“Considero isso uma tragédia a longo prazo, porque se está entregando a essas plataformas a própria formação da identidade e da cultura brasileira”, acrescenta, em entrevista concedida por chamada de vídeo pelo Telegram à IHU On-Line. País poderia desenvolver plataformas próprias, adaptadas a suas particularidades, livres do domínio das corporações. Mas entrega dados de milhões ao Google e Facebook, perde autonomia e mercantiliza área crucial para o futuro.

O debate não é novo e o professor lembra que isso está na discussão dos usos desses aplicativos que parecem facilitar nossas vidas. “Enquanto se está discutindo sobre R$ 600 para a pessoa não morrer de fome, o Facebook e o Google estão ganhando bilhões de dólares de uma forma completamente invisível em cima de nossas atividades”, alerta. Mas o quadro se acentua quando se trata de educação pública e dos jovens, que se imagina serem o futuro das nações. “É muito triste isso tudo que está acontecendo, num momento em que poderíamos estar aproveitando a pandemia para reconstruir pelo menos os sistemas educacionais, pois temos uma excelente Rede Nacional de Pesquisa que poderia ser a base para se construir uma rede pública a serviço da educação”, lamenta.

No entanto, Dantas reconhece que esse não é um debate fácil, pois muitas pessoas dizem que a estrutura estatal é lenta e incapaz de gerar as respostas que se precisa diante de quadros como esse, especialmente num curto espaço de tempo. Mas, lembra o professor, é preciso compreender que para as empresas isso é um negócio. A empresa “não me responde, está perdendo dinheiro. Ela não me responde logo porque é boazinha ou competente, mas porque se não fizer isso está perdendo dinheiro”, reitera.

Para ele, mesmo que se pareça nadar contra maré, é preciso tensionar e levantar esse debate. “Quando se veem documentários como ‘The Social Dilemma’ ou ‘Privacidade Hackeada’, percebe que começa a crescer na sociedade um debate sobre essas questões”, aponta. Debate esse que, quem sabe, pode levar à definição das plataformas como um serviço público, algo que, no contexto ideológico atual, segundo o professor, seria uma autêntica ‘apostasia’. “Essas plataformas, Facebook, YouTube etc., no mínimo têm que ser reguladas pelo Estado, assim como há cem anos passamos a ter leis para energia elétrica, telefonia e uma série de serviços públicos, nascidos com base em tecnologias que eram revolucionárias ou inéditas à época”, dispara.

Marcos Dantas é professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, é, ainda, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT-UFRJ. Entre suas publicações, destacamos Trabalho com informação: valor, apropriação, acumulação nas redes do capital (Rio de Janeiro: Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFRJ, 2012) e A lógica do capital-informação: fragmentação dos monopólios e monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais (Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2002).

Confira a entrevista

Qual o significado do trabalho para a sociedade contemporânea?
Parto do princípio de que o trabalho é inerente ao ser humano, é constitutivo do ser humano. Logo, em toda e qualquer sociedade, contemporânea ou não, o homem é o seu trabalho. O que muda ao longo das épocas são as formas de trabalho, também as relações sociais que envolvem o processo de trabalho. Ou seja, o valor positivo ou negativo ao que cada sociedade considera como trabalho.

Então, numa sociedade escravocrata, por exemplo, se verá no trabalho algo extremamente depreciativo; os homens livres jamais diziam que estavam trabalhando, se sentiam ofendidos se alguém dissesse que teriam de fazer algum trabalho. Na própria linguagem existia diferença entre opus e labora, no latim, por exemplo. A palavra “negócio” também vem do latim e significa, na sua origem, ‘negar o ócio’, colocando o ócio como algo que é positivo e não necessariamente coisa de vagabundo, mas tempo para as artes, para a filosofia, para a política que, claro, só podia ser desfrutado pelas elites, pela nobreza, pelos guerreiros, pelos sacerdotes.

