No último dia 13 de março, começaram a partir do Irã cinco grandes navios petroleiros. Tinham um destino certo: a República Bolivariana da Venezuela, sob a presidência do comandante Nicolas Maduro, que sucedeu o comandante Hugo Rafael Chávez Frias. Os navios levavam 1,5 milhões de barris de combustível, equivalente a 508 milhões de litros de gasolina. Mas, levavam também diversos produtos petroquímicos, entre eles vários tipos de catalizadores, para o processo chamado de alquilação e craqueamento, que quebra da cadeia de hidrocarbonetos do petróleo, ou óleo cru como se chama. Esse óleo, em si, não serve para quase nada. Essa quebra química, por processos de destilação nas refinarias, gera derivados como gasolina, óleo diesel, asfalto, nafta, querosene, gás liquefeito do petróleo, aguarrás e tantos outros produtos, imprescindíveis para o fabrico de centenas de produtos essenciais para nossas sociedades. 

Uma operação como essa, em condições normais em um mundo sem a unipolaridade pretendida pelos EUA como xerife do planeta, sería a coisa mais absolutamente normal. Inclusive, em valores em reais e levando em conta a cotação do petróleo do dia que escrevo este artigo (28 de maio), é uma transação de valor pequeno, estimado em R$270,8 milhões de reais (ou US$50,8 milhões de dólares). No entanto, não vivemos em um mundo “normal” onde quaisquer dois países compram e vendem seus produtos livremente.

Essa não é uma transação comercial qualquer. Ela está sendo feita entre dois países sancionados pela potência imperialista, os Estados Unidos da América, que tem a pretensão de destruir e derrubar ambos os governos e modelos de nação que vigoram tanto no Irã, uma República Islâmica, quanto na Venezuela, uma República Bolivariana, que menciona o “caminho do socialismo no século XXI”. Ambos os países encontram-se na lista do Departamento de Estado dos EUA como países que financiam o “terrorismo” (sic).

As sanções contra a Venezuela

Abordarei aqui apenas as sanções impostas à Venezuela, mas muitas dessas são semelhantes que ocorrem contra o Irã, que está “proibido” pelos EUA de comercializar seu petróleo com o resto do mundo, sanções essas completamente ilegais, pois não passaram por nenhum fórum do sistema das Nações Unidas. 

Durante a gestão Obama, em dezembro de 2014, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei nº 113/278 que proíbe expressamente todas as empresas estadunidense de comercializarem com a Venezuela. Mas, a lei vai mais longe. Proíbe também todas as empresas em todo o mundo que tenham uma filial em território estadunidense, ou seja, a proibição atinge além das fronteiras daquele país. Dito de outras palavras, a lei estadunidense passa a não ter fronteiras, ferindo a questão da extraterritorialidade do direito, como dizem os especialistas em direito internacional. Dito de outra forma, uma lei dos EUA vale para o mundo todo e quem não as respeitar pode também sofrer penalidades. E mais: essa é uma legislação que não tem nenhum respaldo da ONU e de nenhum tribunal internacional. É como se o império estadunidense pudesse determinar o que as empresas do mundo inteiro devem fazer. Isso tudo para sufocar, estrangular a economia dos Estados Unidos. 

Essa lei é muito parecida com a Lei Helms-Burton de 1996, que aprofundou o bloqueio econômico dos EUA contra Cuba, que já vinha sendo imposta de outras formas desde 1962. No caso da Venezuela, a lei proíbe também que a Venezuela utilize o sistema SWIFT, que é Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication ou Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais. Quase nenhuma operação comercial de compra e venda no mundo ocorre sem o uso desse sistema mundial de transferências de recursos financeiros entre países (há um sistema alternativo em teste na Europa que o Irã tem usado que usa a sigla INSTEX, que significa Instrument in Support of Trade Exchanges ou Instrumento de Apoio às Trocas Comerciais). Só para termos uma ideia da gravidade desse bloqueio, cerca de 90% de todas as vacinas que a Venezuela compra no mundo são pagas pelo sistema SWIFT, de forma que as crianças venezuelanas já não podem ter acesso às vacinações obrigatórias na infância. 

Em seguida a isso, o “democrata” Barak Obama – tão enaltecido por parte da esquerda – em 9 de março de 2015, edita um “decreto” que torna a Venezuela “uma ameaça à segurança nacional” dos Estados Unidos (sic). Com a posse de Donald Trump em janeiro de 2017, essa situação se agrava ainda mais. Quero aqui lembrar uma das principais promessas de campanha feitas em 2016 por Trump, quando dizia que “acabaria com o chavismo na Venezuela” (ele chega a reeleição não só não tendo conseguido essa “proeza”, como correndo o sério risco de perder as eleições para um inexpressivo Joe Biden).

