Dinheiro: por que perder o medo de criá-lo
Sempre me espantei pelo fato de a Teoria Monetária Moderna (TMM) ser chamada de “teoria”. Não faço a afirmação de forma depreciativa. Em relação às teorias sobre o dinheiro, estou convencida de que a TMM é a correta. Mas ter uma teoria adequada sobre o dinheiro é como ter uma teoria correta sobre semáforos
Os semáforos são (como o dinheiro) uma convenção social. Concordamos que o vermelho significa pare e o verde, siga. A razão pela qual escolhemos estas cores particulares é um tema interessante, assim com o é a escolha dos lugares onde situamos os semáforos. Mas o fato de o vermelho significar pare e o verde siga foi estabelecido. É algo que nós definimos. Algo similar se passa com o dinheiro. Claro, a moeda é mais complexa que os semáforos – mas apenas no que se refere a sua aplicação. Em termos conceituais, o dinheiro é igualmente simples. É uma convenção social cuja existência definimos.
Para organizar nossa discussão sobre dinheiro, vamos começar com o que ele não é. O dinheiro não é uma coisa. Claro, ele pode assumir formas concretas, como cédulas e moedas. Mas não precisa. Pode ser tão abstrato como dígitos numa conta bancária, ou marcas num bastão. O dinheiro é uma ideia. E um acordo para ligar nossas relações sociais a uma unidade de conta. Para entender a criação de dinheiro, basta observar os princípios da contabilidade de duplo registro. O débito entra de um lado; o crédito, de outro. Os dois lados gêmeos têm sinais opostos, e portanto cancelam-se mutuamente. Isso nos permite criar dinheiro ao mesmo tempo em que mantemos nossas contas equilibradas.
Eis um exemplo simples. Suponha que um amigo me faça um favor; e que eu queira retribuir, mas não tenha tempo de fazê-lo de imediato. Suponha ainda que dê a meu amigo um bilhete dizendo: “Blair te deve um favor”. Este bilhete é o dinheiro. É criado do nada, usando os princípios de contabilidade. De um lado, há um débito: devo a meu amigo um favor. Do outro, um crédito:meu amigo pode agora trocar o documento de dívida que lhe dei com outras pessoas. Temos agora dinheiro em circulação.
É trivial compreender este ato de criação de dinheiro – tanto quanto compreender a criação de um semáforo. Assim como definimos as regras de trânsito, fixamos as normas de contabilidade de dupla entrada. E então, usamos estas regras para regular nosso comportamento, criando dinheiro à nossa vontade.
O interessante, contudo, é que poucas pessoas não compreendem os semáforos. Todos sabemos que podemos colocá-los em qualquer lugar que desejemos, e que eles baseiam-se numa convenção social arbitrária. Contudo, isso não se dá em relação ao dinheiro. A grande maioria das pessoas não o compreende. Para elas, não se trata de uma convenção social arbitrária, que pode ser criada ou destruída à vontade. Em vez disso, enxergam o dinheiro como uma mercadoria escassa – algo que, como água num deserto, precisa ser guardado e conservado.
Por isso, não precisamos tanto de uma teoria do dinheiro – mas de uma teoria sobre por que as pessoas não compreendem o dinheiro.
A obrigação quantificada
Para pensar sobre este assunto, vamos manter em nossa mente a definição de dinheiro. O antropólogo David Graeber é que melhor o define. O dinheiro, ele argumenta, é uma obrigação quantificada. O possuidor de dinheiro está qualificado a receber coisas de outras pessoas (Leia Dívida, os primeiros 5000 anos [em papel | em pdf (inglês)], de sua autoria, para uma explicação detalhada)
Podemos ver, a partir desta definição, que o dinheiro é uma ferramenta poderosa. Na verdade, é uma ferramenta pra o poder. Se tenho muito dinheiro, posso levar outras pessoas a obedecer meus comandos. É um fato sem controvérsias. Todos conhecemos o adágio: “dinheiro é poder”. Mas por algum motivo nos esquecemos dele, quando pensamos na criação do dinheiro. Ele não é nada mais que uma obrigação quantificada. Por isso, em princípio, todos podemos criá-lo. Mas na prática, poucas pessoas têm este poder. O problema é que, para o dinheiro circular, as pessoas precisam acreditar que podem usá-lo para receber uma obrigação. Eu poderia tentar fazer com que circulasse uma cédula dizendo: “Blair te deve um abraço”. Mas, além da minha esposa e filha, poucas pessoas querem este documento de dívida. Por isso, ele nunca circulará como dinheiro.
