O futuro das cidades no pós-pandemia
Quando se trata de projetar como será o futuro pós-pandemia nas empresas, nas cidades e no cotidiano, é preciso atentar sobre qual espécie de futuro estamos falando: os prováveis, os possíveis, os viáveis ou os desejáveis. Mas independentemente das possibilidades que se apresentam, uma mudança parece ser imprescindível: é preciso “trazer o Brasil, pelo menos, para o século XX e deixar o país do século XIX para trás, a começar pelo saneamento básico e pela possibilidade de as pessoas terem acesso à tecnologia digital”, diz Ana Carla Fonseca, especialista em economia criativa, negócios e cidades.
Segundo ela, a maioria dos problemas que estamos observando nas grandes cidades brasileiras por causa da pandemia de covid-19, a começar pelas disparidades em termos de infraestrutura, moradia, transporte público, renda e possibilidade de acesso a recursos, não são uma novidade no país. “O transporte público fica lotado porque temos, de modo geral, nas cidades, em especial naquelas de porte médio e grande, segmentações e fluxos econômicos que não necessariamente são condizentes com os fluxos de desenvolvimento urbano. Então, algumas expansões urbanas não necessariamente são motivadas ou acompanhadas de expansões de oportunidades de emprego”, exemplifica.
Esse cenário é ainda mais visível em grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, “onde existem áreas periféricas e um deslocamento das pessoas dessas regiões por falta de opção: as pessoas não têm como morar nos locais cujo acesso é muito mais caro do que a renda delas permite, mas onde as pessoas moram também não há oportunidade de trabalho condizente”, afirma. Segundo ela, não será possível resolver os problemas do transporte público superlotado sem desenvolver novas formas de geração de emprego e renda. “Para deixar de haver um transporte superlotado, é preciso ter uma flexibilização da forma de trabalho – e é isso que a pandemia vem mostrando, porque vem acelerando este debate – ou outras oportunidades de geração de emprego e renda em lugares mais distribuídos da cidade”, assegura.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Ana Carla Fonseca também comenta algumas das possíveis mudanças que serão implementadas nos ambientes de trabalho pós-pandemia. “Quando se observam grandes empresas, que têm outro cacife e possibilidade de mudar recorrentemente o seu espaço físico – o que não é a regra das empresas brasileiras –, muitas delas vêm investindo, sim, em aumento de espaço físico para que as pessoas possam ter um maior isolamento. A meu ver, isso é muito mais um conforto psicológico do que algo efetivo na prática, porque as pessoas podem ficar a dois metros de distância umas das outras, mas se cruzam o tempo todo no banheiro, no café, nas reuniões”, conclui.
Ana Carla Fonseca é formada em Administração Pública e Economia, mestra em Administração e doutora em Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP. É professora e coordenadora de cursos de pós-graduação em Economia Criativa e Cidades na Fundação Getulio Vargas – FGV e na Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Também é diretora da Garimpo de Soluções.
Confira a entrevista
IHU On-Line – Como tende a ser a vida nas grandes e pequenas cidades pós-pandemia? Vislumbra a possibilidade de mudanças ou voltaremos a circular como antes?
Ana Carla Fonseca – É difícil falar de cidades como uma categoria geral porque as cidades, de Santa Maria a São José dos Campos, têm muitas diferenças entre si e dentro delas também existem muitas diferenças. Nesse sentido, é difícil trabalhar o conceito de cidade de forma mais homogênea, em razão das diferenças entre elas e dentro delas.
De todo modo, algo que tem sido quase consensual no Brasil e no mundo, mesmo em cidades chinesas que foram as primeiras a serem impactadas pela pandemia, é uma mudança de hábitos. Se essas mudanças serão de fato duradouras ou não, é uma segunda questão, mas pelo menos no momento pós-pandemia, em que percebemos um maior controle do espraiamento do vírus, as mudanças de hábito permanecem, ao menos, até que se tenha alguma segurança com relação à evolução disso.
Seja em cidades pequenas, seja em cidades grandes, parece que de fato as pessoas tendem a ter uma visão um pouco mais ecossistêmica daquilo que ocorre – o que ao meu ver é algo muito positivo, porque fomos descolando essa visão da nossa realidade, em especial nas grandes cidades. Muitos dos problemas que estamos observando nas grandes cidades já existiam, mas agora eles passam a ser inevitavelmente explicitados diante dos nossos olhos, a exemplo das disparidades de, por um lado, vivermos em cidades que têm um olhar para o século XXI, voltadas para as tecnologias e cidades inteligentes, e, por outro lado, vivermos em cidades que enfrentam problemas de saneamento básico. Ou seja, existem três séculos, pelo menos, convivendo numa mesma cidade.
