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    Comunicação

    Dinheiro: por que perder o medo de criá-lo

    Sempre me espantei pelo fato de a Teoria Monetária Moderna (TMM) ser chamada de “teoria”. Não faço a afirmação de forma depreciativa. Em relação às teorias sobre o dinheiro, estou convencida de que a TMM é a correta. Mas ter uma teoria adequada sobre o dinheiro é como ter uma teoria correta sobre semáforos Os […]

    POR: por Blair Fix*, em Outras Palavras

    14 min de leitura

    Cartas do evento “Soberania Monetária Africana”, realizado em Tunis, em novembro de 2019
    Cartas do evento “Soberania Monetária Africana”, realizado em Tunis, em novembro de 2019

    Sempre me espantei pelo fato de a Teoria Monetária Moderna (TMM) ser chamada de “teoria”. Não faço a afirmação de forma depreciativa. Em relação às teorias sobre o dinheiro, estou convencida de que a TMM é a correta. Mas ter uma teoria adequada sobre o dinheiro é como ter uma teoria correta sobre semáforos

    Os semáforos são (como o dinheiro) uma convenção social. Concordamos que o vermelho significa pare e o verde, siga. A razão pela qual escolhemos estas cores particulares é um tema interessante, assim com o é a escolha dos lugares onde situamos os semáforos. Mas o fato de o vermelho significar pare e o verde siga foi estabelecido. É algo que nós definimos. Algo similar se passa com o dinheiro. Claro, a moeda é mais complexa que os semáforos – mas apenas no que se refere a sua aplicação. Em termos conceituais, o dinheiro é igualmente simples. É uma convenção social cuja existência definimos.

    Para organizar nossa discussão sobre dinheiro, vamos começar com o que ele não é. O dinheiro não é uma coisa. Claro, ele pode assumir formas concretas, como cédulas e moedas. Mas não precisa. Pode ser tão abstrato como dígitos numa conta bancária, ou marcas num bastão. O dinheiro é uma ideia. E um acordo para ligar nossas relações sociais a uma unidade de conta. Para entender a criação de dinheiro, basta observar os princípios da contabilidade de duplo registro. O débito entra de um lado; o crédito, de outro. Os dois lados gêmeos têm sinais opostos, e portanto cancelam-se mutuamente. Isso nos permite criar dinheiro ao mesmo tempo em que mantemos nossas contas equilibradas.

    Eis um exemplo simples. Suponha que um amigo me faça um favor; e que eu queira retribuir, mas não tenha tempo de fazê-lo de imediato. Suponha ainda que dê a meu amigo um bilhete dizendo: “Blair te deve um favor”. Este bilhete é o dinheiro. É criado do nada, usando os princípios de contabilidade. De um lado, há um débito: devo a meu amigo um favor. Do outro, um crédito:meu amigo pode agora trocar o documento de dívida que lhe dei com outras pessoas. Temos agora dinheiro em circulação.

    É trivial compreender este ato de criação de dinheiro – tanto quanto compreender a criação de um semáforo. Assim como definimos as regras de trânsito, fixamos as normas de contabilidade de dupla entrada. E então, usamos estas regras para regular nosso comportamento, criando dinheiro à nossa vontade.

    O interessante, contudo, é que poucas pessoas não compreendem os semáforos. Todos sabemos que podemos colocá-los em qualquer lugar que desejemos, e que eles baseiam-se numa convenção social arbitrária. Contudo, isso não se dá em relação ao dinheiro. A grande maioria das pessoas não o compreende. Para elas, não se trata de uma convenção social arbitrária, que pode ser criada ou destruída à vontade. Em vez disso, enxergam o dinheiro como uma mercadoria escassa – algo que, como água num deserto, precisa ser guardado e conservado.

    Por isso, não precisamos tanto de uma teoria do dinheiro – mas de uma teoria sobre por que as pessoas não compreendem o dinheiro.

    A obrigação quantificada

    Para pensar sobre este assunto, vamos manter em nossa mente a definição de dinheiro. O antropólogo David Graeber é que melhor o define. O dinheiro, ele argumenta, é uma obrigação quantificada. O possuidor de dinheiro está qualificado a receber coisas de outras pessoas (Leia Dívida, os primeiros 5000 anos [em papel | em pdf (inglês)], de sua autoria, para uma explicação detalhada)

    Podemos ver, a partir desta definição, que o dinheiro é uma ferramenta poderosa. Na verdade, é uma ferramenta pra o poder. Se tenho muito dinheiro, posso levar outras pessoas a obedecer meus comandos. É um fato sem controvérsias. Todos conhecemos o adágio: “dinheiro é poder”. Mas por algum motivo nos esquecemos dele, quando pensamos na criação do dinheiro. Ele não é nada mais que uma obrigação quantificada. Por isso, em princípio, todos podemos criá-lo. Mas na prática, poucas pessoas têm este poder. O problema é que, para o dinheiro circular, as pessoas precisam acreditar que podem usá-lo para receber uma obrigação. Eu poderia tentar fazer com que circulasse uma cédula dizendo: “Blair te deve um abraço”. Mas, além da minha esposa e filha, poucas pessoas querem este documento de dívida. Por isso, ele nunca circulará como dinheiro.