Na prática, a criação de dinheiro é feita quase exclusivamente pelos poderosos. Livros de Economia sobre o dinheiro usarão a palavra “confiança”. Eles dirão que o dinheiro pode circular enquanto confiemos no emissor. Isso é verdade, mas esconde o lado obscuro da relação de confiança. Quando soldados confiam em seu comandante, é provável que obedeçam ordens. Isso dá poder ao comandante. A confiança é, de muitas maneiras, a base do poder. Não é possível ter relações de poder estáveis sem ela.
Por isso, embora eu pudesse tentar criar dinheiro, poucas pessoas estariam interessadas. Falta-me a confiança do público, o que é outra maneira de dizer que tenho pouco poder. Mas se o Estado quiser criar dinheiro, muitas pessoas estarão interessadas. Muitas pessoas creem no Estado, e é por isso que eles têm poder.
Violência legítima
É famosa a definição do sociólogo Max Weber, segundo a qual o Estado tem o “monopólio do uso legítimo da violência”. Penso que poderíamos igualmente definir o Estado como controlador do monopólio da criação legítima de dinheiro1. Há paralelos muito interessantes, aliás, entre a violência e o dinheiro.
Assim como qualquer um pode criar dinheiro, qualquer um pode praticar violência. Você pode sair à rua neste exato momento e atirar em alguém. Mas a maior parte de nós não o faz. Por que? Primeiro, por acharmos que é errado. Segundo, porque o Estado pune os assassinos. Em outras palavras, a violência, nas sociedades modernas, é altamente regulada. O mesmo é verdade em relação ao dinheiro. Tecnicamente, qualquer um pode criá-lo. Mas poucos de nós o fazemos. Seu documento de dívida pessoal nunca circulará amplamente. E se você tentar criar o dinheiro garantido pelo Estado, este irá puni-lo. Assim como a violência, a criação de dinheiro é estritamente controlada. Para constatar este fato, basta examinar a linguagem. Temos um nome para o tabu da violência (assassinato) e um para o tabu da criação de dinheiro (falsificação).
Os que crescemos em sociedades estáveis acreditamos que tanto a regulação da violência quanto a do dinheiro estão asseguradas. Esta regulação passa a ser sentida como uma “ordem natural”. Mas se você tivesse nascido num país em guerra, suspeito que pensasse diferente. Você compreenderia que qualquer um pode praticar violência – com resultados devastadores. E se você vivesse num período de hiperinflação, provavelmente compreenderia melhor que qualquer um pode criar dinheiro. (As pessoas tendem a definir sua própria moeda, quando o dinheiro estatal perde a confiança).
Limites ao poder do Estado
Uma dos maiores avanços da Teoria Monetária Moderna é sublinhar que os gastos do Estado não têm limites. Se os governos controlam sua própria moeda, eles podem gastar tanto dinheiro quanto queiram, criando moeda do nada. A questão importante não é se isso é verdade. Trata-se de uma verdade trivial, tanto quando é trivialmente verdadeiro que uma luz verde, num semáforo, significa siga. Qualquer emissor de dinheiro (o Estado ou outro) pode criar tanto dinheiro quanto queira. A questão importante é por que os Estados não gastam volumes ilimitados de dinheiro.
Muitos economistas apontarão a inflação como o vilão. Crie muito dinheiro, eles dizem, e você terá hiperinflação. Veja o que ocorreu com a República de Weimar. É verdade que a criação de dinheiro pode levar à inflação. Mas os proponentes da TMM frisam que há uma solução simples. Os governos podem destruir dinheiro tão facilmente quanto criam. Os gastos governamentais criam dinheiro. A tributação o destrói. Também isso é trivialmente verdadeiro. E, no entanto, poucos (se é que há algum) governos aceitam este truísmo. Na verdade, a maior parte dos governos agem como se o dinheiro, como a água, fosse uma mercadoria escassa. Por que?
