“Tiemblan los Chicago Boys.
Aguanta el movimiento feminista”

(Grafitti na fachada da Universidade Católica de Chile, 2018)

1.
Com a ferramenta da greve feministas, mapeiam-se novas formas de exploração dos corpos e territórios, a partir de uma perspectiva simultânea de visibilização e insubordinação. A greve revela a composição heterogênea do trabalho em chave feminista, reconhecendo labores historicamente depreciados, mostrando sua engrenagem com a precarização geral e se apropriando de uma ferramenta tradicional de luta para transbordá-la e reinventá-la

A greve internacional abriu uma perspectiva feminista sobre o trabalho. Porque a perspectiva feminista reconhece o trabalho territorial, doméstico, reprodutivo e migrante, ampliando a partir da base a própria noção de classe trabalhadora. Começa por assumir que 40% dxs trabalhadorxs do nosso país (Argentina) estão em diversas dimensões da economia chamada informal e reivindicada como popular. Porque torna visível e valoriza o trabalho historicamente desconhecido e desvalorizado. Por isso, gostamos de afirmar que #TrabalhadorasSomosTodas.

Mas, de modo ainda mais radical: a greve feminista nos coloca em estado de investigação prática. O que chamamos de trabalho, a partir das experiência vital e laboral de mulheres, lésbicas, trans e travestis? Ao ritmo do que significa parar, vamos mapeando de modo prático a multiplicidade de tarefas e jornadas intensivas e extensivas que não são pagas, são mal pagas, ou são remuneradas sob estrita hierarquia. Algumas destas tarefas quase nem eram nomeadas; outras tinham nomes que as menosprezavam.

A greve feminista, além disso, ganha força a partir da impossibilidade: as que não podem parar, mas desejam fazê-lo; as que não podem deixar de trabalhar nem um dia, e querem rebelar-se contra este esgotamento; as que acreditavam que sem autorização da hierarquia do sindicato não havia como, e chamaram a greve as que imaginaram que a greve pudesse ser feita contra os agrotóxicos e as finanças. Todas e cada uma ampliamos as fronteiras da greve. Da conjunção entre impossibilidade e desejo, surge uma imaginação radical sobre a forma múltipla do parar feminista, que leva a greve a lugares insuspeitos, que a desloca em sua capacidade de inclusão de experiências vitais, que a reinventa desde os corpos desobedientes ao que é reconhecido como trabalho

Com a greve, construímos uma economia da visibilidade para o diferencial de exploração que caracteriza o trabalho feminizado. Ou seja, para a subordinação específica que marca o trabalho comunitário, de bairro, migrante, reprodutivo. Entendemos no dia a dia como sua subordinação se relaciona com todas as outras formas de trabalho. Também frisamos que há um ponto concreto de partida deste diferencial: a reprodução da vida, desde sua organização minuciosa e permanente, que é explorada pelo capital às custas de sua obrigatoriedade, gratuidade ou pagamento insuficiente. Mas fomos além: a partir da reprodução – historicamente negada, subordinada e ligada a processos de domesticação e colonização – construímos as categorias para repensar os trabalhos assalariados, sindicalizados ou não, atravessados por níveis cada vez maiores de precarização.

Com esta forma de entrelaçar todos os modos de produção de valor (e sua exploração e extração), mapeamos também a imbricação concreta entre as violências patriarcais, coloniais e capitalistas. Isso evidencia, uma vez mais, que o movimento feminista não é exterior à questão de classe, embora às vezes procure-se apresentá-lo assim. Tampouco à questão de raça. Não há possibilidade de “isolar” o feminismo destas tramas onde se situa o combate às formas renovadas de exploração, extração, opressão e domínio. O feminismo como movimento exibe a classe em seu caráter histórico, marcado pela exclusão sistemática de todxs aquelxs não consideradxs trabalhadores assalariados brancos. E, portanto, não há classe sem pensar sua racialização, inscrita em uma divisão internacional de trabalho. Evidencia-se assim até que ponto a própria narrativa e as fórmulas organizativas de classe foram modos de subordinação sistemática do trabalho feminizado e migrante e, como tal, pedra angular da divisão do trabalho capitalista, patriarcal e colonial.