A sociedade moderna, constituída a partir dos artesãos e mercadores, passa a valorizar o trabalho, passa a ter uma visão positiva do trabalho e essa visão passa por todos os pensadores do século XVIII. Adam Smith, por exemplo, começa “A Riqueza das Nações” dizendo que essa riqueza se apoia no trabalho; filósofos como Bacon, Leibniz e vários outros vão colocar que o conhecimento tinha que se basear no trabalho, na atividade dos trabalhadores, dos artesãos, e assim se passa a ter uma visão positiva do trabalho.

Hoje, determinados setores de pensamento passaram a sustentar que o trabalho estaria superado e ultrapassado. Do ponto de vista de que o trabalho é constitutivo do ser humano, ele não está superado e não está ultrapassado. Mas, do ponto de vista das relações capitalistas de produção, certamente estamos testemunhando mudanças importantes nas relações trabalhistas. O trabalho central hoje, do ponto de vista da acumulação capitalista, não é aquele que Marx viu no século XIX, ou o que Adam Smith viu no século XVIII. Sempre acontecem transformações e hoje, se falamos de trabalho, temos que considerar aspectos que em outros momentos da modernidade não eram considerados.

Uma dimensão de trabalho que considero central hoje em dia é a dimensão artística ou mesmo esportiva. Essas atividades no tempo de Marx eram consideradas externas à lógica produtiva, não pertenciam à lógica econômica como ocorre hoje, do trabalho que produz valor para o capital. Logo, o trabalho continua sendo da essência do ser humano e, ainda, continua essencial para a valorização do capital.

Como a ideia de trabalho se reconfigura diante do cenário das redes e do mundo digital? A digitalização do sistema bancário, por exemplo, diminui o trabalho do funcionário do banco.
Aí, temos que recuperar e entender algumas noções marxianas básicas e uma delas é a distinção clara entre o trabalho produtivo e o trabalho improdutivo. Trabalho produtivo é trabalho que valoriza capital e trabalho improdutivo é toda atividade que não valoriza o capital.

A discussão hoje é se muitas das nossas atividades corriqueiras não estariam no fundo servindo para valorizar capital mesmo que nos pareçam apenas naturalmente cotidianas. Então, é pertinente discutir se hoje, quando estou realizando minhas atividades financeiras através da internet, eu não estaria substituindo um bancário, logo trabalhando para o banco no lugar de um empregado assalariado. Neste caso, eu posso estar contribuindo para valorizar capital. Acho que cabe discutir isso.

Há outras questões que, para mim são muito mais fáceis de entender. Quando estou, por exemplo, no Facebook ou no You Tube curtindo ou comentando coisas, não tenho dúvida nenhuma em afirmar que estou trabalhando para o capital, pois estou produzindo dados que as plataformas negociarão com anunciantes ou vendedores de bens e serviços. Elas lucram com o tempo não remunerado que eu dedico a elas, entregando a elas os meus dados pessoais. E lucram, claramente, com o meu corpo e mente em movimento, com o meu cérebro, nervos, músculos, órgãos dos sentidos agindo para receber ou enviar mensagens, sejam fotos, vídeos e posts, sejam simples “gostei”, “não gostei”. Muita gente, agora, está comentando o documentário “The Social Dilemma” [no Brasil, O Dilema das Redes, em exibição no Netflix]. Nele, executivos das plataformas ou engenheiros confessam que estão fazendo exatamente isso, extraindo os meus, os teus, os nossos dados para valorizar a plataforma. Então, estou produzindo dados para eles e nesse caso estou trabalhando para eles.

Mas as pessoas, de modo geral, parecem ignorar esse dado e até dizem que não se importam e que preferem o benefício de desfrutar desses aplicativos e sistemas. Quais os desafios para a conscientização das pessoas sobre a importância dessa realidade?
O primeiro desafio é a própria conscientização. Quando você vê documentários como o “The Social Dilemma” ou “Privacidade Hackeada” [no original “The Great Hack”, também da Netflix], você percebe que começa a crescer na sociedade um debate sobre essas questões.

