Pandemia de coronavírus, neoliberalismo e saídas para a crise
Peço desculpas pela extensão do trabalho. Aos que não tiverem paciência de ler a análise, podem ir direto ao final para ler as propostas que apresento.
O dia em que a terra parou
No ano de 1951, o mundo conheceu um filme magnífico de ficção científica produzido nos EUA, no início da guerra fria. Ele conta a história de um ser de outro planeta – Klattu –, que aterriza em Washington (claro) com seu disco voador e pede para falar com o líder da Terra (claro, o presidente dos EUA). Ele é atacado por um guarda qualquer (de esquina), que o fere e vai preso. Seu ajudante e grande robô chama-se Got. Klattu, de alguma forma, sai da cadeia e encontra-se com um grande físico – uma alusão provável ao Einstein que morava nos EUA nessa época – e pede a ele marcar uma conferência com outros cientistas. Depois disso ele indaga aos o que podería ser feito em termos de demonstração de seu poder extraterrestre para que os seres humanos acreditassem e ouvissem a sua mensagem de paz que ele trazia de seu planeta. Pois bem. No dia seguinte a isso, toda a Terra parou. Literalmente. Tudo que se movia, à eletricidade ou à combustível, parou de funcionar, à exceção, claro, de hospitais e aviões em voo. Foi uma demonstração imensa de poder. Não contarei o final, claro, mas teve uma refilmagem em 2008, que não se compara nem de longe com o filme original em preto e branco.
Por que começo minha reflexão hoje com essa alusão a um filme de 69 anos atrás, que, aliás, marcou muito minha vida? Simples. Porque, de meu ponto de vista pessoal – sou sociólogo e não médico e nem economista – se a Terra literalmente não parar, a pandemia vai matar milhões de pessoas, no Brasil e em todo o mundo. Por uma razão sanitária e médica: não há cura para a doença decorrente do coronavírus, chamada de COVID-19! E por tudo que li e acompanho, a única forma de controla-la é evitar que o vírus se espalhe, que se propague e contamine uma imensa maioria dos povos dos países! E para isso, não há outra saída, senão o confinamento praticamente total, das pessoas em suas casas e lares! Devem funcionar apenas o pessoal que cuida da segurança (polícias e guardas), saúde (hospitais, postos de saúde e farmácias), a área de abastecimento (mercados e padarias) e setor de serviços públicos (geração de energia, fornecimento de água, gás, coleta de lixo, telefonia, Internet etc.). E algum transporte para que os trabalhadores desses setores cheguem aos seus locais de trabalho. Intensa campanha em todos os meios de comunicação devem ser feitas, de forma educativas e preventivas. E deve-se limitar a quantidade de produtos de primeira necessidade que se pode comprar, para não ocorrer desabastecimento.
Um panorama geral no mundo hoje
Independente da epidemia que começou no final de 2019 (hoje há muitas dúvidas se tería sido mesmo na China). Desde essa época, o mundo já vivia uma crise econômica de difícil recuperação. Nunca tivemos tanto capital fictício girando em torno do planeta (estima-se que 300 trilhões de dólares para um PIB mundial de 80 trilhões). O dólar já vinha gradativamente perdendo a sua importância, fruto de acordos bilaterais que muitos países fazem entre si para realizarem seus comércios com suas próprias moedas. No início deste ano, o petróleo teve uma queda brutal, chegando hoje a valores próximos de 20 dólares, praticamente o mesmo de quando ocorreu a primeira crise do petróleo em 1973 (em valores atualizados).
Aliados a isso, e a própria pandemia, decretada pela OMS – as bolsas iniciam um processo de queda vertiginosa, tendo que realizar em vários locais o chamado circuit bracker, instrumento utilizado para interromper o pregão em função de quedas muito aceleradas em um mesmo dia. No caso da Bolsa de SP, já ocorreram seis dessas interrupções. As perdas acumuladas no Brasil e no mundo já ultrapassam os 40%, maior até do que caiu a bolsa de Nova York entre 1929 e 1932. As taxas de desemprego já vinham seguindo altas e agora devem disparar em todos os países. Não há como não imaginarmos uma retração brutal na economia de todo o planeta.