2.
Com a greve, produzimos uma nova compreensão da violência. Saímos do gueto da violência doméstica para conectá-la com a violência econômica, laboral, institucional, policial, racista e colonial. Deste modo, fica evidente a relação orgânica da violência machista e feminicida com a atual forma de acumulação de capital. O caráter anticapitalista, anticolonial e antipatriarcal do movimento feminista, em seu momento de massificação, vem de estabelecer e difundir esta compreensão de maneira prática.

Com a greve, produz-se um ponto de vista simultâneo de resistência à exploração, de insubordinação ao trabalho e de desobediência financeira.

Isso nos permite investigar o vínculo entre os conflitos nos territórios, diante das iniciativas neoextrativistas e de violência sexual; o nexo entre assédio e relações de poder, nos espaços laborais; também o modo como se combina a exploração do trabalho migrante e feminizado com a extração de valor realizada pelas finanças; o declínio da infraestrutura pública nos bairros e a especulação imobiliária (formal e informal); a clandestinidade do aborto e a criminalização das comunidades indígenas e negras. Todas estas formas de violência tomam o corpo das mulheres e os corpos feminizados como botim de guerra. Esta conexão entre as violências das despossessões e dos abusos não é apenas analítica: é praticada como elaboração coletiva para entender as relações de poder em que os feminicídios se fazem compreensíveis e para diagramar uma estratégia de organização e autodefesa. Neste sentido, o movimento feminista pratica uma pedagogia popular com este diagnóstico, que relaciona violências e opressões e o faz desde a iniciativa de desacatá-las.

Neste ponto, fugir da vitimização como narrativa totalizadora permite que o diagnóstico sobre as violências não se traduza em uma linguagem de pacificação, nem de puro luto ou lamento. Também repele as respostas institucionais que reforçam o gueto e que pretendem isolar ou resolver o problema com uma secretaria ou um programa. Estes instrumentos não deixam de ser importantes, sempre e quanto não sejam parte de uma tutelagem que codifica a vitimização e restringe a violência como unicamente doméstica. O diagnóstico da interseccionalidade das violências tornou-se possível por meio da greve, que é onde se constrói e amplifica outro lugar de fala e outro horizontes organizativo do movimento. O mapeamento amplo que isso permitiu amplia nosso olhar e vai às raízes da conexão entre patriarcado, capitalismo e colonialismo, traduzindo-a como construção de um sentido comum compartilhado.

3.
O movimento feminista atual caracteriza-se por duas dinâmicas singulares: a conjunção de massividade e radicalidade. É capaz de fazê-lo por construir proximidade entre lutas muito diferentes. Desta maneira, inventa e cultiva um modo de transversalidade política. O feminismo atual explicita algo que não parecia óbvio: que ninguém precisa de um território, refutando assim a ilusão metafísica do indivíduo isolado. Todxs estamos situadxs e, também neste sentido, o corpo começa a se perceber como um corpo-território. O feminismo, como movimento, deixou de ser uma exterioridade que se relaciona com “outrxs”, para ser tomado como chave para ler o conflito em cada território (doméstico, afetivo, laboral, migrante, artístico, camponês, urbano, feirantes, comunitário, etc). Isso faz com que emerja um feminismo de massas e intergeracional, porque é apropriado pelos mais diversos espaços e experiências.