    Na prática, a criação de dinheiro é feita quase exclusivamente pelos poderosos. Livros de Economia sobre o dinheiro usarão a palavra “confiança”. Eles dirão que o dinheiro pode circular enquanto confiemos no emissor. Isso é verdade, mas esconde o lado obscuro da relação de confiança. Quando soldados confiam em seu comandante, é provável que obedeçam ordens. Isso dá poder ao comandante. A confiança é, de muitas maneiras, a base do poder. Não é possível ter relações de poder estáveis sem ela.

    Por isso, embora eu pudesse tentar criar dinheiro, poucas pessoas estariam interessadas. Falta-me a confiança do público, o que é outra maneira de dizer que tenho pouco poder. Mas se o Estado quiser criar dinheiro, muitas pessoas estarão interessadas. Muitas pessoas creem no Estado, e é por isso que eles têm poder.

    Violência legítima

    É famosa a definição do sociólogo Max Weber, segundo a qual o Estado tem o “monopólio do uso legítimo da violência”. Penso que poderíamos igualmente definir o Estado como controlador do monopólio da criação legítima de dinheiro1. Há paralelos muito interessantes, aliás, entre a violência e o dinheiro.

    Assim como qualquer um pode criar dinheiro, qualquer um pode praticar violência. Você pode sair à rua neste exato momento e atirar em alguém. Mas a maior parte de nós não o faz. Por que? Primeiro, por acharmos que é errado. Segundo, porque o Estado pune os assassinos. Em outras palavras, a violência, nas sociedades modernas, é altamente regulada. O mesmo é verdade em relação ao dinheiro. Tecnicamente, qualquer um pode criá-lo. Mas poucos de nós o fazemos. Seu documento de dívida pessoal nunca circulará amplamente. E se você tentar criar o dinheiro garantido pelo Estado, este irá puni-lo. Assim como a violência, a criação de dinheiro é estritamente controlada. Para constatar este fato, basta examinar a linguagem. Temos um nome para o tabu da violência (assassinato) e um para o tabu da criação de dinheiro (falsificação).

    Os que crescemos em sociedades estáveis acreditamos que tanto a regulação da violência quanto a do dinheiro estão asseguradas. Esta regulação passa a ser sentida como uma “ordem natural”. Mas se você tivesse nascido num país em guerra, suspeito que pensasse diferente. Você compreenderia que qualquer um pode praticar violência – com resultados devastadores. E se você vivesse num período de hiperinflação, provavelmente compreenderia melhor que qualquer um pode criar dinheiro. (As pessoas tendem a definir sua própria moeda, quando o dinheiro estatal perde a confiança).

    Limites ao poder do Estado

    Uma dos maiores avanços da Teoria Monetária Moderna é sublinhar que os gastos do Estado não têm limites. Se os governos controlam sua própria moeda, eles podem gastar tanto dinheiro quanto queiram, criando moeda do nada. A questão importante não é se isso é verdade. Trata-se de uma verdade trivial, tanto quando é trivialmente verdadeiro que uma luz verde, num semáforo, significa siga. Qualquer emissor de dinheiro (o Estado ou outro) pode criar tanto dinheiro quanto queira. A questão importante é por que os Estados não gastam volumes ilimitados de dinheiro.

    Muitos economistas apontarão a inflação como o vilão. Crie muito dinheiro, eles dizem, e você terá hiperinflação. Veja o que ocorreu com a República de Weimar. É verdade que a criação de dinheiro pode levar à inflação. Mas os proponentes da TMM frisam que há uma solução simples. Os governos podem destruir dinheiro tão facilmente quanto criam. Os gastos governamentais criam dinheiro. A tributação o destrói. Também isso é trivialmente verdadeiro. E, no entanto, poucos (se é que há algum) governos aceitam este truísmo. Na verdade, a maior parte dos governos agem como se o dinheiro, como a água, fosse uma mercadoria escassa. Por que?