É exatamente nesse cenário – de pandemia e de crise – que arrisco a dizer que atravessamos uma situação inusitada na história da humanidade: podemos ter que atravessar uma crise muito maior que a de 1929 (já não tenho mais dúvidas que ela é maior que a crise de 2008) e enfrentar ao mesmo tempo uma pandemia muito maior do que a gripe Espanhola (de 1918/1919) ou a Peste Bubônica (ou Negra como dizem os historiadores, cujo auge foi entre 1343-1353, no século XIV; ambas epidemias supõem-se que teríam matado até cem milhões de pessoas em todo o mundo). Ou seja, uma verdadeira hecatombe nuclear que pode parar a economia do planeta e matar mais de cem milhões de pessoas (esses números não são meus mas de muitos especialistas que a calculam com base na disseminação do vírus e seu percentual de letalidade).
Duas visões de como devemos enfrentar essa nova peste
Já está mais do que claro para todo mundo que gosta de ler (e não de assistir TV), que o mundo está presenciando duas visões absolutamente distintas de como enfrentar essa nova peste mundial (decorrente da nova mutação do vírus da família Corona, conhecida desde a década de 1960). Ainda que sua letalidade seja aparentando baixa (3 a 6%), se aplicarmos índices baixos em populações infectadas que podem chegar a casa de milhões ou mesmo mais que um bilhão, o número de mortos começa a parecer assustador.
Como já dissemos, a doença não tem cura e nem mesmo um tratamento adequado. Nossos organismos produzem anticorpos que matam esse novo vírus dentro de um determinado período – 12 a 15 dias. Ocorre que nem todo mundo consegue produzir esses anticorpos em tempo hábil para escapar das infecções oportunistas, em especial nos pulmões. Aí, o vírus – que entra pelas narinas e olhos e vem de gotículas de pessoas infectadas ou de superfícies que tocamos o tempo todo – fica um pequeno tempo na garganta e depois vai aos pulmões, acarretado uma pneumonia violenta que é preciso internar o paciente e justamente em leito de UTI, onde estão sempre disponíveis aparelhos que ventilam os pulmões artificialmente, dando chance para o paciente resistir mais algum tempo e vencer a guerra contra o vírus. Mas, mesmo com a adoção de alguns medicamentos paliativos – não há nenhum ainda seguro de que cure e menos ainda vacinas que devem demorar até um ano para chegar ao mundo – alguns pacientes morrem (asfixiados). Ou morrem simplesmente porque os hospitais onde são atendidos já não dispõe desses equipamentos vitais para salvar vidas.
Nesse cenário, a esmagadora maioria dos especialistas, infectologistas, sanitaristas, a Organização Mundial da Saúde, mais de 160 países da Terra, orientam de forma inequívoca que é preciso modificar a curva de infectados, deixando em níveis abaixo da linha limite que pode suportar nossos serviços de saúde, públicos ou privados (na maioria dos países não existe um sistema público de saúde como o nosso SUS). E, para que essa curva seja achatada e alongada, só há uma forma: evitar novos contágios, contendo a propagação do vírus. Assim, a recomendação de restrições profundas de circulação de pessoas e seu total isolamento em suas casas na forma de “quarentena” voluntária é a melhor forma para debelarmos a doença.
Pois bem. Liderado pelos EUA, governado pelo direitista e sionista cristão Donald Trump, logo no início não se deu a devida atenção ao problema. Esse descaso foi adotado pelo nosso país, governado por um serviçal dos EUA. Com um discurso de que a economia não pode parar, pois isso prejudicaría ainda mais a população, acarretaria desemprego, esses governantes têm evitado e até criticado quem recomenda confinamentos dentro de nossas próprias casas, bem como criticam o fechamento de escolas e comércio em geral. O exemplo de Trump, guardadas as proporções, foi seguido por Bolsonaro aqui em nosso país, pelo Boris Johnson na Inglaterra e Narendra Modi na Índia (ainda que estes dois últimos também tenham recomendado algumas formas de restrição de circulação).