De fato, a sociedade naturalizou tudo isso. E é muito difícil essa conscientização. Eu sinto isso toda hora, pois sou o chato que fica levantando esse tipo de polêmica em todo lugar e as pessoas dão exatamente essa repostas: “mas, e daí?!”. Agora mesmo, na universidade, tivemos uma enorme oportunidade de construir plataformas para as aulas remotas, para organizar o ensino nessas novas condições, mas estamos usando Zoom, Google Classroom, Microsoft Teams de uma forma completamente irresponsável.

Então, eu levanto esse tipo de discussão e o pessoal diz: “mas e daí?! Essas ferramentas são mais fáceis, são mais simples. O da Universidade não funciona”. Ouço esses tipos de argumentos que implicam você questionar: por que o Google Classroom funciona? Funciona porque tem um monte de dinheiro investido, tem um bando de engenheiros trabalhando nisso e isso é uma experiência global. São milhões de pessoas mandando dados e a partir daí eles podem aperfeiçoar o sistema. Além de todo investimento feito em servidores, redes etc.

Veja o caso da velocidade de resposta da assistência técnica: tem um bando de gente concentrada para resolver. E se não derem respostas em minutos, alguém pode ir para a rua… Já eu tive um problema na hora em que quis acessar um sistema universitário, não vou entrar em maiores detalhes, não consegui acessar, mandei uma mensagem para o suporte e me respondeu cinco horas depois! Já o sistema de uma grande corporação teria me respondido na hora, nem que fosse uma mensagem automática do tipo “recebemos sua mensagem, obrigado!”. Se não responder pode perder o cliente, está perdendo dinheiro. Ele não me responde logo porque é bonzinho ou competente, ele me responde logo porque se não fizer isso está perdendo dinheiro. De fato, as experiências que temos com algumas plataformas universitárias são, não raro, decepcionantes mas elas só poderão melhorar se nós mesmos pressionarmos para melhorar, cobrarmos das equipes técnicas e das direções, ao invés de apenas dar os ombros.

Ou seja, é um processo de conscientização e, nisso, essas deformações que essas plataformas vêm provocando na democracia estão ajudando, porque tem cada vez mais gente percebendo que há um problema sério no campo da democracia. Precisamos debater, no momento não vejo outra possibilidade que não seja debater o tema. O debate vai levar, como já está acontecendo na Europa, a projetos de lei. Não é um processo fácil e imediato, é um processo político que está começando.

Em que medida esses conceitos de trabalho material e trabalho imaterial servem para compreender esse mundo em transformação? Dão conta desse desafio?
O único trabalho imaterial que eu conheço é aquele que Deus fez ao criar o mundo. Todo trabalho é material. Essa ideia de trabalho imaterial é uma perigosa invasão idealista. Acredito que se Marx ressuscitasse hoje ele faria alguns comentários jocosos como aquelas ironias que ele dirigia a Proudhon e a outros da sua época, nos rascunhos que escrevia. N’ O Capital ele já é mais comedido, mas nos rascunhos de vez em quando ele soltava o verbo mesmo.

Para começar, todo o trabalho é feito com o corpo, a nossa mente está no nosso corpo, não fazemos nada sem o corpo. E todo o trabalho é feito através da energia e matéria que nos cerca, é a luz, o som, o calor, o frio, o tato, o cheiro, tudo isso é matéria-energia e, através disso, nós percebemos o mundo e damos significados a ele. Por isso, toda a atividade é material, é feita com matéria-energia e, no fundo, tem por finalidade manter nosso corpo vivo. A cultura humana é produto da necessidade humana de manter o corpo vivo. E nisso nos diferenciamos de qualquer outro ser vivo, pois enquanto qualquer outro animal tem uma relação imediata com a natureza, o ser humano tem uma relação com a natureza mediatizada pela sua cultura. E isso vale tanto para o neandertal que pintava a caverna antes de caçar, quando vale para nós hoje com todo esse mundo tecnológico que nos cerca.

