Investida baixa contra Losurdo joga água no moinho de quem?
Grandes polêmicas no interior do marxismo sempre tiveram temperaturas altas e munições de espesso calibre com leituras rigorosas, evocação de citações, contra-argumentações sagazes. Livros inteiros foram publicados para responder a teses de interlocutores ou mesmo a ações políticas adversárias. Em debate, em discussões internas constantes, a luta de ideias no seio da esquerda gravitou, amiúde, em torno de personalidades e elaborações de propostas para solucionar grandes problemas históricos.
Ao responder a Proudhon, que publicara Filosofia da Miséria, Marx elaborou a resposta com um trocadilho criativo: Miséria da Filosofia. Com Engels, Marx ironizou os irmãos Bauer, com o título imponente A Sagrada Família. Mais ácido no título, Lenin, sem perder a sagacidade, classificou o ex-companheiro Kautsky de “renegado”. Outros tantos títulos saborosos foram portas de entrada para a leitura de obras clássicas. Todos esses são livros que trazem, além de um título cáustico, grandes questões da filosofia marxista, da tática da revolução proletária, da luta contra o idealismo filosófico.
Todavia, nada dessa tradição se encontra no livro de Mário Maestri, que, a começar por seu título, não expressa um julgamento sobre as ideias de Losurdo, mas uma calúnia moral. Uma ofensa vazia contra o filósofo italiano, seus editores e leitores, uma promessa de quem vai contar um grande segredo ou apresentar uma grande confissão.
Maestri coloca que o “principal objeto deste ensaio” é o “neo-estalinismo” que “é apenas formalmente tributária do estalinismo anterior a 1956” [p. 13]. “Não tem um centro único irradiador, ainda que se tenha conformado inicialmente sobretudo no seio e em torno do Partido Comunista da Federação Russa” [p. 13], na China e outros países que formaram a ex-URSS e que passaram pela restauração capitalista. Seria, então, para o autor, a “ideologia justificadora da contra-revolução capitalista, no seio do movimento que se diz marxista” [p. 13]. Não há maiores definições sobre o que o “neo-estalinismo” seja. Seria uma ideologia contra-revolucionária, porque produzida por aqueles que o autor considera contra-revolucionários sem dar maiores explicações. Tautologia explícita.
Segue o texto com depoimentos pessoais de histórias desnecessárias para o livro. E numa delas (quando da recente e breve trajetória do autor no Partido Comunista Brasileiro, PCB) uma “querida” camarada, em debate com Maestri [p. 14], argumentava sobre questões gerais da história da esquerda mundial. Maestri, como “historiador de profissão”, “a tudo respondia” e argumentava, mas como “quase um mantra” ela repetia a recomendação “Já leste Losurdo? Lê Losurdo!” [p. 14, 43]. Mas o nome do filósofo italiano não chegou, nos últimos tempos, aos ouvidos do arrogante Maestri apenas pela “querida” camarada. Também por Jones Manoel, o jovem marxista e militante do PCB que se tornou sensação no Youtube, que, para o autor, é “o principal propagandista de Domenico Losurdo e do neo-estalinismo no Brasil” [p. 15]. Aos poucos, o autor vai mostrando seus objetivos com o livro: propagandear a existência de um “neo-estalinismo”, que seria o cancro do marxismo e que corromperia a juventude militante, editoras, professores. Em muitos momentos, o texto se baseia unicamente na intuição ou na experiência pessoal de Maestri.