Pode-se dizer que essa gente tem uma concepção malthusiana de sociedade, onde não importa que morram alguns milhões, mas o importante é salvar a economia da catástrofe financeira que se avizinha. Como talvez a maioria saiba, Thomas Malthus (1766-1834), inglês, foi o fundador da demografia moderna. É dele a famosa assertiva de que a população do planeta cresce em escala geométrica e os alimentos e outros recursos crescem em escala aritmética. De alguma forma, ele defendia o controle da natalidade. Pestes e guerras sempre fizeram isso. Não por acaso, vários empresários “nacionais” fizeram declarações eugênicas e de apoio ao extermínio (abate humano claro). Quem quiser pode ver e estudar a pandemia mundial em um gráfico da Universidade John Hopkins, das mais conceituadas do mundo neste endereço: https://bit.ly/2WMzFKH. Este outro endereço, apesar de menos famoso e visualmente diferente, tem dados um pouquinho mais atualizados: https://bit.ly/39oyTq2. Ambos fornecem dados instantâneos, atualizados minuto a minuto (no momento que escrevo este artigo, às 14h26 do dia 26 de março de 2020, já são 510.528 casos diagnosticados e 22.328 mortes em mais de cem países da Terra).
Em Sociologia, chamamos essa corrente de pensamento de “darwinista social”. Ela surge no final do século XIX, após a publicação do livro Origem das Espécies de Charles Darwin em 1859. Muito erroneamente atribuída a Herbert Spencer, que jamais foi darwinista social, essa corrente distorcia o que Darwin disse sobre a evolução. Eles alegam que ele tería dito que apenas o mais forte sobrevive na natureza e aplicam essa “teoria” às sociedades. Um verdadeiro absurdo. O que Darwin disse sobre isso é que “não sobrevivem as espécies mais fortes ou as mais inteligentes, mas as que melhor respondem às mudanças” (que R. Dawkins prefere chamar de mutações em seu magistral O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução entre outras obras suas). Esse pensamento prosperou um pouco no começo do século XX com o surgimento da eugenia, que defendia a “purificação” da raça branca. Nunca é demais lembrar o que o famoso Clube de Bildenberg que muita gente acha que é teoria da conspiração, fundado em 1954, além de promover o que eles chamam de “atlanticismo”, defende sim a despopulação da terra. Por essa linha de atuação, nada de confinamento, nada de parada geral da economia, que deve estar acima da vida das pessoas.
A segunda forma de governos atuarem no combate à epidemia, pode-se dizer que tem como diretriz que o mais importante é salvarem vidas, ainda que isso possa prejudicar a economia, estagná-la. Isso seguramente ocorrerá pelo isolamento e quarentena que mais de dois bilhões de pessoas estão submetidas hoje na Terra e de forma voluntária (ainda não tem sido preciso usar da força para isso). Os países que se destacam nisso é a grande República Popular da China – que conteve a epidemia, mas também países capitalistas centrais como Alemanha, França, Itália, Coreia do Sul entre outros.
É possível afirmarmos que o modelo neoliberal está ferido de morte?
Com esse confinamento a que estou submetido, leia mais vorazmente do que já lia. Nos últimos dias li em torno de 10 artigos de vários autores que se destacam que quero mencionar aqui (links onde eles podem ser encontrados estarão abaixo ao final do artigo).
Jonathan Cook, conceituado jornalista e escritor inglês nos diz “tudo que nos ensinaram nos últimos 40 anos que a sociedade capitalista era a melhor forma de nos organizarmos estava errada”. Ou seja o tatcherismo ou reganismo como preferem alguns, que vigora no mundo todo e atende pelo carinhoso nome de “neoliberalismo” faliu. Não há outra interpretação para o que ele nos diz.
Tudo que disseram nesses anos todos que o “estado tería que ser mínimo”, que não se pode ter déficit fiscal e que jamais se podería gastar mais do que se arrecada e que o superávit primário deve ser intocável, porque ele paga os juros da dívida interna (ao final veremos sobre isso). Agora a máscara desses economistas neoliberais cai totalmente. Estão defendendo abertamente que o velho e bom estado nacional westfaliano seja utilizado para debelar ou minimizar a crise e o sofrimento das pessoas. Comentaristas de redes de TVs – as maiores propagadoras de inverdades na economia – falam sem prurido algum que “o governo tem mesmo é que gastar mais, mesmo sem ter recursos… se necessário, imprima-se dinheiro”, dizem eles descaradamente, sem sequer ficarem corados de vergonha. A nós, que passamos esses mesmos 40 anos combatendo esse sistema de capitalismo financeiro – seu verdadeiro nome – só temos que achar graça.