O que se discute hoje é justamente um processo de trabalho que está envolvendo toda a sociedade, dois, três bilhões de pessoas no Facebook, por exemplo, e bilhões de pessoas no mundo inteiro usando o Google para fazer buscas. A partir daí um segmento muito pequeno da sociedade se apropria desse conhecimento geral, se apropria dessas culturas todas, dessas práticas sociais para gerar um lucro fantástico. Para se ter ideia, o lucro do Google no ano passado foi de 39 bilhões de dólares.

E aí que acho que há um aspecto importante para se pensar, e é aí que imagino ser o papel que a esquerda deveria cumprir: começar a relacionar essas práticas sociais a esses extraordinários lucros financeiros. Se tomarem consciência disso, as pessoas podem começar a desenvolver alguma crítica. Porque enquanto se está discutindo R$ 600 para a pessoa não morrer de fome, o Facebook e o Google estão ganhando bilhões de dólares de uma forma completamente invisível em cima das nossas atividades cotidianas.

E é assim que o Jeff Bezos tornou-se o homem mais rico do mundo, o Bill Gates, o segundo mais rico, mas essa riqueza vem de onde? Vem de mim, vem de você. Na hora que for possível conectar essa realidade com algum discurso político, talvez aumente uma certa consciência política a respeito de quem está realmente ganhando com essa “brincadeira”.

Então, mesmo no sentido epistêmico, o senhor acha que o conceito de imaterial perde força, se torna etéreo?
Exato, fica extremamente subjetivo sem a relação necessária com o corpo, com a sobrevivência, com a nossa realidade prática.

O senhor já falou brevemente, mas gostaria que detalhasse como apreende o fato de estruturas do Estado abrirem mão de desenvolverem plataformas de uso comum, como na área da educação, por exemplo, e legar esse trabalho à iniciativa privada? O que significa todo o ensino público no Rio Grande do Sul, por exemplo, ser entregue a uma plataforma como o Google Classroom?
Considero isso uma tragédia a longo prazo, porque você está entregando para essas plataformas a própria formação da identidade e da cultura brasileira. Imagine que educação é um processo em que uma criança entra com quatro, cinco, seis anos e, pensando teoricamente de forma otimista, vai sair com 23, 24 ou 25 anos. Todo um enorme conjunto de informações sobre as perspectivas, possibilidades, roteiros de evolução desses milhões de crianças e jovens, o que eles poderão ser no futuro já está sendo tratado desde agora pelos algoritmos do Google. O Google e, por extensão, os poderes imperiais dos Estados Unidos, já podem dizer o que vai ser o Brasil daqui a 15 ou 20 anos. E nós não podemos.

 

O Google Classroom é uma plataforma que foi adotada por muitos gestores de escolas públicas para aulas remotas da educação básica, como no estado do Rio Grande do Sul (Foto: Foto: Reprodução/Google Classroom)

Por isso considero tudo uma tragédia, é muito ruim. E depois que você vê o documentário “O dilema das redes”, e vê os próprios caras que construíram essas coisas dizendo como eles produzem seus usuários, torna-se uma tragédia anunciada. Não é só o Snowden, não é só o Assange: é “Privacidade hackeada”, é “O dilema das redes”, ninguém tem mais o direito de se fingir ingênuo. Como eles falam no documentário, indústria de plataformas é uma indústria de droga, o produto é tão viciante quanto.

Então, quando o Estado brasileiro renuncia – aliás renunciou a controlar as telecomunicações no governo de FHC, renunciou controlar o seu subsolo também no governo FHC quando entregou a Vale, acabou de entregar a Embraer (depois o processo não prosperou, mas está destruindo todo o sistema de ciência e tecnologia) – se tem de fato um processo de desmonte do Estado brasileiro. E ainda de forma mais radical agora, pois estão queimando matas, florestas, Pantanal, e isso tudo está fazendo parte do processo. E isso se dá em todos os setores, falam do presidente, mas são todos os setores. O Congresso também não faz nada, a Justiça não só não faz nada como, não raro, não ajuda. É uma completa falta de compreensão, patriotismo, de brasilidade, de visão de futuro, é o triunfo da mediocridade.