Por conta da situação que estamos vivendo, começamos a perceber que dependemos muito mais do outro do que imaginávamos. Isso tem acontecido desde a classe média que não dorme à noite, agoniada, porque muitas dessas pessoas são empreendedoras, pequenos empresários, autônomos ou profissionais liberais e, se não trabalham, o dinheiro não entra; mas ao mesmo tempo elas são a favor do fechamento da economia com uma eventual abertura gradativa, porque sabem da importância disso para controlar a disseminação do vírus. Essas pessoas encontram dificuldades para trabalhar direito porque estão com os filhos em casa, não contam com o auxílio de uma babá ou faxineira com quem estavam acostumadas. A agonia também é sentida pelas pessoas da classe baixa que precisam trabalhar porque não têm escolha, e de uma classe muito alta, no extremo da nossa pirâmide, que tem uma outra forma de configuração de estilo de vida. O que começamos a perceber é que esses três níveis, numa categorização simplista, fazem as pazes com a realidade e dependem muito mais uns dos outros do que imaginavam.
A classe sem recursos precisa do auxílio de quem faça uma doação ou de quem continue pagando o salário, ainda que a pessoa não esteja trabalhando; a classe média percebe como de fato depende de algum auxílio para conseguir dar conta do recado; e a classe alta, em termos de poder aquisitivo, percebe que mantém seu padrão de vida, mas muda muitos dos seus hábitos. Um colega disse outro dia que, até para ser egoísta, precisamos pensar no outro. Trazendo isso para a nossa discussão, começamos a perceber que a mudança de hábitos requer que pensemos no quanto dependemos do outro. Então, algumas mudanças de fato começam a ocorrer: uma percepção maior do ecossistema, de ter que ser mais resguardado do ponto de vista do contato físico, o que para o brasileiro é um desafio, ou seja, começamos a ver algumas mudanças se concretizando. Agora, precisamos ver se elas vão perdurar.
Nos últimos anos o tema da mobilidade urbana tem sido bastante discutido. Que novas questões são ou podem ser acrescentadas a este debate pós-pandemia, especialmente no caso brasileiro, em que o transporte público é superlotado?
Ana Carla Fonseca – Não vejo nada de novo sendo acrescido a este debate. O que parece é que começamos a perceber a importância, de fato, de flexibilizar as formas de trabalho. O transporte público fica lotado porque temos, de modo geral, nas cidades, em especial naquelas de porte médio e grande, segmentações e fluxos econômicos que não necessariamente são condizentes com os fluxos de desenvolvimento urbano. Então, algumas expansões urbanas não necessariamente são motivadas ou acompanhadas de expansões de oportunidades de emprego. Isso fica muito claro em megalópoles, como é o caso do Rio de Janeiro ou São Paulo, ou mesmo Belo Horizonte e Porto Alegre, onde existem áreas periféricas e um deslocamento das pessoas dessas regiões por falta de opção: as pessoas não têm como morar nos locais cujo acesso é muito mais caro do que a renda delas permite, mas onde as pessoas moram também não há oportunidade de trabalho condizente. Então, para deixar de haver um transporte superlotado, é preciso ter uma flexibilização da forma de trabalho – e é isso que a pandemia vem mostrando, porque vem acelerando este debate – ou outras oportunidades de geração de emprego e renda em lugares mais distribuídos da cidade.
Também estamos percebendo – vejo isso pelo menos na cidade de São Paulo – que está havendo uma valorização do pequeno empreendimento, dos empreendimentos mais próximos das casas das pessoas. Percebi isso de forma muito aguda em SãoPaulo, onde em vez de as pessoas comprarem num supermercado grande, ainda que por delivery, elas estão preferindo um local mais próximo das suas casas, valorizando a padaria ou a lanchonete que costumam frequentar, e não aquela que fica a cinco quilômetros de casa. Isso vem abrindo possibilidades de fortalecer os tecidos mais dispersos pela cidade do ponto de vista econômico, inclusive para que no pós-pandemia esses empreendimentos continuem vivos. Essa me parece que tem sido uma mudança muito bem-vinda por parte dos cidadãos de forma geral. Agora, não há como resolver o problema do transporte público superlotado sem desenvolver outras formas de trabalho e geração de emprego e renda.