Aqui ouve-se bobagens também do tipo: “estamos todos no mesmo barco”. Nada disso. Não estamos. O barquinho do povo e dos mais desfavorecidos é uma simples canoa de rio enquanto os ricos viajam de transatlântico ou em seus próprios iates particulares. Agora há uma verdade que precisamos dizer: ou nadamos todos jutos, no sentido de nos unirmos para superar o problema, ou, de fato, afundaremos todos juntos morrendo afogado. Aqui registro um comentário pessoal: incrível que foi preciso um vírus para ter conseguido colocar em cheque todo o arcabouço em que se apoia esse modelo de financeirização do capital (como prefere chamar o francês Alain Chesnais em seu magistral La financeirización du capital).
O que presenciaremos mais uma vez? Uma verdadeira romaria de banqueiros e industriais pedindo socorro aos governos (e aos tesouros centrais) e a bancos de desenvolvimento. Pedirão dinheiro não a juros baixos, mas a fundo perdido. Doação mesmo. Mas, temos visto que desta vez as coisas acontecem de forma diferente. Não que os governos não sairão em socorro dos empresários. Sairão, claro. Mas, não dá para virar as costas para os trabalhadores e a parcela mais pobre da população, os que vivem na informalidade. Tanto que em 2008, na gestão de Bush Filho nos EUA o pacote de ajuda aprovado foi de 800 bilhões de dólares (o Citibank e a General Motors foram literalmente estatizados, já que o tesouro dos EUA comprou a maioria das ações dessas empresas). Agora, o senado dos EUA, a pedido de Donald Trump – que sabe que está com o risco de não ser reeleito – acabou de aprovar um pacote de ajuda de dois trilhões de dólares, praticamente o PIB do nosso pais (dez trilhões de reais). Nesse pacote está uma concessão de uma espécie de “bolsa família” para as pessoas mais pobres e trabalhadores no valor de mil dólares ou equivalente em nossa moeda a cinco mil reais. É muito dinheiro. Aqui e lá. Esse é um valor próximo ao salário mínimo estadunidense.
O inglês David Harvey, talvez o mais conceituado geógrafo marxista na atualidade, nos diz que esse modelo capitalista atual vive cada dia mais da expansão da oferta de crédito e da criação de dívidas pelas pessoas. Mas, se estas não têm renda para arcar com as dívidas, tornam-se inadimplentes e viram páreas na sociedade. Ainda segundo ele, o mundo foi pego de surpresa com essa pandemia e pegou os sistemas de saúde em situação muito precária. Sem recursos, sem equipamentos e sem o número de pessoal habilitado necessário. E por ironia do destino, a Inglaterra é hoje governada pelo mesmo Partido Conservador que venceu em 1979 com Margareth Thatcher, iniciando um processo selvagem de privatizações do patrimônio público. Aquele que talvez fosse o melhor serviço de saúde pública de toda a Europa, foi sucateado, quase que privatizado, sendo que muitos dos seus serviços foram terceirizados. E hoje estão tendo que atender a um contingente imenso de doentes muito acima das suas condições.
Quando dissemos acima que não existe cura para essa doença ainda, devemos nos lembrar de como atuam as Big Pharma, modo como alguns economistas chamam a grande e paquidérmica indústria farmacêutica. Hoje ela fatura no mundo mais que a indústria do petróleo! As empresas farmacêuticas jamais investiram em pesquisas sobre prevenção de doenças ou em pesquisas sobre doenças infecciosas. Eles querem mesmo é a “cura”, de forma a comercializarem um fármaco (o bendito remédio) que lhes rendam bilhões de dólares. Por isso, quanto mais nós nos adoecemos mais essa gente enriquece. Não por acaso Trump tentou comprar os pesquisadores alemães, subornando-os com um bilhão de dólares, para a produção de uma vacina que sería usada apenas pelos estadunidenses. Sim, essa gente é capaz disso. Felizmente, a Alemanha recusou a “oferta”.
Se medíssemos uma pessoa pelo que ela recebe, seu valor, então isso significaria que os CEO das grandes corporações seríam as “melhores pessoas” de uma sociedade, pois são os que mais ganham, além dos artistas e jogadores de futebol. Mas não, como nos diz Jonathan Cook. As melhores pessoas, as que deveriam ganhar mais são exatamente os profissionais da saúde que, neste momento, doam suas vidas para salvar as nossas. Que sociedade de valores invertidos em que vivemos. Será que passando essa imensa crise isso será modificado?
