dívida pública da União. O único efeito possivelmente benéfico da mesma seria permitir um encontro de contas do resultado dos fundos com a carteira (livre) de títulos públicos do Banco Central o que permitiria reduzir a dívida bruta medida, não pelos critérios contábeis usados atualmente no Brasil; mas pelos critérios usados pelo Fundo Monetário Internacional, os quais incluem na dívida bruta do governo os títulos públicos na carteira das autoridades monetárias.
Mesmo essa proposta da IFI de encontro de contas é um nonsense, pois, em primeiro lugar, não altera a dívida mobiliária federal líquida, que é o resultado da diferença entre os ativos e passivos do governo federal. Deve-se ressaltar que o indicador relevante de endividamento de qualquer agente econômico – governo incluso – é o endividamento líquido, não o bruto.
Em segundo lugar, o eventual uso do resultado financeiro dos fundos para abater a dívida pública bruta só poderia ser realizado por intermédio de recompra da assim chamada “carteira livre” do Banco Central do Brasil, que é constituída dos títulos públicos que o Tesouro emite para permitir ao Banco Central executar a política monetária. Se essa carteira for extinta, o Banco Central não terá instrumentos para executar a política monetária, obrigando assim ao Tesouro Nacional emitir novos títulos públicos e consigná-los ao Banco Central para que este possa executar sua política monetária.
Está claro, portanto, que a estabilização/redução da dívida pública (como proporção do PIB) não será obtida pela extinção dos fundos federais ou pela desvinculação das receitas; mas só pode ser obtida pela redução do déficit nominal do setor público, o que pode ser feito de três formas:
1 – Redução de despesas (por exemplo, redução do gasto tributário)
2 – Aumento de Impostos (por exemplo, instituição de I.R sobre lucros e dividendos distribuídos e imposto sobre grande fortunas).
3- Redução dos encargos financeiros da dívida pública (redução da taxa básica de juros)
Recomendação à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal
À luz dessas considerações, sou favorável à reprovação da PEC 187, podendo o Senado Federal, se assim julgar conveniente, solicitar aos Departamentos de Economia das Instituições Federais de Ensino Superior um estudo detalhado sobre os custos e os benefícios dos fundos públicos existentes atualmente, propostas de melhoria e/ou recomendação de extinção daqueles cuja manutenção não seja mais justificável em termos econômicos e/ou sociais.
Caso o Senado decida pela aprovação da PEC 187, sugiro que seja acatada a emenda do Senador José Serra que suprime o artigo 5?, de forma a impedir que os superávits financeiros acumulados em fundos públicos sejam resgatados antes do prazo previsto para a sua extinção na referida proposta de emenda à constituição.
O vídeo da audiência pública encontra-se disponível AQUI.
* José Luis da Costa Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.
Referências
Instituição Fiscal Independente. (2019). “A PEC Emergencial, a PEC dos Fundos e a PEC do Pacto Federativo”. Comentário da IFI nº 4, 08 de novembro.
Raimundo, L.C; Abouchedid, S.C. (2020). “Análise da PEC 187/2019: Extinção dos Fundos públicos, Desorganização do Estado e Fragilização das Políticas Públicas”. FOCATE: Brasília.