Como se produz esta composição que se caracteriza por ser transversal? A partir da conexão entre as lutas. Mas a trama construída entre as lutas diversas não é espontânea nem natural. Em relação ao feminismo, prevaleceu o contrário, durante muito tempo: era entendido em sua variante institucional e ou acadêmica, mas historicamente dissociado de processos de confluência popular. Algumas linhas genealógicas fundamentais tornaram possível a expansão atual. Na Argentina, identificamos quatro: a história de luta pelos direitos humanos desde os anos 1970, protagonizada pelas Mães e Avós da Praça de Maio; as mais de três décadas do Encontro Nacional de Mulheres (agora plurinacional de mulheres, lésbicas, trans e travestis); a irrupção do movimento piqueteiro, de um protagonismo também feminizado no momento de enfrentar a crise social do começo do século; e uma ampla história do movimento de dissidências sexuais, que vai da herança da FLH (Frente de Libertação Homossexual) dos anos 70 à militância lésbicas pelo acesso autônomo ao aborto e o ativismo trans, travesti, intersexual e transgênero que revolucionou os corpos e as subjetividades do feminismo contra os limites biologicistas.

A transversalidade alcançada a partir da organização da greve atualiza estas linhas históricas e projeta um feminismo de massas, enraizado nas lutas concretas das trabalhadoras da economia popular, nas migrantes, nas cooperativistas, nas defensoras dos territórios, nas precarizadas, nas novas gerações de dissidências sexuais, nas donas de casa que renegam encerrar-se, na luta pelo direito ao aborto que é a luta ampliada pela autonomia do corpo, nas estudantes mobilizadas, nas que denunciam os agrotóxicos, nas trabalhadoras sexuais. Estabelece um horizonte comum em termos organizativos e funciona como catalisador prático.

O poderoso é que ao integrar esta multiplicidade de conflitos, redefine-se a dimensão de massas a partir de práticas e lutas que foram historicamente definidas como “minoritárias”.

Com isso, a oposição entre minoritário e majoritário se desloca: o minoritário ganha escala de massas como vetor de radicalização, no interior de uma composição que não para de se expandir. Desafia-se assim a máquina neoliberal de reconhecimento de minorias e de pacificação da diferença.

Esta transversalidade política nutre-se a partir dos diversos territórios em conflito. Constrói uma afetação comum para problemas que tendem a ser vividos como individuais; e um diagnóstico político para as violências que tendem a ser encapsuladas como domésticas. Isso complexifica certa ideia de solidariedade que supõe um grau de exterioridade que ratifica a distância em relação a outrxs. A transversalidade prioriza uma política de construção de proximidade e alianças, sem desconhecer as diferenças de intensidade nos conflitos.

4.
O movimento feminista lança uma nova crítica à economia política. Inclui uma denúncia radical às condições contemporâneas de valorização do capital e, portanto, atualiza a noção de exploração. Mas o faz ampliando o que se entende usualmente por economia.

Na Argentina, em particular, há um cruzamento que dá origem a uma nova crítica da economia política. Isso se deve ao encontro prático entre as economias populares e a economia feminista. As economias populares, como tramas produtivas e reprodutivas, expressam um acúmulo de lutas que abriu a imaginação da greve feminista.

É por isso que na Argentina a greve feminista consegue destacar, problematizar e valorizar uma multiplicidade de labores, a partir de um mapeamento do trabalho em chave feminista – na medida em que se vincula com a genealogia piqueteira e a problematização do trabalho assalariado e suas formas de “inclusão”. São estas experiências que estão na origem das economias populares e persistem como elemento de insurreição novamente convocado pelos feminismos populares.

Com a dinâmica de organização das greves feministas, ocorrem dois processos nas economias populares. Por um lado, a politização dos âmbitos reprodutivos, mais além dos alares, funciona como espaço concreto para elaborar a ampliação dos trabalhos que a greve valoriza. Por outro, a perspectiva feminista sobre estas tarefas permite evidenciar o conjunto de mandatos patriarcais e coloniais que as naturalizam e, portanto, habilitam as lógicas de exploração e extração sobre elas.

A greve feminista, ao colocar em marcha uma leitura que desacata a inscrição do labor reprodutivo em termos familiaristas, desafia o peso moral permanente imposto sobre os subsídios sociais e provê um cruzamento entre economia feminista e economia popular que radicaliza ambas experiências.

