A sombra do apocalipse projeta-se nas cidades
A estas alturas, fica escancarado que o modelo econômico do capitalismo global das últimas décadas, semelhante a um frágil castelo de cartas, uma pirâmide de endividamento geral com dinheiro virtual, altíssima concentração da renda e canalização maciça de dinheiro público para o setor privado, não é capaz de sustentar um evento catastrófico de maior porte.
O sistema tende a desmoronar pela incapacidade do setor privado em fazer frente a uma demanda que, ao contrário da sua lógica de funcionamento, precisa ser universal, e não exclusivista. O problema aqui é que se não for possível conseguir a atenção universal, todos, inclusive os mais ricos, serão afetados. Então, todo o sistema se volta para o setor público e, surpresa, descobre-se que este vinha sendo dilapidado pela ganância do sistema vigente. Esse é o poder “transformador” que a pandemia está gerando, ao ponto do presidente francês Macron, conhecido liberal, ir defender que “somente o serviço público é capaz de responder a uma situação como essa”.
A pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 tem um aspecto que ainda permite supor que não haverá – ainda – o fim da humanidade, ou um estremecimento daqueles que nos levará em definitivo para um mundo “à la Blade Runner”: é o fato de que a pandemia tende a retroceder à medida que pessoas vão se imunizando, fato que ocorreu na China, onde parece que não há mais casos no epicentro da epidemia, em Wuhan. Assim, apesar do pânico geral e das prováveis e tristes mortes de entes queridos, idosos ou pessoas com doenças crônicas, o mundo se agarra nessa perspectiva de que isso “só” durará alguns meses. A pergunta que fica é: e se qualquer hora aparecer um vírus cujas características não permitam que ele retroceda? O que estamos vendo é que ou o mundo muda sua lógica, ou a qualquer hora um vírus desses acaba com o mundo. É uma perspectiva transformadora, mas dada a lógica de uma sociedade criada na ganância, no individualismo, na competição, na busca do lucro acima de tudo, ela não será assim tão tranquila.
Um exemplo do quão difícil é essa transformação está na postura do Presidente Bolsonaro que, infelizmente, representa a forma de ser e de pensar de uma parcela significativa dos brasileiros, mas também da população mundial, já que alhures o seu papel é assumido por outros loucos de plantão, sendo o Trump o maioral. A questão é que o “sistema”, governado por corporações do capital, se tornou tão autônomo que consegue se autogovernar, desde que coloquem na condução da economia algum soldado mandado por ele, como no caso do Guedes no Brasil. De resto, na política quanto mais louco o cara, melhor, já que assim ele permanentemente atrai para si os holofotes com declarações incessantes em todos os meios da divulgação digital, flertando permanentemente com tudo que nossa civilização já viveu de mais tenebroso.
O problema é que esse modelo repousa no fato de que, para falar bem de nazista e mal de negros, mulheres e afins, qualquer tosco que se acha dono de toda a sabedoria do alto de seus parcos neurônios serve. São esses caras, iguais aqueles que você vê por ai se metendo em briga de macho, tomando bomba proibida na academia, andando no acostamento e batendo em gays e mulheres, que chegaram ao poder no Brasil. São muito bons para fazer essas coisas. A princípio, isso poderia durar quatro anos, quem sabe até oito. Danem-se os intelectuais, esquerdistas e outros comunistinhas se acharem isso ruim.
Só que não. Não esperavam, mas caiu no turno deles um acontecimento que supera sua capacidade reduzida de pensamento em milhares e milhares de vezes, que exige gestão pública de verdade, governança pra valer e, acreditem, isso não é fácil. Temos à frente do país, para conduzi-lo nesse momento de crise aguda, um louco que acha que a Terra é plana, outro que diz que se a China fosse livre (do comunismo) não teríamos o vírus, outro que nega a realidade e faz o oposto do que qualquer ser sensato com mais de cinco anos de idade entenderia que é o correto a ser feito, e assim por diante. A ironia disso tudo é que Olavo de Carvalho, guru dessa gente, diz ter sido infectado pelo vírus que até há pouco tinha seu alcance subestimado por seus seguidores.
Ou seja, estamos perdidos em termos de enfrentamento da pandemia, mas alguns ainda estão em situações ainda mais preocupantes: os mais velhos que não forem protegidos, mas, sobretudo, os mais velhos dentre os mais pobres. E, caso não se lembrem, o Brasil tem um bocado de pessoas vivendo com rendas baixíssimas. Um problema que estava na pauta dos governos Lula e Dilma com o slogan explícito de acabar com a miséria, mas que sumiu do horizonte desde que Temer foi ao poder. 1
O vírus bolsonaristas
E é aí que entra o maior problema: a imbecilidade óbvia de Bolsonaro, seus filhos, seus ministros, começa a ficar evidente até para aquela atriz arrependida da Globo que bateu panela contra a Dilma e agora bate contra o Capitão. Essa imbecilidade é óbvia e começa a render problemas políticos ao presidente, que vê a pressão de um impeachment se aproximar porque está sendo encampado por uma classe média sonsa, mas que tem acesso à informação e às suas sandices. É uma imbecilidade óbvia, de maneira mais ampla, não somente para as classes de renda que têm acesso ao Facebook, às redes sociais e à informação em geral, mas também nas faixas de renda baixa, há muita gente politizada e informada que já sabia há tempos de quem se tratava o capitão, que de mito não tem nada.