Mas há necessidade de reformas urbanas nas cidades após a pandemia? De que tipo seriam?
Ana Carla Fonseca – Sim. Uma coisa inevitável é trazer o Brasil, pelo menos, para o século XX e deixar o país do século XIX para trás, a começar pelo saneamento básico e pela possibilidade de as pessoas terem acesso à tecnologia digital. Percebemos, pela educação, como as pessoas, em especial os estudantes de ensino médio, vêm perdendo conteúdo e, ao que tudo indica, terão uma possibilidade muito minorada de ingresso nas universidades, justamente por falta de acesso às tecnologias digitais, comparativamente a alunos de escola privada.
A pandemia necessariamente vem trazendo à pauta a questão da necessidade imperiosa de trazer o Brasil para o século XX, ainda que suprindo questões básicas de acesso a saneamento básico, e ao início do século XXI, com as tecnologias digitais.
O que tem se discutido ou tende a ser discutido sobre tendências para a vida urbana e espaço público em termos de redesenho de políticas públicas e mobilidade?
Ana Carla Fonseca – Mudanças de políticas públicas tendem a ser muito mais lentas do que mudanças de comportamento dos cidadãos. Até por uma questão lógica, as políticas públicas não são facilmente alteradas e o governo tende a ser mais resistente – e é normal que o seja e em partes é intencional que o seja, porque as questões têm que ser mais estruturantes. Então, estamos num momento muito embrionário para discutir redesenhos de políticas públicas, em especial de mobilidade. Porém o que estamos percebendo, ao menos nas cidades com as quais temos trabalhado neste ano, em termos de políticas públicas e desenvolvimento social, é que se passa a ter uma lógica que muitas vezes volta a ser assistencialista por falta de escolha. Os estados adotam ações mais imediatistas para darem conta da urgência e para daí, sim, haver um fôlego para repensar o que seria uma política pública para tempos vindouros, porque estamos num momento muito embrionário.
Em termos de projeção por lógica, o que se imaginaria seria um investimento, a meu ver, maior em multimodais e em flexibilizações de negociações trabalhistas que permitissem às pessoas terem outros arranjos de trabalho, dentro do possível. Para quem trabalha em escritórios e pode ter um trabalho a distância, isso tende a ser visto de uma outra forma. Mas as políticas públicas, via de regra, vêm a reboque de mudanças e intenções da sociedade, as quais ainda estão ocorrendo.
Alguns apostam que ao invés de espaços menores, por causa do aumento do teletrabalho, o que irá ocorrer nas empresas é justamente o contrário, a necessidade de se ter mais espaço. Qual é a perspectiva em relação a como serão os espaços físicos das empresas pós-pandemia?
Ana Carla Fonseca – Estando ainda no meio da quarentena, é muito difícil decodificarmos tendências com uma maior probabilidade associada a uma ou a outra, mas enfim, é o que nos cabe fazer. Com relação aos escritórios, há uma série de diferenças conforme o setor, desde escritórios que sejam vinculados ao chão de fábrica, a escritórios mais criativos, enfim, existem algumas variações importantes. Mas as mudanças vão depender muito da característica dos setores. Nos setores que invariavelmente demandam que as pessoas estejam presentes no dia a dia porque as reuniões têm que ser presenciais ou porque existe uma outra dinâmica de trabalho, estamos observando que há, pelo menos nesse momento de acomodação, uma tendência de que as pessoas mantenham o espaço que possuem, mas com algumas proteções extras, como o uso da máscara o tempo todo e divisórias entre as baias. Não há uma tendência, até onde eu tenho observado, para a mudança do espaço físico de escritórios de modo geral.
Quando se observam grandes empresas, que têm outro cacife e possibilidade de mudar recorrentemente o seu espaço físico – o que não é a regra das empresas brasileiras –, muitas delas vêm investindo, sim, em aumento de espaço físico para que as pessoas possam ter um maior isolamento. A meu ver, isso é muito mais um conforto psicológico do que algo efetivo na prática, porque as pessoas podem ficar a dois metros de distância umas das outras, mas se cruzam o tempo todo no banheiro, no café, nas reuniões. Assim, as mudanças são muito mais para conseguirmos minimizar os riscos de forma marginal do que para trazer benefícios. Na maioria das empresas não se consegue ter uma mudança de layout tão rápida no pré-pós-pandemia, para depois fazer uma mudança efetiva no pós-pandemia de fato. No estado de São Paulo, o final da quarentena, a rigor, começará, de fato, em primeiro de julho, se é que essa data será mantida. Ainda é muito cedo, ao menos pelo que estamos vivenciando aqui, para ter algo mais do que uma sinalização de empresas que são de grande porte.