É muito triste isso tudo que está acontecendo, num momento em que a gente poderia estar aproveitando a pandemia para reconstruir pelo menos os sistemas educacionais. Temos uma excelente Rede Nacional de Pesquisas que poderia ser a base para se construir uma rede pública a serviço da educação, uma infraestrutura construída pelas próprias universidades públicas que, porém, está aí brigando para ver se consegue pegar alguns nacos desse mercado, enfrentando as ofertas e poder de convencimento do Google Classroom, Microsoft Teams etc. Tudo é reduzido a mercado, mas nem tudo pode ser. A educação não é mercado.

Ainda sobre o campo da educação, é impressionante pensar que toda essa transformação causada pela pandemia está gerando dados que as redes de pesquisas nas universidades, e o próprio Estado, não vão ter como acessar.
Com certeza, não vai demorar muito para começarmos a ver aparecer as consultorias do Google dizendo como educar nossas crianças. E, detalhe: para fazê-las felizes, elas têm que curtir…

O senhor trabalha o conceito de capital-informação. Gostaria que detalhasse essa perspectiva. E quais os desafios para compreender esse conceito na prática?
O capital-informação, que foi um conceito que deu origem a um livro meu em 1996, implica dizer que o capital, no seu processo evolutivo, passou a organizar a produção e a apropriação do valor em torno da apropriação imediata da informação. Pela lógica marxiana, a apropriação se dá mediatizada pela mercadoria. É preciso que haja um objeto externo pelo qual se fazem as trocas, as transferências de valor. E como esse objeto externo é propriedade de alguém, alguém transfere a sua propriedade em troca de outra propriedade. Geralmente essa outra propriedade que se dá em troca é o dinheiro, representante universal do valor.

Só que o capital, na sua evolução, foi cada vez mais transformando o processo produtivo em produção e comunicação de informação. Claro que quando se comunica informação, é preciso ter um suporte qualquer. Mas o lucro vem dessa relação comunicativa, muda da mediação mercantil para uma mediação diretamente semiótica, que é a marca. Você não compra as coisas, compra as marcas, a Nike, o Adidas, o iPhone, o Android. E, assim, começa a viver num mundo de marcas.

O preço que se paga por um medicamento, que é caríssimo, na verdade, não expressa algum valor de troca, é um valor apropriado como renda por causa de uma patente em cima da ciência e tecnologia embutida numa pílula qualquer. Temos sempre que embutir a informação num suporte material qualquer, mas se está pagando é pela ciência e tecnologia, pelo desenho, pelo trabalho que produz isso. Sim, é trabalho, de cientistas, de projetistas, é trabalho ainda produzindo valor para o capital, mas valor apropriado na forma de patentes, direitos intelectuais. E todo o trabalho que não produz isso tende a ser desqualificado. Daí vem essa ideia de “trabalho imaterial”, também de “fim do trabalho”, e essas coisas. Informação, por definição, não é equalizável e a mercadoria, por definição, é equalizável. Logo, informação não pode ser trocada, ao contrário da mercadoria, só pode ser apropriada como renda.

Uma das muitas definições que existem de informação, do Gregory Bateson, é que informação é diferença que produz diferença. O processo de produção de mercadoria é justamente um processo de produção de uma igualdade. Quando o capital passa a negociar informação, ele está negociando algo que não é equalizavel, por isso precisa da patente e de toda uma estrutura jurídica de apropriação, que é uma estrutura de cercamento do conhecimento. Daí, a crescente discussão sobre o conceito de “comum” Tem a ver com isso: as pessoas passam ter que pagar para ter acesso a algum recurso informacional, seja na forma de um medicamento, seja na forma de software ou música. Só conseguem esse acesso, se pagam o preço que é imposto. Esse preço é preço de monopólio, logo gera rendas de monopólio.