O problema é a massa de população facilmente manipulável que crê nas bobagens desse bando de imbecis. Gente de renda mais baixa, mas também uma multidão de gente de classe média iludida pelo consumismo, e uns tantos socialites habituados à sua condição de elite. Aquela que acreditou em fake News de mamadeira de piroca e que acha possível que a Terra seja mesmo plana. Para ela, tudo que sai da boca do Capitão e seus asseclas é sinal de irreverência, coragem, enfrentamento à “velha política”, é tudo aplaudido. Que ele diga que uma jornalista gosta de “dar furos”, ou que outro tem um “jeito de homossexual horrível”, é tudo aceitável e visto como o traço corajoso do presidente em enfrentar essa tal de “esquerda” que supostamente acabou com o Brasil.
Até aí está ótimo. Com isso, ele alimenta sua base política com suas bravatas manipuladoras. O problema é quando o assunto não é mais a manutenção de sua força política, mas a vida dos brasileiros. Nesse momento, a confusão entre o político tosco e o Estadista que não existe torna-se criminosa. Esse é o problema da pandemia de Covid-19 com Jair Bolsonaro. Agora, as bravatas não são mais uma questão de ferir nossa ética e de termos que engolir tosquices repugnantes, são uma questão de preservar ou não milhares de vidas.
Quando ele diz que o Coronavirus é superestimado, quando seu filho diz que é invenção dos chineses, quando ele sai contaminando seus apoiadores em praça pública, quando ele se confunde na difícil tarefa de manter uma máscara no rosto, ele está semeando a morte entre uma legião de coitados que acreditou na mamadeira de piroca. Afinal, se o “mito” diz que é assim, é porque ele está, de novo, enfrentando com sua ironia o “mimimi” dos que o perseguem. Nas cidadezinhas pelo interior do País, os relatos são de que a Covid-19 é assunto distante. Infelizmente, assim ocorre também nas grandes cidades, onde se discute em bares como o presidente é corajoso, engraçado, “macho”… Afinal, esse vírus é invenção de quem quer derrubá-lo.
A questão urbana no cenário apocalíptico
A confusão entre política de Estado e o jogo partidário-eleitoral se estabelece de vez. O político que visa a reeleição e não perder o poder se sobrepõe ao Estadista que deveria emergir, o Ministro das Relações Exteriores defende seu chefe, cujo filho busca uma guerra com a China e assim vai. Para piorar, loucos alucinados como os pastores Silas Malafaia e Edir Macedo, que há décadas se enriqueceram às custas da crença dessa população manipulada, semeiam a morte nas suas igrejas ao dizer que o vírus é coisa de Satanás, mantendo os cultos que aglomeram diariamente milhares de pessoas e dizendo que as orações irão salvá-los, provocando, assim, possíveis contaminações em massa.
É nesse cenário trágico que a questão urbana surge em toda sua plenitude. Seguindo dessa maneira, o vírus vai chegar, e rápido, nas populações onde a família toda vive em cômodos apertados, inclusive os avós idosos, com alta densidade populacional, grudados aos vizinhos e sem saneamento. Com quase metade da mão de obra ativa brasileira trabalhando na informalidade, falamos de uma população que não tem escolha senão ir ao trabalho para poder sobreviver. De pessoas que, quando a escola dos filhos para, não têm o que fazer porque não podem parar. Nesse momento, as orientações básicas de “ficar em casa” e “lavar as mãos” todo o tempo tomam uma outra dimensão. E o estrago sobre a população mais idosa será irreparável.
Para piorar, as classes médias e altas de extrema-direita – elas também seguidoras do mito e da matilha bolsonarista – não dão conta da gravidade da questão e mantém a exigência de trabalho em cima de seus empregados. Há notícias seguras de que o setor da construção civil não mandou parar as obras, levando (e expondo) milhares de trabalhadores aos canteiros, nos ônibus e metrôs. Guedes anunciou até verbas para o setor, para conter a crise do coronavírus, do mesmo modo, empregadas domésticas continuam sendo exigidas nas casas onde trabalham. O Brasil não para, porque na visão dessa gente ele não pode parar, ou melhor, seus bolsos não podem esvaziar e que se danem os que morram com isso.
Assim, a previsão do Coronavírus no Brasil já não seria das melhores por conta do fato de que temos milhões e milhões de pessoas que ainda vivem em bairros precários e densos em condições de habitação indignas. Uma política de Estado forte e organizada, apoiada no SUS e na boa informação, no amparo aos trabalhadores autônomos informais, talvez amenizasse o desastre, o problema é que o próprio presidente do país faz exatamente o contrário. Ou melhor, atrapalha qualquer ação mais organizada, até algumas atitudes minimamente sensatas que seu ministro da saúde “teime” em tomar.
É um crime contra a humanidade. Algo que parece ser um “pouco” mais grave que “pedaladas fiscais”. Espero que um dia Bolsonaro seja entregue às cortes internacionais, assim como se fez com tantos criminosos de guerra que atentaram contra a humanidade.
*JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA – Arquiteto-urbanista e economista, é professor Livre Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e pesquisador do LabHab – Laboratório de Habitação da mesma faculdade. Foi Secretário Municipal de Habitação de São Paulo na gestão de Fernando Haddad. Participa da Rede BrCidades.
Fonte: Outras Palavras