Algumas empresas estão cometendo algum tipo de exagero ao proporem reformulações dos espaços pós-pandemia?
Ana Carla Fonseca – Temos que tomar as medidas cabíveis, mas grandes empresas, que podem se permitir fazer adequações de layout, ainda que essas adequações sejam para daqui a algum tempo ou reformulações sobre adequações, muitas vezes, ao meu ver, têm tentado oferecer um conforto psicológico às pessoas, mais do que efetivamente algo pautado por uma diferença significativa do que seriam as precauções que já vêm sendo tomadas, como o uso de máscara, higienização, evitar contatos próximos em espaços que eram tradicionalmente frequentados. O que observamos é que em open spaces, sim, via de regra, as pessoas têm colocado divisórias transparentes para poderem se sentir mais à vontade, mas também não sei até que ponto isso acaba impactando em termos efetivos em minimizações de contágio.
Algumas indústrias têm uma forma particular de organizar o trabalho e concentram muitos trabalhadores num mesmo local. Que tipo de mudanças poderão ocorrer nesses ambientes?
Ana Carla Fonseca – Não consigo pensar em indústrias que de forma especial organizam o trabalho concentrando demasiadamente as pessoas no mesmo local, para além do que já é exigido. Então, acho que é preciso tomar as precauções de mudanças de hábitos, como uso de máscaras, higienização das mãos, de não ter contato físico dentro do possível, do uso de álcool em gel, enfim, o que já vem sendo disseminado.
Uma coisa importante e que vem sendo cada vez mais valorizada é a ventilação nos espaços, ou seja, não só a troca de filtros e a manutenção mais rigorosa dos aparelhos de ar-condicionado, mas medidas que possibilitem a ventilação e a circulação de ar nos ambientes de trabalho.
Qual será a centralidade da tecnologia daqui para frente nos espaços públicos e privados, em empresas e escritórios? Como a tecnologia tende a reconfigurar ainda mais os espaços de trabalho e quais mudanças estão sendo pensadas para o futuro?
Ana Carla Fonseca – Depende muito das categorizações desses escritórios, empresas e indústrias, inclusive em termos de recursos que eles possuem para ter acesso a tecnologias. No mundo ideal, o que observamos nos países europeus e em indústrias de maior porte, que podem se permitir isso, e em escritórios, ainda que pequenos mas que têm cacife, orçamento e disponibilidade para lidar com isso, ainda mais neste momento de queda de faturamento e de perspectiva de sobrevivência para muitos, são adoções de medidas como a regulagem de temperatura e de ventilação para evitar que as pessoas sejam suscetíveis a ficarem gripadas ou a transmitirem outros vírus além de covid-19.
Dentro do mundo ideal, e isso é inevitável não só por causa da covid-19, mas porque já era uma tendência, cada vez mais tenderemos a ter acesso não só às tecnologias, mas também às cidades inteligentes, para além das cidades digitais, que é quando todas as tecnologias conseguem conversar dentro de uma mesma plataforma de modo a se ter acesso a um trabalho de dados que permite fazer previsões e monitoramentos mais concatenados e integrados, do que simplesmente ter centrais digitais voltadas a questões específicas. Isso é o que, a meu ver, diferencia, em grande parte, cidades digitais de cidades inteligentes.
Nos espaços públicos, cada vez mais estas questões de integração tenderão a ser aceleradas e estamos observando isso em vários países, em alguns dos quais há monitoramento por câmeras muito mais para monitoramento dos hábitos das pessoas do que para qualquer outra coisa – em que pese toda a discussão sobre privacidade e afins. De todo modo, é uma discussão que inevitavelmente chegará aqui de uma forma ainda maior do que já vinha chegando.
Quando falamos de futuro, todo mundo que trabalha com previsões e estimativas tende a categorizar alguns tipos de futuros, ou seja, existem os futuros prováveis, os possíveis, os viáveis, os desejáveis, como grandes categorias. Neste momento em que todo mundo ainda está sendo muito afetado e não deu para decantar os efeitos da pandemia, por mais que se tente, intelectualmente, fazê-lo, é difícil separar os futuros prováveis daqueles futuros desejáveis – há muito dos nossos desejos colocados nas análises, salvo quando a pessoa é uma pessimista contumaz.
Extraído de Outras Palavras