Essa é uma ideia que Rifkin e vários autores já colocaram: estaríamos numa economia do direito de acesso. Você pode pagar pelo acesso ou então, pode não pagar nada mas tem que dar os seus dados pessoais, de graça. É sempre uma relação desigual, não é uma relação de equivalentes. Isso porque alguém tem o monopólio do conhecimento. Então, estamos indo – ou já estamos vivendo – numa sociedade moderna rentista, que é o mundo do capital financeiro. É o capital financeiro se apropriando diretamente do valor do trabalho sem mais a mediação do produtor de mercadorias.

Assim, isso, em tese, é o que chamo de capital-informação. Não deixa de ter o trabalho produzindo valor, mas esse trabalho, que é orgânico, sistêmico e que só produz valor não por mecanismo de troca, mas por mecanismo de renda, de cercamento através de patentes, de “jardins murados”.

E são essas lógicas que fazem com que o trabalho no século XXI se transforme por completo?
Sim. Tem várias instâncias no processo de trabalho que chamo, a partir de expressões da Teoria da Informação, de trabalho aleatório e trabalho redundante. O aleatório é o trabalho criativo, que tem o erro por pressuposto, é o trabalho científico, artístico, efetuado na base da tentativa e erro. O trabalho redundante é justamente aquele em que o erro não está pressuposto, o erro tem que ser eliminado, controlado. No trabalho aleatório, a taxa de redundância é muito baixa, no redundante, ao contrário, a taxa de redundância é muito alta. Ou seja, no limite, é o trabalho do ‘sim’ e ‘não’, do ‘certo’ e do ‘errado’, é o famoso trabalho de montagem taylorista lá do passado. Quando se chega nesse estágio, é possível substituir esse trabalhador por uma máquina.

Onde foi possível colocar máquina, onde tinha trabalho redundante, o desenvolvimento das tecnologias digitais pode avançar. Mas nos processos onde o erro é pressuposto, estamos tratando com uma dimensão comunicacional que, no limite, é incomensurável. Aqui, o cérebro humano ainda é insubstituível. Assim, a relação de trabalho vai se modificando na medida em que você vai podendo substituir trabalho redundante por máquina e, por isso, vai fechando cada vez mais a demanda por trabalho reprodutivo. Só que as pessoas que são excluídas do processo têm que continuar sobrevivendo de alguma maneira. E isso vai gerando esse mundo caótico em que estamos vivendo.

E como resolver a equação dessa legião de pessoas que não conseguem acessar essa outra forma de trabalho?
É, com certeza, temos uma legião mundial de lúmpens. Isso está criando essa sociedade da barbárie em que já estamos vivendo. Como resolver isso? Aí, meu caro, é bom lembrar uma autora do início do século XX, chamada Rosa de Luxemburgo, que escreveu um livreto com o título Socialismo e barbárie, porque acho que ela estava com a razão…

O capitalismo está produzindo um lumpensinato global que está ai fazendo o que temos visto em todo o mundo. O capitalismo, gerando essa massa desorganizada, inculta e que tem que sobreviver de um jeito ou outro, está produzindo essa barbárie, territórios dominados por milicianos, narcotraficantes, jihadistas, populações que aderem ao fundamentalismo religioso, aos evangélicos pentecostais etc. Vemos isso no mundo inteiro, não somente no mundo periférico, mas também nos Estados Unidos, na Alemanha.

Em meio a esses dilemas, tem ressurgido o debate sobre uma renda básica universal. Qual sua opinião sobre esse tema?
Para mim, é pão e circo. Na Roma antiga era a mesma coisa: o que era o proletariado romano? Era exatamente o cidadão livre e pobre. Porque ele era livre não trabalhava, porque trabalhar era algo ímpio, atividade de escravo, de liberto, de não cidadão.  O aristocrata precisava sustentar essa massa de cidadãos pobres para evitar “problemas” e sustentava com o pão e com circo. Na verdade, uma renda básica universal pode ser uma medida paliativa, pode evitar uma terrível crise social, mas o que precisaria mesmo é de uma nova política, de um novo Estado que pegasse essa multidão e dessa a ela uma nova formação intelectual, preparasse-a para um novo mundo do trabalho.

