A China e sua “Nova Economia do Projetamento”, 2021: 9,2%
A China continua a impressionar. O FMI projeta um crescimento ao país para este ano de 1,2% e 9,2% para 2021. A comparação com outras economias do G-20 é sugestiva. Os EUA podem ter PIB negativo acima de 5% e para 2021 poderá alcançar 1,2% de crescimento. A Alemanha, 4,2% negativos para 2020 e 4,9% positivos em 2021. A Coreia do Sul, 0,3% positivos para este ano. O Brasil regredirá cerca de 5% (as previsões do Banco Mundial são mais terríveis: queda de 8%) com a desvantagem da pauta das reformas liberais não ter saído de circulação. Enfim, tudo indica que a China deverá ser o carro-chefe da recuperação econômica mundial. A questão a ser respondida: qual a receita chinesa?
A resposta não é simples e convém retornarmos a dois fatos historicos. O primeiro relacionado com o surgimento – no pós-1945 – de economias capitalistas reguladas e com instrumentos muito eficazes de “socialização do investimento” em concorrência feroz com a União Soviética que em 1917 inaugurou a era de um tipo de economia onde a socialização dos meios de produção possibilitou a eficaz planificação e transformou o país em uma potência industrial, militar e tecnológica em apenas 40 anos.
Poucos atestam ao fato que existia algo em comum nos dois lados da “cortina de ferro”: em ambos os casos o ser humano influenciava de forma consciente o processo de acumulação. No capitalismo, via utilização do Princípio da Demanda Efetiva e no socialismo com a planificação central. Ignacio Rangel em 1959 chamava essas economias de – sobretudo a soviética, mas também as capitalistas centrais – “Economias do Projetamento”.
O segundo fato é relacionado com o advento da financeirização no centro do sistema capitalista levando ao desmonte de muitas instituições keynesianas, o surgimento da Zona do Euro impondo regras fiscais draconianas às economias que aderissem a esta união monetária e o final das primeiras experiências socialistas. Assim deixou de existir a perspectiva de economias movidas por grandes projetos e voltadas a criação de ambientes propícios a políticas de pleno emprego e de bem-estar social.
A contrarrevolução monetarista também levou consigo incipientes experiências de economias de projetamento, como a brasileira. Nos Estados Unidos um “keynesianismo militarizado” e o uso e abuso de políticas voltadas ao lado da oferta fez explodir a desigualdade social nos últimos 40 anos. Mesmo antigos “tigres asiáticos”, de forma menos agressiva, como a Coreia do Sul caiu na armadilha da financeirização.
Por outro lado, o que ocorreu na China neste mesmo período de tempo? A China organizou seu território para receber milhares de empresas norteamericanas, europeias e japonesas que buscavam menores custos de produção e acesso a um mercado potencial. Impôs suas próprias regras neste jogo obrigando empresas estrangeiras a se associarem com empresas locais transferindo tecnologia e know-how administrativo. Montou uma máquina de consumir, produzir e exportar. Copiou seus vizinhos coreanos e japoneses e tratou de subir degrau a degrau na escada de densidade tecnológica que foi ficando clara na evolução de suas exportações.
Ondas de inovações institucionais foram dotando o Estado de cada vez maior capacidade de intervenção na economia ao mesmo tempo em que formou um grande setor privado capaz de absorver mão-de-obra sobrante do campo e das estatais que foram sendo reformadas. A reforma do setor estatal da economia levou a um duro processo cujo final foi a transformação de milhares de empresas ineficientes em quase uma centena de grandes corporações fincadas nos setores estratégicos da economia.
Um setor financeiro estatal, de longo prazo e altamente capilarizado, foi formado de modo a tornar-se a muralha de aço de uma nova formação econômico-social que foi ganhando forma desde 1978. A conta de capitais do país foi fechada, blindando a política monetária do país dos dissabores das crises externas. A taxa de câmbio maxidesvalorizada é a marca de um sistema caracterizado pelo comércio exterior transformado em bem público, planificado e de Estado.
Na verdade, observando com a sorte da perspectiva histórica, a capacidade de duas mega-instituições (o Estado socialista e o Partido Comunista) em empreender inovações institucionais que antecipavam a solução de óbices “na frente” fez elevar a capacidade do Estado em intervir na economia e no território de forma cada vez mais rápida e eficiente. Um “ensaio geral” desta capacidade compreendeu um grande programa lançado em 1999 voltado ao desenvolvimento do oeste do país. Já a grande intervenção observada na resposta chinesa à crise de 2008, com o lançamento de um pacote fiscal de US$ 600 bilhões, já nos mostrou que um novo tipo de economia estava surgindo na China. Em homenagem a Ignacio Rangel nomeamos esta economia de “Nova Economia do Projetamento”.
Não é de espantar que uma economia, dotada de todos os mecanismos institucionais necessários para enfrentar situações de emergência como esta, seja não somente a primeira a sair da crise, mas também voltar a apresentar rapidamente robustos resultados econômicos. Esta “Nova Economia do Projetamento” é um arquétipo perfeito de uma “economia de prontidão”. Esta economia só o é por ser provida de capacidades estatais construídas ao longo das últimas décadas: soberania monetária exercida por grandes bancos públicos, ampla base de oferta sob o controle de conglomerados estatais, grandes reservas cambiais, um Estado capaz de se antecipar e prover soluções rápidas e se mover em torno de grandes projetos e sepultar o fantasma que assombra as economias ocidentais: a incerteza keynesiana. É o oposto de economias financeirizadas e/ou sem moeda soberana (por exemplo, Itália, Portugal e Grecia).
Uma leitura deste “grande quadro” histórico, político e institucional é suficiente para que se entenda as razões de a China vir a crescer 9,2% em 2021. Agora vire tudo ao contrário e encontraremos as razões do Brasil continuar a namorar com o óbito econômico. Com a morte este governo atual não está namorando. Ele já é cúmplice. Casado com a negação da vida.
Elias Jabbour, Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ. Membro do Comitê Central do PCdoB.