Anti-mágica de Guedes: os bilhões que evaporaram
A conjuntura internacional não está mole, não! As turbulências e incertezas que tem sacudido os fluxos financeiros e de mercadorias ao longo dos últimos tempos pelo mundo afora exige profissionalismo e compromisso com um projeto nacional. Precisamos da presença de estrategistas que defendam os interesses do seu próprio país nesse cenário global marcado pelo acirramento de tensões entre os principais atores envolvidos.
Vamos combinar que Paulo Guedes não é exatamente o tipo de pessoa que deveria estar à frente do comando econômico de uma nação como o Brasil. Alguém que incorpora de forma doutrinária a defesa dos interesses do financismo internacional nunca poderia ser nosso (super) Ministro da Economia. E muito menos ainda em um momento onde a marca do quadro transcontinental é o do “salve-se quem puder”. As nações todas se estranhando e buscando assegurar seu espaço em detrimento das demais a qualquer preço
E vejam que não se trata de um polarização “esquerda x direita” ou de uma oposição do tipo políticas “ortodoxas x desenvolvimentistas”. Donald Trump, por exemplo, seja a caricatura mais emblemática de um neo-conservadorismo reacionário e direitista. E essa lógica vale tanto para dentro quanto para fora dos Estados Unidos. Porém, sempre que estiver em pauta alguma questão relativa à defesa dos interesses de seu próprio país, ele promoverá alguma flexibilização doutrinária em seu liberalismo de ocasião para defender a ideia de american first. Podemos concordar ou não com as alternativas que surgem lá da cozinha da Casa Branca nesses momentos difíceis, mas a função de um presidente é defender, em primeiro lugar, os interesses de seu país.
Pois aqui em nossas terras, ocorre exatamente o oposto. A duplinha dinâmica Bolsonaro & Guedes se coloca, a cada instante e a cada nova polêmica, sempre na posição de defesa dos interesses do financismo internacional, em particular os que têm mais marcadas as suas raízes norte-americanas. Isso vale para a privatização das empresas estatais estratégicas ou para a entrega das reservas do Pré Sal. Isto vale para a ampliação das concessões de infraestrutura ou para escancarar as nossas compras governamentais para o resto do mundo. Isso vale para entrega da Embraer ou para autorização das multinacionais explorarem a Amazônia. Isso vale para a continuidade das estratégias de desindustrialização de nosso País ou para o alinhamento automático com a diplomacia ianque em questões estratégicas e históricas propostas pelo Itamaraty.
Na verdade, Paulo Guedes é o melhor representante que as grandes corporações internacionais poderiam ter na defesa de seus interesses aqui dentro. Com um companheirão desses à frente das decisões de política econômica, elas nem precisam mais exercer aquele tradicional e conhecido “lobby” pelos corredores da Esplanada, com o intuito de conseguir uma benesse aqui ou um favorecimento ali. Tudo já vem pronto e acabado.
O movimento observado em nossas posições de reservas internacionais é um belo exemplo desse tipo de opção do governo Bolsonaro. Como se sabe, a acumulação desse estoque composto por moedas estrangeiros, títulos financeiros externos, ouro e outros itens guarda, em especial, uma relação direta com o histórico de nossa balança comercial. À medida que um país consegue manter um diferencial positivo de suas exportações em relação às importações, isso permite acumular de forma sistemática essa sequência de ganhos superavitários em dólar ou outro tipo de divisa. Na verdade, a questão é mais complexa, pois esse saldo poderia também ser utilizado para realizar investimentos públicos de longa maturação ou mesmo outro tipo de empréstimo no exterior. A China, por exemplo, faz tudo isso e ainda mantém sob seu controle um volume impressionante de reservas equivalente a US$ 3,1 trilhões. Para se ter uma ideia, esse montante representa por volta de 15% da dívida pública dos Estados Unidos. Mas voltemos ao nosso Brasil.
As colunas do Gráfico 1 abaixo representam bem a evolução do estoque das nossas reservas internacionais a partir de 2002. Quando Lula assume no começo de 2003 o nível era de US$ 38 bilhões. Ao longo de seus dois mandatos, o desempenho no setor externo permitiu que o estoque de reservas saltasse para US$ 289 bi ao final de 2010. O governo Dilma chega às vésperas do impeachment com valores ainda mais altos: em 2016 o valor das reservas havia atingido a marca expressiva de US$ 365 bi.
Todo esse movimento ao longo de mais de uma década mudou radicalmente o perfil de nossa dívida externa, que foi transformada em dívida interna. Talvez um dos eventos mais carregados de simbolismo tenha sido o momento em que, durante o ano de 2009, o Brasil passou a ser credor do Fundo Monetário Internacional (FMI). Basta olhar a dificuldade ainda enfrentada pela nossa vizinha Argentina no que se refere à sua vulnerabilidade externa para defendermos a todo custo essa soberania conquistada por nosso país.