A resposta, eu creio, tem a ver com poder. A criação de dinheiro é inseparável da acumulação de poder. Eis um exemplo. Suponha que eu sou um rei e reivindico a autoridade exclusiva de criar dinheiro. E suponha que todos, em meu reino, aceitam este direito. Eu crio montanhas de dinheiro e o uso para comprar toda a terra disponível. Eu acabo com a aristocracia fundiária. E ao fazê-lo, coloco todos os cidadãos sob meu comando. Todos, na prática, tornam-se empregados do Estado. É o sonho totalitário – uma sociedade inteira unida sob uma única hierarquia.
A história é, claro, fantasia. O problema para um rei real é que seus súditos não aceitarão seu direito de criar somas ilimitadas de dinheiro. Haverá reações, em especial de pessoas poderosas. A aristocracia fundiária, por exemplo, não desejará renunciar a sua terra. Ela irá se opor ao direito do rei de criar dinheiro (ou de destruí-lo, por meio de impostos). A História demonstra que, ao contrário de serem criadores de moeda soberana, os reis feudais viviam em permanente necessidade de financiamento. É apenas outra maneira de dizer que os reis eram relativamente fracos. Faltava-lhes o poder para financiar a si mesmos.
O mesmo é válido para os governantes modernos. Como os reis eles podem, em princípio, criar tanto dinheiro quanto queira. Mas na prática eles não o fazem, porque seu poder tem limites. Quando os governos criam dinheiro, eles acumulam poder, o que significa, implicitamente, que tiram poder de outras pessoas, eventualmente poderosas. A aristocracia fundiária não queria ceder o controle de suas terras ao rei. As corporações modernas não querem ceder poder ao Estado. É exatamente por isso que se opõem continuamente à criação de dinheiro pelo governo.
A arbitrariedade do poder
Certamente, não sou o primeiro a relacionar a criação de dinheiro com o poder. Porém, muitas (provavelmente, a maioria) das pessoas não compreendem o dinheiro. Por que? Uma boa teoria do dinheiro deveria explicar esta incompreensão. Por que – embora seja claramente verdade – as maiorias recuam diante da ideia de que qualquer um pode criar dinheiro, na quantidade que desejar?
Minha suspeita é que aceitar este fato é difícil porque significa aceitar que nossa ordem social é arbitrária. Os que criam dinheiro não o fazem a partir de um direito natural, mas devido ao poder que lhes é dado arbitrariamente. Nada faz a mente humana recuar tanto quanto descobrir que as coisas que mais prezamos – os padrões e crenças que dominam nossas vidas – são arbitrárias.
Isto conduz a uma verdade profunda sobre o comportamento humano. Nossas convenções são, por definição, arbitrárias. E, no entanto, a existência destas convenções sustenta-se em nossa crença de que não são arbitrárias. Uma das piores coisas que é possível dizer sobre uma lei é que é “arbitrária”. Convença um número suficiente de pessoas desse fato e a lei logo mudará. De modo similar, uma das piores coisas que você pode dizer sobre a criação de dinheiro é que ela é “arbitrária”. Nossa ordem social depende de que esqueçamos (ou nos recusemos a enxergar) este fato. O lado oculto é que mudar a ordem social exige lembrar desta arbitrariedade.
Para aprofundar-se:
Galbraith, J. (1975). O Dinheiro: De onde veio, para onde foi, diversas edições em português.
Graeber, D. (2010).Dívida: Os primeiros 5000 anos. São Paulo. Três Estrelas
Robbins, R. H., & Di Muzio, T. (2016).Debt as power. Manchester University Press.
Rowbotham, M. (1998). The grip of death: A study of modern money, debt slavery and destructive economics. Jon Carpenter Publishing.
1 Já sei das objeções. Os bancos privados criam dinheiro – então, como os governos podem ter o monopólio da criação legítima da moeda? Penso que os bancos são o equivalente às corporações que contratam mercenários Elas são instituições do setor privado a quem se transferiu o direito de praticar violência. O mesmo se dá aos bancos, em relação ao dinheiro. Os bancos são instituições do setor privado a quem se deu o direito de criar dinheiro. Tão facilmente como concedeu, o Estado pode tirá-lo assim que quiser
*Blair Fix – Economista político em Toronto. Pesquisa como as desigualdades econômicas e o uso de energia relacionam-se com as hierarquias sociais. Seu primeiro livro, Rethinking Economic Growth Theory From a Biophysical Perspective, foi publicado em 2015. Twitter: @blair_fix.
Tradução – Antônio Martins
Publicado em Outras Palavras