Maestri afirma que Losurdo não é conhecido em seu país [p. 15, 65]. Seu sucesso no Brasil dever-se-ia a uma espécie de consórcio de “neo-estalinistas”, que vai de editoras, a influenciadores de internet, passando por jovens e professores universitários, que, juntos, o tornaram conhecido. E, através desse consórcio, universidades começaram a adotá-lo em seus cursos. E aqui temos a fórmula para criar best-sellers de esquerda. O intelectual italiano palestrou, debateu e lançou livros em universidades de diversas cidades como São Paulo, Rio e Janeiro, Florianópolis, Campinas, São Luiz, Santo André, entre outras. Losurdo encheu auditórios, vendeu milhares de livros, fez debates com outros marxistas, reuniu-se com dirigentes da esquerda brasileira de diversos matizes. Mas, para o autor, isso tudo se resume ao poder do marketing editorial. Um intelectual com centenas de traduções, entrevistas, capítulos, ensaios, artigos, livros (fora os prêmios) lançados na Alemanha, Espanha, França, Turquia, Brasil, Argentina, Japão, Inglaterra, Estado Unidos, China, Rússia, Portugal e outros países [Materialismo Storico, n° 1/2018 (vol. IV), p. 22-47], qual seria o problema se não fosse conhecido no seu próprio país? Nenhum. O critério de avaliação de um intelectual ser reduzido a “ser conhecido” é sofrível. E neste caso, o país que mais tem publicações de Losurdo é a Itália.
Outra distorção rasteira com a qual Maestri tenta imputar descrédito a Losurdo, é que o intelectual italiano não seria marxista [p.20-21], porque o índice onomástico do livro Stalin – história crítica de uma lenda negra acusa a quantidade de vezes que é escrita a palavra “Marx”: “Entretanto, Losurdo não é pensador marxista (…) No índice de nomes do livro em questão, Hegel aparece treze vezes e Marx, uma!” Ainda que isso, em si, não queira dizer muito, é preciso esclarecer que, de fato, apesar de o índice onomástico citar uma vez só a referência a Marx, na página 365 – a bibliografia, as obras (Werke, 1955-1989) com Engels -, há um aspecto que o autor não considerou: o índice onomástico está errado e não contou a palavra “Marx”, pelo menos, nas seguintes páginas: 17, 18, 56, 58, 62, 66, 99, 112, 114, 128, 166, 178, 179, 211, 212, 260, 261, 279, 282, 283, 319, 321, 332 e 366. Como historiador, o autor deveria saber como o índice onomástico é um instrumento frágil, levando-nos a considerar duas hipóteses: erro acidental ou deliberado. A quantidade de vezes que aparece a palavra “Marx” não deve servir de critério para avalizar se alguém é mais ou menos marxista.
Das dezenas de livros de Domenico Losurdo – e por volta de 20 traduzidos no Brasil por diversas editoras –, Maestri cita apenas dois deles: Stalin – história crítica de uma lenda negra (Editora Revan) e O marxismo ocidental (Boitempo Editorial). E a partir de dois livros, o autor se julga apto a vaticinar sobre toda obra de Losurdo e suas intenções subjacentes. Para Maestri, além de “farsante”, “falsário”, “Pinóquio”, “mentiroso contumaz”, que comete “disparates terraplanistas”, Losurdo também seria um “apologista da restauração capitalista”.
O autor também acusa Losurdo de não ser versado em língua russa [p. 31, 34, 71], o que, aparentemente, segundo Maestri, o desabilitaria para tratar de determinados temas, como Stalin. Mas o conjunto da obra de Losurdo não trata das novas questões ligadas aos documentos e aos arquivos colocados ao alcance público antes da publicação do livro Stalin. No livro, Losurdo fez o que se propôs a fazer: uma história crítica do dirigente soviético a partir de extensa bibliografia nas línguas que dominava. Apreciando autores que haviam trabalhado o tema de forma incansável – independentemente da posição em relação ao objeto posto. Os assuntos e temas que Losurdo trabalhava correntemente exigiam dele profundo conhecimento de, além do italiano, alemão, inglês e francês, entre outras, pois era um historiador da filosofia. E são essas as principais línguas com as quais ele trabalhava.
Na primeira metade do panfleto detrator, alguns capítulos são oriundos de postagens literais de Facebook. Sendo assim, o cuidado com as palavras, rigor das ideias, revisão ortográfica, pontuação e o preparo do texto final não existem. Somos obrigados a lidar com o chamado “textão” – jargão das redes sociais para textos grandes e, geralmente, em tom de desabafo – de várias dezenas de páginas. E, ensaiando um alento ao leitor, que já sofreu tanto com as palavras, o autor oferece uma homenagem ao historiador marxista Jacob Gorender, mas o foco é o próprio Maestri. Como um bom usuário de Facebook, o autor fala bastante de si. Dessa segunda metade já não tem mais referências fundamentais a Losurdo – uma ou duas referências explícitas.