Tudo isso nos remete a uma pergunta que tenho feito nas minhas redes sociais: esse modelo quarentão, chamado neoliberal, de capitalismo financeiro, que produz “riqueza” sem passar pela produção de mercadorias, está com seus dias contados? Ele foi ferido de morte? Aqui ainda não formei uma opinião. Inicialmente, tenho certeza de que tudo não será mais como antes. Mas não tenho convicção que a economia-cassino, a ciranda financeira, será interrompida e que todo o dinheiro aplicado em papeis especulativos voltará rapidamente para o processo produtivo, gerando milhões de emprego e retornando o sistema capitalista como um sistema produtivo, ainda que explorador e mesmo assim com seus dias contados.
Antes de passar à parte final de artigo, recolho de meu colega italiano, Domenico di Mais (autor do famoso Ócio criativo), uma passagem interessante. Ele cita o conceituado livro de Albert Camus, A peste (La plague, de 1947, que estou relendo inclusive). O livro defende a ciência, ao contrário de muitos hoje em dia, criacionistas e terraplanistas. O protagonista principal é um médico, Dr. Bernard Rioux, que faz de tudo para ajudar e atender as pessoas, como os da atualidade. Mas, ao final o autor menciona: “a peste pode vir e ir embora, sem que o coração das pessoas seja modificado”. É tudo que eu espero que não aconteça.
Propostas para sairmos da crise no Brasil
Sou plenamente favorável ao isolamento, confinamento, quarentena ou seja lá o nome que queiram dar à orientação de que só temos como debelar essa pandemia permanecendo em nossas casas até que passe a fase mais aguda da contaminação. Ocorre que essa parada geral das pessoas para que fiquem em casa – bancos, comércio, indústria e serviços – vai acarretar uma completa estagnação da economia.
Mas tem que ser assim. Não tem outro jeito. A vida das pessoas tem que estar acima do lucro e da acumulação de dinheiro. Mas, como fazer isso? Como empresários, especialmente pequenos e médios, conseguiriam arcar com todos os seus custos mensais – aluguéis, funcionários, luz, água, gás, telefone, Internet, impostos? Simplesmente não conseguiriam. Com as portas fechadas e sem faturamento isso é impossível. Ninguém tem capital de giro para aguentar dias, semanas que quiçá meses para sobreviver. Isso poderá acarretar demissões aos milhões e grande sofrimento para nosso povo. Por isso, não basta a um governo recomendar que as pessoas fiquem em casa. É preciso adotar medidas duras, mas que podem minimizar o sacrifício geral e evitar milhões de mortes. Aqui, mais uma vez, entra em cena o velho e bom estado nacional
De meu modesto ponto de vista, pelo menos as seguintes medidas precisaríam ser adotadas de imediato:
1. Suspensão de todos os vencimentos de boletos, impostos, encargos, cartões de crédito (e seus famigerados juros de 250% ao ano!), sem limite de data – até que a pandemia dê sinais que vai arrefecer, sendo os valores pactuados e colocados para pagamento posterior;
2. Suspender todos os pagamentos de todos os tipos de alugueis de todos os estabelecimentos empresariais e residenciais (governo tería que arcar com parte desses valores pelo menos para proprietários de imóveis que sirvam como renda familiar);
3. Suspender os pagamentos de todas as contas dos serviços públicos (água, luz, gás, lixo, telefone, Internet etc.), sem data para retornar e sem que elas sejam interrompidas em seu fornecimento – e ao retornar, não cobrar os atrasados; dure o tempo que durar (sem renda ou com renda diminuída, não tería como as pessoas e famílias arcarem com os custos retroativos, que devería ficar a cargo do governo, que garantiria o funcionamento das empresas que fornecem esses serviços, subsidiando-as);
4. Todos os/as trabalhadores registrados (CLT e servidores públicos), passam a ser assumidos como folha de pagamento geral da União, sem exceção (alguns países adotaram 100% ou 80% do valor bruto dos salários nominais) e terão estabilidade no emprego;
5. Fornecimento de uma renda básica cidadão (ideia genial que tomo de meu amigo Célio Turino) para todos os/as cidadãs, sejam trabalhadores autônomos ou formais, com valor de pelo menos um salário mínimo nacional;
6. Pagamento a todos os pequenos e médios empresários de uma ajuda mensal pró-labore, no mesmo valor da referência da contribuição básica que ele recolhe ao INSS, bem como abertura de linhas de créditos sem juros e a longo prazo para a retomada de seus negócios;
7. Suspensão de atividades de todos os bancos e em especial, a Bolsa de Valores (que sentido negociar ações quando a economia parou?).