A partir da greve, além disso, o movimento feminista está produzindo figuras de subjetivação (trajetórias, formas de cooperação, modos de vida) que escapam do binarismo neoliberal. Este opõe vítimas e empresárias de si (inclusive na pseudolinguagem de gênero do “empoderamento” empreendedor). Os feminismos são antineoliberais porque se encarregam do problema da organização coletiva contra o sofrimento individual e denunciam a política sistemática de despossessões.

O movimento feminista atual estabelece uma caracterização precisa do neoliberalismo, e por isso abre horizontes para o que chamamos de política antineoliberal. Dado o tipo de conflitividade que mapeia, visibiliza e mobiliza, emerge uma noção complexa de neoliberalismo que não se reduz ao binômio Estado x Mercado.

Pelo contrário: assinala-se a partir das lutas a conexão entre a lógica extrativa do capital e sua imbricação com as políticas estatais, identificando por que se explora e extrai valor de determinados corpos-territórios. A perspectiva de economia feminista que surge daqui e, então, anticapitalista.

5.
O movimento feminista tomas as ruas e constrói em assembleias, tece poder nos territórios e elabora análises de conjuntura. Produz um contrapoder que articula uma dinâmica de conquista de direitos com um horizonte de radicalidade. Desarma o binarismo entre reforma e revolução.

Dissemos que com a greve o movimento feminista constrói uma força comum contra a precarização; o “ajuste”, as demissões e as violências que implicam. Ao fazê-lo, realça seu sentido antineoliberal (ou seja, impugna a racionalidade empresarial como ordem do mundo), afirmando sua natureza classista (ou seja, não naturaliza nem minimiza a questão da exploração), anticolonial e antipatriarcal (porque denuncia e desacata a exploração específica do capitalismo contra as mulheres e os corpos feminizados e racializados). Esta dinâmica é essencial: produz um cruzamento prático entre gênero, raça e classe e gera outra racionalidade para ler a conjuntura. Tanto nos debates parlamentares (afirmando que não há direito nem força de lei que não se formule primeiro nos protestos sociais) como na radicalização da organização popular, os feminismos resistem a ser reduzidos a uma “cota” ou um “setor”.

Esta dinâmica do movimento é dupla: constrói sua própria institucionalidade (redes autônomas) e, ao mesmo tempo, interpela a institucionalidade existente. Cria ao seu redor uma temporalidade estratégica que atua simultaneamente no presente com o que existe, e com o que existe também no presente – mas como virtualidade, como possibilidade ainda aberta, não ainda realizada. O movimento feminista não esgota suas demandas nem suas lutas num horizonte estatal, mesmo que não desconheça este marco de ação. Decididamente, não projeta o Estado como instância de resolução das violências. A dimensão utópica tem, no entanto, eficácia no presente e não na postergação de um objetivo final futuro e distante. Por isso,também a dimensão utópica pode trabalhar nas contradições existentes, sem esperar a aparição de sujeitxs absolutamente liberadxs nem condições ideais de lutas, e sem confiar num único espaço que totalize a transformação social. Apela à potência de ruptura de cada ação e não limita a ruptura a um momento final espetacular de uma acumulação estritamente evolutiva.

Isso, de novo, conecta-se com a potência da transversalidade, que cresce porque o ativismo feminista converteu-se em força disponível, que se coloca em movimento em diferentes espaços de luta e de vida. É um modo de agir que vai contra a “setorialização” da chamada “agenda de gênero” e contra a infantilização de suas práticas políticas. Ou seja, a transversalidade não é apenas uma forma de coordenação, mas também uma capacidade de fazer do feminismo uma força própria em cada lugar, e de não limitar-se a uma lógica de demandas pontuais. Sustentá-la não é fácil: implica um trabalho cotidiano de tessitura, conversação, traduções, ampliação de discussões, tentativas e erros. Mas o mais potente é que hoje esta transversalidade é sentida como necessidade e como desejo de abrir uma temporalidade aqui e agora da revolução…