Duas ou três (outras) incoerências se fazem às vistas no texto de Maestri na terceira parte do livro. Afirma o autor na introdução: “Finalmente, foi a ‘Terceira Parte’, ‘Vozes que venceram a Morte – Os Trotskistas Prisioneiros de Vekhneuralsk’ que motivou a presente publicação”. Aparentemente são opiniões, documentos e impressões sobre prisioneiros mortos na URSS, dos anos 1930, que compõem um imenso mosaico para analisar o período e os rumos daquele país, assim como a ascensão do nazi-fascismo. Vale um livro com esses documentos, que enriqueceriam o universo editorial mais do que ataques a Losurdo. Mas vamos às incoerências.
Se o “neo-estalinismo” tem uma relação apenas formal com o “estalinismo anterior a 1956” o que faz dessas “vozes” um terço do livro Como se ligam as “vozes” com o “neo-estalinismo”? A terceira parte do livro, que deveria tornar a “obra” um todo uno não se justifica. Outra incoerência é que, se Losurdo não poderia tratar das questões relativas a Stalin por não saber russo, por que o autor apresentou documentos tão importantes a partir de tradução do francês?
No fundo, o debate proposto por Maestri se coloca menos nas questões ligadas à conceituação do “neo-estalisnimo”, da crônica sobre a luta de classe na URSS, no período pós Stalin – pois, nesses pontos ele explica pouco, repete a si e a outros -, mas no antigo debate sobre a tática para a revolução. Todo o texto está permeado por esta motivação, Losurdo é um pretexto. Maestri desconsidera e desrespeita a diversidade tática no seio das correntes marxistas. Se não está de acordo com Maestri in totum são, pois, contra-revolucionários, conservadores, restauradores do capitalismo, apologistas disso ou daquilo.
Essas são polêmicas tradicionais, antigas e até legítimas. O problema do conjunto de textos de Maestri é a desonestidade no trato das questões que ele anuncia desenvolver e não desenvolve, enquanto ataca (somente depois do falecimento) superficialmente Losurdo [p.e.“(…) sequer é autor conservador confiável (…) p. 20] e não as ideias dele. Torna o texto uma espécie de transcrição de conversa de bar com muitos adjetivos e pouco rigor.
O texto beira a obsessão na página 65: “Vivemos hoje uma nova onda conservadora e obscurantista – o neo-estalinismo”. É isso o que tem a dizer sobre os dias de hoje, ao que tudo indica. Sobre a maior crise estrutural do capitalismo, de 2008, e que Losurdo se dedicou tão seriamente a desvendar, nenhuma menção. Sobre o aprofundamento da crise em todo o mundo com a pandemia que escancara uma incomensurável onda de desemprego (a introdução é de 1/8/2020), nada. Quando tratou de Bolsonaro foi de forma secundária para atacar Lula, Flávio Dino e a proposta de frente ampla. Trump não é sequer mencionado.
Maestri lê apressadamente, com uma conclusão a priori, e não abstrai de Losurdo os nexos que constituem o pensamento analisado. Não alcança, assim, a profundidade e nem a complexidade do pensamento de Losurdo. Dessa forma, o resultado se apresenta como alguma coisa longe do que é a obra do filósofo italiano, não pela discordância de Maestri, mas pelo rigor e honestidade que lhe faltam na avaliação – mesmo para os padrões do formato ensaio. Para entender Domenico Losurdo, o melhor a se fazer é ler suas obras, sem intermédios.
Tenho duas sugestões ao leitor: primeira, assista à homenagem a Domenico Losurdo em https://www.youtube.com/watch?v=wBwzEkhQAVE
Segunda sugestão: “Já leste Losurdo? Lê Losurdo!”
*Fernando Garcia de Faria é historiador, mestrando em História Econômica na USP, coordenador do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois e integra o Conselho Editorial da Editora Anita Garibaldi