Essas são ideias gerais que venho pensando. No entanto, a pergunta que vem imediato é a seguinte: com que dinheiro o governo iria fazer tudo isso? Só vejo uma saída – sem causar inflação, pois imprimir dinheiro não sería a solução: suspenção imediatamente do pagamento dos juros, serviços e encargos da dívida pública no Brasil! (alguns autores que li defendem sim a impressão de mais dinheiro pelo Banco Central, mas esse é outro debate).
O Brasil paga de juros todos os anos (estimativas, pois esses números nunca são precisos) – dívidas municipais, estaduais e da União – em torno de um trilhão de reais (sem que a dívida jamais diminua). Esse dinheiro – é sabido há tempos – vai para as 10 mil famílias mais ricas da burguesia brasileira que detém mais de 80% dos títulos do tesouro nacional. Qual o sentido de continuar carreando quase três bilhões de reais todos os dias para essa gente que integra o 0,5% mais rica da Nação? Não faz nenhum sentido! Eles terão que se sacrificar para que contenhamos a doença sem penalizar os pobres, sem demitir trabalhadores/as.
Qual a outra saída? Há uma antiga proposta e nunca concretizada em nosso país, em especial nos 13 anos que o Brasil teve governos populares (2003 a 2015), que é a taxação das grandes fortunas, como ocorre em todo o mundo capitalista. E esse (des)governo de turno em nosso país – além de um pacote falso, mentiroso de “liberação” de 150 bilhões de reais (US$30 bilhões de dólares, enquanto os EUA liberaram dois trilhões de dólares, e a França e a Inglaterra liberaram equivalente a um trilhão de reais cada) – o que propôs? Reduzir a jornada de trabalho com corte de metade dos salários. Pior que isso. Editou uma medida provisória – que depois voltou atrás – que suspendia o salários de todos os e as trabalhadoras por quatro meses seguidos, beneficiando diretamente apenas e unicamente os empresários. Há estudos que indicam que essa taxação podería render de imediato aos cofres do tesouro em torno de 300 bilhões de reais imediatamente.
É claro que sei que esses que tomaram de assalto o governo – pela fraude de 2018 – não farão jamais isso que proponho (outros partidos de nosso campo de esquerda como o PCdoB, PT e PSOL também apresentaram propostas semelhantes e até mais detalhadas; aqui eu apenas as complemento). Eles adotarão o que é de praxe em todas as crises: arrebentar no lombo dos/as trabalhadores todo o custo da crise, salvando os bancos e as empresas em geral. Mas, o mundo de hoje não é mais o de 2008. Já não será possível ajudar apenas os de cima, sem apresentar nenhum auxílio aos de baixo.
Não tenho dúvida alguma: o sistema capitalista só gerou pobreza, concentração de renda para os ricos e miséria para os trabalhadores. Apenas o socialismo poderá modificar isso tudo. E, mais do que nunca, agora é o momento de levantarmos bem alto essa bandeira.
Em tempo: vejam que não apresentei nada relacionados com as medidas de prevenção e tratamento da doença, por não ser da área e pelo fato que isso demandaría mais textos pelos quais não tenho domínio e não é tema deste trabalho.
* Sociólogo, professor universitário (aposentado), autor e coautor de 13 livros, atualmente exerce a função de analista internacional, sendo comentaristas em canais de TV por streaming.
Coronavírus anuncia revolução no modo de vida que conhecemos, de Domenico di Masi (https://bit.ly/3dvaWRh);
Anti-capitalist politics in the time of COVID-19, de David Harvey (https://bit.ly/2WH2ubH);
A lesson coronavirus is about teach the world, de Jonathan Cook (https://bit.ly/3aonUhF).