Esse salto ofereceu ao Brasil uma importante folga no que se refere às contas externas. A linha do mesmo Gráfico 1 nos apresenta a evolução do total de importações anuais. Elas saem de US$ 47 bi e atingem US$ 138 bi para o mesmo período analisado. Isso significa que ao tempo em que as reservas aumentaram de quase 10 vezes, as importações apenas triplicaram de valor. Caso se argumente a favor desse estoque elevado de divisas como uma garantia contra crises internacionais inesperadas, o fato é que chegamos em 2016 com uma capacidade de honrar 30 meses de importações. É forçoso reconhecer que se trata de uma folga considerável. Isso porque existe uma regra informal nos manuais de economia recomendando algo em torno de seis meses de importações como garantia mínima de um colchão de reservas para os países. Segundo essa lógica, estaríamos com segurança externa acima do necessário.
No entanto, a partir da posse de Bolsonaro e da entrega do comando da economia para Paulo Guedes, a coisa muda de figura. Passada a lua de mel com o mercado de financeiro pelo início do mandato, os ataques no mercado de câmbio levam os responsáveis no Banco Central a uma política de queima de reservas com o intuito de aparentar uma calma na condução da economia. Guedes sempre batia no peito para se orgulhar de haveria um mercado cambial livre sob sua administração, sem qualquer intervenção do governo. Falácia. Pura demagogia. Como ninguém acreditou muito em suas bravatas, o mercado pagou pra ver. Quando foi obrigado a atuar, o aprendiz de liberal meteu os pés pelas mãos e perdeu completamente a credibilidade.
O Gráfico 2 nos evidencia essa trajetória irresponsável. Em agosto de 2019, o estoque de divisas era de US$ 386 bi e ele cai drasticamente para US$ 357 bi em dezembro. Ou seja, em poucos meses lá se foram US$ 30 bi desse importante colchão de garantias construído com grande esforço nacional ao longo de mais de uma década. Em apenas 120 dias Guedes transferiu graciosamente ao coração do financismo o valor equivalente àquilo que o Brasil levou para acumular em quase quatro anos a partir de 2003.
Ora, esse valor de US$ 30 bi corresponde a R$ 132 bi pela cotação do dólar no encerramento pouco antes do Carnaval. Para um discurso que exige um tal de “sacrifício de todos” em nome de uma ajuste marcado pela austeridade, parece que realmente alguma coisa está fora da ordem. Guedes comandou uma reforma da previdência com retirada de direitos de trabalhadores e aposentados. Guedes conduz a política fiscal com cortes e mais cortes de verbas orçamentárias das áreas sociais, em nome da busca tresloucada de um icônico superávit primário e do cumprimento da regra de ouro. Guedes apresenta uma Reforma Administrativa com promessa de corte de 25% nos salários dos servidores públicos. Guedes repete a cada dia – no que é papagaiado pelos “analistas de plantão” dos grandes meios de comunicação – que o governo nada pode fazer pois não tem dinheiro.
Um dos principais argumentos para adotar essa estratégia era de que o governo deveria “queimar” as reservas para impedir que a cotação do dólar passasse da barreira “psicológica” dos R$ 4,00. O Gráfico 3 oferece uma visão do que ocorreu a partir de agosto de 2019, quando o movimento especulativo no mercado de câmbio começou a testar a autoridade monetária. Ali se vê que a cotação atingiu a marca tão simbólica quanto temida e não mais retornou. Ao contrário, iniciou uma trajetória ascendente e não mais baixou dos R$ 4,00. Guedes parece ter ficado nervoso e começou com as declarações onde destila todo o preconceito de nossas elites contra os setores de baixo da pirâmide social.
Não, superministro, o problema do dólar a R$ 1,80 não era o fato de as empregadas domésticas poderem ir à Disney. A principal consequência negativa desse câmbio valorizado artificialmente foi a desindustrialização acelerada da estrutura produtiva brasileira que se viu desde então e a destruição de uma parcela significativa de nossa capacidade econômica instalada. Essa era a verdadeira “festa danada”!
Mas o fato concreto é que foi exatamente a partir de agosto de 2019 que o BC torrou os US$ 30 bi a que nos referimos acima. Perdemos um valor expressivo de nosso estoque estratégico de divisas. Sinalizamos indefinição e fraqueza junto aos especuladores nacionais e internacionais. E mantivemos o dólar perigosamente acima de R$ 4,30 ao longo de fevereiro.
O que mais impressiona é o silêncio conivente dos analistas dos grandes meios de comunicação a esse respeito. Afinal, não se trata de um opção de lançar mão de parcela das reservas para montar uma estratégia de desenvolvimento ou então para lastrear operações para financiar projetos de investimento de médio e longo prazo. Não! Paulo Guedes simplesmente comandou a transformação desses US$ 30 bi em pó. Esses valores simplesmente sumiram de nossa conta de reservas e estão muito bem acomodados nas polpudas contas das instituições financeiras internacionais.
*Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Fonte: Outras Palavras