    A resposta, eu creio, tem a ver com poder. A criação de dinheiro é inseparável da acumulação de poder. Eis um exemplo. Suponha que eu sou um rei e reivindico a autoridade exclusiva de criar dinheiro. E suponha que todos, em meu reino, aceitam este direito. Eu crio montanhas de dinheiro e o uso para comprar toda a terra disponível. Eu acabo com a aristocracia fundiária. E ao fazê-lo, coloco todos os cidadãos sob meu comando. Todos, na prática, tornam-se empregados do Estado. É o sonho totalitário – uma sociedade inteira unida sob uma única hierarquia.

    A história é, claro, fantasia. O problema para um rei real é que seus súditos não aceitarão seu direito de criar somas ilimitadas de dinheiro. Haverá reações, em especial de pessoas poderosas. A aristocracia fundiária, por exemplo, não desejará renunciar a sua terra. Ela irá se opor ao direito do rei de criar dinheiro (ou de destruí-lo, por meio de impostos). A História demonstra que, ao contrário de serem criadores de moeda soberana, os reis feudais viviam em permanente necessidade de financiamento. É apenas outra maneira de dizer que os reis eram relativamente fracos. Faltava-lhes o poder para financiar a si mesmos.

    O mesmo é válido para os governantes modernos. Como os reis eles podem, em princípio, criar tanto dinheiro quanto queira. Mas na prática eles não o fazem, porque seu poder tem limites. Quando os governos criam dinheiro, eles acumulam poder, o que significa, implicitamente, que tiram poder de outras pessoas, eventualmente poderosas. A aristocracia fundiária não queria ceder o controle de suas terras ao rei. As corporações modernas não querem ceder poder ao Estado. É exatamente por isso que se opõem continuamente à criação de dinheiro pelo governo.

    A arbitrariedade do poder

    Certamente, não sou o primeiro a relacionar a criação de dinheiro com o poder. Porém, muitas (provavelmente, a maioria) das pessoas não compreendem o dinheiro. Por que? Uma boa teoria do dinheiro deveria explicar esta incompreensão. Por que – embora seja claramente verdade – as maiorias recuam diante da ideia de que qualquer um pode criar dinheiro, na quantidade que desejar?

    Minha suspeita é que aceitar este fato é difícil porque significa aceitar que nossa ordem social é arbitrária. Os que criam dinheiro não o fazem a partir de um direito natural, mas devido ao poder que lhes é dado arbitrariamente. Nada faz a mente humana recuar tanto quanto descobrir que as coisas que mais prezamos – os padrões e crenças que dominam nossas vidas – são arbitrárias.

    Isto conduz a uma verdade profunda sobre o comportamento humano. Nossas convenções são, por definição, arbitrárias. E, no entanto, a existência destas convenções sustenta-se em nossa crença de que não são arbitrárias. Uma das piores coisas que é possível dizer sobre uma lei é que é “arbitrária”. Convença um número suficiente de pessoas desse fato e a lei logo mudará. De modo similar, uma das piores coisas que você pode dizer sobre a criação de dinheiro é que ela é “arbitrária”. Nossa ordem social depende de que esqueçamos (ou nos recusemos a enxergar) este fato. O lado oculto é que mudar a ordem social exige lembrar desta arbitrariedade.

    Para aprofundar-se:

    Galbraith, J. (1975). O Dinheiro: De onde veio, para onde foi, diversas edições em português.

    Graeber, D. (2010).Dívida: Os primeiros 5000 anos. São Paulo. Três Estrelas

    Robbins, R. H., & Di Muzio, T. (2016).Debt as power. Manchester University Press.

    Rowbotham, M. (1998). The grip of death: A study of modern money, debt slavery and destructive economics. Jon Carpenter Publishing.

    1 Já sei das objeções. Os bancos privados criam dinheiro – então, como os governos podem ter o monopólio da criação legítima da moeda? Penso que os bancos são o equivalente às corporações que contratam mercenários Elas são instituições do setor privado a quem se transferiu o direito de praticar violência. O mesmo se dá aos bancos, em relação ao dinheiro. Os bancos são instituições do setor privado a quem se deu o direito de criar dinheiro. Tão facilmente como concedeu, o Estado pode tirá-lo assim que quiser

    *Blair Fix – Economista político em Toronto. Pesquisa como as desigualdades econômicas e o uso de energia relacionam-se com as hierarquias sociais. Seu primeiro livro, Rethinking Economic Growth Theory From a Biophysical Perspective, foi publicado em 2015. Twitter: @blair_fix.
    Tradução – Antônio Martins
    Publicado em Outras Palavras

     

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