Por que a Venezuela não está produzindo gasolina?

As televisões mundiais estão cansadas de mostrar imagens de postos de gasolina venezuelanas completamente vazios. Pessoas empurrando carros sem combustível, tudo isso como parte de uma propaganda mundial contra o governo bolivariano da Venezuela. Mas, a primeira pergunta que se ouve é por que a Venezuela, que tem a maior reserva mundial provada de petróleo do mundo (300 bilhões de barris) não produz gasolina?

O maior complexo de refinarias da Venezuela ficam na península de Paraguaná, estado de Falcón. Lá estão as refinarias de Amaçay e Cardón, além de Palito, que fica no Estado de Carabobo. Essa refinaria tem a capacidade de refino diária de 1,1 milhões barris de petróleo o que equivale a 60 milhões de litros de gasolina. Em termos de grandeza, ela só perde para a refinaria de Jamnagar na Índia, que refina por dia 1,2 milhões de barris.

No entanto, para proceder as operações de quebra das cadeias de hidrocarbonetos do petróleo, diversos produtos que são utilizados encontram-se em falta na Venezuela. Além disso, faltam também algumas peças de reposição, especialmente válvulas, para as operações normais das refinarias poderem operar a plena carga (lembrar que elas funcionam 24 horas por dia). 

É preciso dizer que um dos cinco navios iranianos levam não só esses produtos petroquímicos como também equipamentos de reposição em falta na Venezuela. Algumas semanas antes, aeronaves iranianas já haviam transportado vários desses equipamentos. No caso específico da refinaria de Palito, (Carabobo), a Rússia já estava tomando medidas para a sua reativação. Ou seja, o Irã, mais do que uma simples venda de derivados de petróleo, prestou imensa solidariedade à Venezuela, atitude revolucionária vinda de um país revolucionário, dos que mais combate o imperialismo estadunidense.

A longa jornada dos navios iranianos 

No dia 13 de março passado, partiu do porto iraniano de Bandar Abbas o primeiro dos cinco navios. Pareciam, pelo significado da viagem, que cumpririam a Grande Marcha, que Mao Zedong cumpriu na China em 1934. Os outros quatro navios, partiram respectivamente nos dias 31 de março, 20, 26 e 28 de abril. Esses navios vieram por uma rota marítima das mais longas. Passaram pelo estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico, desembocaram no Mar da Arábia (Oceano Índico), contornaram a península arábica, passaram por Bab El Mandeb, no Golfo de Ácaba, entrada do Mar Vermelho. Cruzaram o canal de Suez, no Egito e desembocaram no Mar Mediterrâneo. Após isso, cruzaram o estrito de Gibraltar, desembocando finalmente no Atlântico.

Os navios percorreram uma distância de 10.060 milhas náuticas (uma milha náutica equivale a 1,852 Km), o que equivale a 18,6 mil longos quilômetros, sendo que o primeiro que entrou no mar do Caribe, em águas territoriais venezuelanas foi no dia 25 de maio, segunda-feira, que foi o navio Fortune. Em seguida e até 28 de maio, chegaram os outros três, sendo que o quinto e último deve atracar em portos venezuelanos até domingo, dia 1º de junho (os outros navios chama-se Clavel, Faxon, Florest e Petúnia).

Essa carga trazida pelos navios, combustível e mais equipamentos de reposição, garantirão o abastecimento com gasolina até dezembro, em todo o país de 25% da sua frota nacional de veículos. Os outros 75% serão garantidos pela retomada do refino nas refinarias venezuelanas, que passarão a operar em função dos equipamentos e produtos trazidos.

O bloqueio estadunidense atinge o absurdo de proibir a livre navegação de toda e qualquer embarcação em mar territorial venezuelano. E para fiscalizar esse bloqueio naval – uma situação inédita que não foi imposta nem ao Iraque entre 1991 e 2003 (lá impuseram apenas o bloqueio aéreo), entre as duas invasões que o país sofreu e mesmo à Síria desde 2011 que enfrenta uma agressão externa apoiada pelos EUA e patrocinada pela Arábia Saudita, protetorado estadunidense no Golfo Pérsico. 