6.
O feminismo contemporâneo tece um novo internacionalismo. Não se trata de uma estrutura que abstraia e torne homogêneas as lutas, para levá-las a um plano “superior”. O movimento é compreendido, ao contrário, como uma força concreta em cada lugar. Impulsiona uma dinâmica que se faz transnacional a partir de corpos e trajetórias situadas. Por isso, o movimento feminista expressas-se como força coordenada de desestabilização global, cuja potência está enraizada e emerge de maneira notável a partir do Sul

Trata-se de um internacionalismo desde os territórios em lucha. Por isso, sua construção é mais complexa e polifônica: inclui cada vez mais territórios e línguas. Não depende do marco do Estado-nação, por isso ultrapassa o próprio conceito de “internacionalismo”. Mais que internacional, é transnacional e plurinacional Porque reconhece outras geografias e traça outros mapas de aliança, encontro e convergência. Porque inclui uma crítica radical ao limite nacional como que se quer delimitas as lutas. Porque se conecta a partir das trajetórias migrantes. E porque aproxima paisagens que recombinam elementos urbanos, suburbanos, camponeses, indígenas, de comunidade e de bairro – portanto, articula múltiplas temporalidades.

O transnacionalismo feminista envolve uma crítica aos ataques neocoloniais contra os corpos-territórios. Denuncia os extrativismos e exibe sua conexão com o aumento das violências machistas e as formas de exploração laboral que têm na maquiladora uma cena fundante, em nosso continente.

A greve feminista constrói uma trama transnacional irrefreável, porque mapeia a contrapelo o mercado mundial que organiza a acumulação de capital. E, no entanto, este enlace transnacional não se organiza seguindo o calendário dos encontros de grandes organismos a serviço do capital. A partir da greve feminista, o movimento adota forma de coordenação de aqui, de comissão ali, de encontro de lutas acolá. São todas iniciativas que rompem fronteiras. Trata-se de um transnacionalismo que lançou a consigna global da greve e assim forjou uma coordenação de novo tipo: “se nós paramos, o mundo pára”.

A força de desestabilização é, então, global, porque primeiro existe em cada casa, em cada relação, em cada território, em cada assembleia, em cada universidade, em cada fábrica, em cada feira. Neste sentido, é inversa a uma longa tradição internacionalista que organiza a partir de cima, unificando e dando “coerência” às lutas a partir de sua adscrição a um programa.

A dimensão transnacional compõe o coletivo como uma pesquisa. Apresenta-se ao mesmo tempo como autoformação e como desejo de articulação com experiências que a princípio não estão próximas.

Isso é bem diferente que ver na coordenação coletiva um a priori moral, ou um exigência abstrata. O feminismo nos bairros, nas camas e nas casas não é menos internacionalista que o feminismo nas ruas ou em encontros regionais. Esta é sua potente política de lugar. Sua não disjunção, sua maneira de fazer transnacionalismo como política de raiz e como abertura dos territórios a suas conexões inesperadas, com extensão mundial.

7.
A resposta global à força transnacional feminista organiza-se como contraofensiva tripla: militar, econômica e religiosa. Isso explica por que hoje o neoliberalismo precisa de políticas conservadoras para estabilizar seu modo de governo.

O fascismo em coalizão com o neoliberalismo, que vemos nos planos regional e global, é uma leitura reacionária. Uma resposta à força liberada pelo movimento feminista internacional. Os feminismos que tomaram as ruas nos últimos anos, e que se capilarizaram como força concreta em todos os âmbitos e relações sociais, colocaram em questão a subordinação do trabalho reprodutivo e feminizado, a perseguição das economias migrantes, a naturalização dos abusos sexuais como disciplinamento da força de trabalho precarizada, a heterotermia familiar como refúgio diante desta mesma precariedade, o confinamento doméstico como lugar de submissão e invisibilidade, a criminalização do aborto e das práticas de soberania sobre os corpos, o envenenamento e despossessão de comunidades por corporações empresariais em conluio com Estados. Cada uma destas práticas fez tremer a normalidade da obediência, sua reprodução quotidiana e rotinizada.