Para garantir o cumprimento do bloqueio imposto por Trump, a IV Frota Naval dos EUA, subordinada ao Comando Sul (USSOUTHCOM), cuja base fica em Mayport, em Jacksonville, Flórida foi acionada. Nunca é demais lembrar que essa frota, criada em 1943, havia sido desativada em 1950. Ela foi reativada em 2008, coincidentemente quando o Brasil anunciou a descoberta da maior reserva de petróleo do mundo, na camada de pré-sal. O comando da Frota, sob ordens do almirante Donald Gabrielson, destacou quatro navios de guerra e vários helicópteros, para garantir que o bloqueio fosse cumprido. Ou seja, a Venezuela, um país soberano, não pode dispor de seu mar territorial. Parece surreal, mas não é.

O que podemos ver, nesse cenário, que o transporte desses mais de meio bilhão de litros de combustível, no cenário que descrevemos não é uma simples viagem de rotina. O que presenciamos (no momento que escrevo, o quinto navio ainda não chegou) foi uma verdadeira operação de guerra. Apoiada, nos bastidores, pela Rússia – que fornece muito material bélico à Venezuela – e pela República Popular da China, ambos os países também sob sanções dos EUA e em meio a uma guerra comercial. 

A chegada dos navios é prenúncio de que já vivemos um mundo multipolar?

A chegada dessa flotilha cinco navios, que foram recebidos pela Armada Bolivariana e pela sua Força Aérea, foi motivo de grande festa em Caracas. Não só pelo fato de que o país terá um alívio em termos de combustíveis nos próximos meses, mas pelo fato do seu imenso significado político, que ainda não aquilatamos o suficiente, pelo pouco destaque que isso vem ganhando na imprensa alternativa. E essa festa é extensiva à Teerã. O seu presidente Hasan Rouhani chegou mesmo a afirmar que o mundo já está vivendo uma multipolaridade.

O fato de os petroleiros passarem nas “barbas” dos navios de guerra super equipados dos Estados Unidos, sem que nenhuma atitude tenha sido tomada, é, por si só, uma vitória retumbante. Dias antes da chegada, várias declarações foram feitas pelo porta voz da Casa Branca. Do lado do Irã também foram desferidas declarações contundentes. Se algum dos navios fossem abordados, apreendidos ou até atacados, a marinha iraniana daria o troco da mesma forma, nos navios estadunidenses que navegam no Golfo Pérsico. Chegaram a falar em fechamento do estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico, por onde passam diariamente quase 20 milhões de barris, equivalente a 25% de toda a produção mundial (a largura do estreito é de pouco mais de 50 Km). É, seguramente, um dos locais mais estratégicos no mundo em termos geopolíticos.  

Não há dúvida para nenhum analista internacional que essa “operação de guerra” (como demonstramos acima) teve o claro apoio da Rússia e China. Não que uma apreensão de um desses navios fosse significar a declaração de uma guerra mundial. Mas, só o fato de saber que essas duas potências que são polos mundiais estão protegendo a operação já deixou os EUA na defensiva. 

Na prática, de nada adiantou a maior armada do mundo, a mais poderosa militarmente falando, que não foram capazes de bloquear a chegada de petroleiros iranianos à costa venezuelana, apesar de todas as ameaças claras. Há uma especulação, com a qual estou de acordo, feita pelo jornalista Alejandro Acosta. Uma operação dessa natureza pode estar servindo tanto para os EUA, quanto para Rússia e China. Para os Estados Unidos, que ficaram mais à vontade para iniciar os testes nucleares, interrompidos há tempos, de seus artefatos táticos de baixa letalidade (equivalente às bombas de Hiroshima e Nagasaki). Para a Rússia e China eles testam a sua capacidade de sustentarem amplas operações militares em terras e mares muito distantes de seus próprios territórios. Tem muito sentido essa análise.

De minha parte, não tenho dúvidas há tempos, que transitamos entre duas ordens mundiais. A unipolar, construída a partir do fim da URSS em dezembro de 1991, para o mundo multipolar, que ainda não se consolidou, mas que avança a cada dia, a cada operação como essa, que patriotas e democratas, bem como internacionalistas, devem saudar com todas as suas forças. Podemos sim, estar vivendo no limiar de uma nova Ordem Mundial. Mas ainda não está consolidada.

* Sociólogo, professor universitário (aposentado), escritor de 13 livros (alguns em coautoria). Atualmente exercendo a função de analista internacional, sendo comentarista da TVT quartas às 15h30), da TV 247 (quartas às 10h) e do Canal Resistentes (quintas às 18h), por streaming no YouTube.

Em tempo: parte das informações operacionais e políticas deste trabalho estão contidas no artigo do jornalista e editor do Gazeta Revolucionária Alejandro Acosta, publicado no dia 25 de maio de 2020, que pode ser lido no endereço: https://duploexpresso.com/?p=112911.