A greve feminista, tecida como processo político, abriu uma temporalidade de revolta. Expandiu-se como desejo revolucionário. Não deixou lugar intocado pela maré de insubordinação e questionamento ao tornar-se ação de longo fôlego.

O neoliberalismo precisa agora aliar-se com forças conservadoras retrógradas, porque a desestabilização das autoridades patriarcais põe em risco a própria acumulação de capital. Diríamos assim: o capital é extremamente consciente de sua articulação orgânica com o colonialismo e o patriarcado, para reproduzir-se como relação de obediência. Se a fábrica e a família heteropatriarcal não conseguem manter a disciplina, e se o controle securitário é desafiado por formas feministas de gerir a interdependência, em épocas de precariedade existencial, a contraofensiva recrudesce. E vemos muito claramente por que neoliberalismo e conservadorismo compartilham objetivos estratégicos de normalização.

Como o movimento feminista politiza de maneira nova e radical a crise da reprodução social, que é ao mesmo tempo crise civilizatória e da estrutura patriarcal da sociedade, o impulso fascista que se põe em marcha para confrontá-lo propõe economias de obediência, para circunscrever a crise. Seja pelo lado dos fundamentalismo religiosos ou da construção paranoica de um novo inimigo interno, o que constatamos é a tentativa de aterrorizar as forças de desestabilização enraizadas num feminismo que rompeu fronteiras e é capaz de produzir código comum entre lutas diversas..

8.
O movimento feminista enfrenta agora a imagem mais abstrata do capital: o capital financeiro, esta forma de domínio que parece tornar impossível o antagonismo. Quando o movimento feminista confronta a financeirização da vida – ou seja, o regime em que o próprio ato de viver “produz” dívida –, desencadeia-se uma disputa com as novas formas de exploração e extração de valor.

No endividamento, aparece uma imagem “invertida” da própria produtividade de nossa força de trabalho, de nossa potência vital e da politização (valorização) das tarefas reprodutivas. A greve feminista, quando grita nos queremos livres, vivas e desendividadas!, consegue visibilizar as finanças em termos de conflitividade. Portanto enuncia a autodefesa de nossas autonomias. É necessário compreender o endividamento maciço que fincou raízes nas economias populares feminizadas e nas economias domésticas como uma contrarrevolução cotidiana. Como uma operação realizada no mesmos terrenos que os feminismos sacudiram.

Se o movimento feminista toma as finanças como um terreno de luta contra o empobrecimento generalizado, pratica uma contrapedagogia, apresentando este fenômeno em sua violência, suas fórmulas abstratas de exploração de corpos e territórios. Agregar a dimensão financeira a nossas lutas permite mapear os fluxos de dívida e completar o mapa da exploração em suas formas mais dinâmicas, versáteis e aparentemente “invisíveis”.

Entender como a dívida extrai valor das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias consideradas historicamente não produtivas, permite captar os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de colonização da reprodução da vida. E lava a entender a dívida como dispositivo privilegiado de lavagem de fluxos ilícitos, e portanto de conexão entre economias legais e ilegais, como maneira de aumentar a violência direta contra os territórios. O que se busca é precisamente uma “economia da obediência, que serve aos setores mais concentrados do capital e à caridade como despolitização do acesso a recursos.

Tudo isso nos abre, outra vez, possibilidades mais amplas e complexas de entender que o que diagnosticamos como as violências que tomam os corpos feminizados como novos territórios de conquista. Por isso, é necessário um gesto feminista sobre o mecanismo da dívida. Ele é também um gesto contra o mecanismo da culpabilização, sustentada pela moral heteropatriarcal e pela exploração exploração de nossas forças vitais.

Veronica Gago é doutora em Ciência Sociais, jornalista e militante do coletivo NiUnaMenos