Aonde está a saída para isso? A saída é arte, é a música, o esporte, a educação, a saúde. As pessoas não querem mais trabalhar em fábricas ou bancos e nem encontram mais empregos aí. É esse o mundo capitalista em que vivemos e as melhores políticas são aquelas em que vimos aparecer, por exemplo, no meio do noticiário da última Copa do Mundo. Exemplo: a seleção da Islândia. A Islândia é um país pequeno mas fez um bom sucesso na última Copa. Foram ver qual era o motivo de sucesso e descobriram que o país tem uma política que pega os jovens que tendem à exclusão e os inserem em programas esportivos. Então, o jovem percebe um futuro profissional, virar jogador de futebol. E quem não gosta de jogar futebol? A Alemanha não tem nenhum craque de verdade no seu time. O sucesso da Alemanha está no coletivo de uma equipe que veio se formando desde lá debaixo. É uma política de Estado. Veja o Mbappé, um jogador francês que faz muito sucesso. Ele também é produto de uma política de Estado que pega meninos das periferias francesas e os insere num processo educativo ligado ao esporte.

Se quisermos ter soluções estruturais para a crise atual, precisamos pegar essa meninada que está entrando na escola e inseri-las em programas em que possam desenvolver suas potências criativas, seja no esporte, na música, na arte, sem esquecer, claro, e a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico. É claro que nem todo mundo tem competência para tudo, ninguém vai ser craque de futebol assim do nada, tem certas habilidades que são inatas do ser humano – não sei nem como é isso, mas sei que é – , mas o fato é que também todo mundo pode ser bom em alguma coisa. Basta ter formação e oportunidade.

É preciso fazer isso com toda essa meninada porque emprego em banco e fábricas já não existe mais e, daqui há pouco, não vai ter nem atividade de entregador de iFood, pois já estão sendo feito experimentos com drones, balões, automóveis sem motorista etc. Hoje, por exemplo, já temos impressoras 3D para costurar roupas, já se tem impressora 3D para construir prédio. Já e já, já não terá mais emprego de pedreiro, não haverá nem mesmo esse emprego semiescravo de costura de roupa que existe hoje, que faz bolivianos migrarem para o Brasil ou Argentina em busca de trabalho semiescravo em confecções de roupas. Precisamos realmente uma política estrutural para construir um novo tipo de ser humano, mas não será o capital que vai fazer isso. O capital, no máximo, pode adotar essa renda mínima para o pessoal ficar um pouco sossegado.

Essa sua sugestão seria, então, uma saída para além do capital? E não compreende, por exemplo, lógicas que falam em novas estruturas, em reforma do capitalismo?
Óbvio, desde que sou criança nunca pensei em reformar o capitalismo. Infelizmente, esse chip veio comigo e não consigo mais trocar. Mas, pensando bem, alguma coisa dá para fazer dentro do capitalismo, conforme os exemplos que citei. Importante é que sejam políticas públicas, sistêmicas, integradas, políticas de Estado, não iniciativas bem intencionadas de ONGs pilantrópicas…

Como imagina ser o futuro do trabalho, tendo em perspectiva essa experiência da pandemia?
Não se trata de um pós-pandemia. Talvez com uma vacina tenhamos um pós-pandemia, mas nuitas coisas que já vinham em processo foram aceleradas agora. Como já destaquei, você tem um processo capitalista que tende cada vez mais a valorizar o trabalho criativo, ou o que chamo de trabalho informacional aleatório, arte, desenhos, esportes, ciência e tecnologia, etc., e por isso mesmo um processo que tende cada vez mais eliminar ou desqualificar, reduzir as situações bem miseráveis, o trabalho redundante.

Nisso entra uma segunda questão, que é a divisão internacional do trabalho. O trabalho criativo, tradicionalmente, desde que Colombo descobriu o caminho da América, sempre foi concentrado nos países centrais e raramente um país periférico consegue romper isso. Um exemplo de país periférico que rompeu isso foi a Coréia do Sul. Outro exemplo, a China. Mas, geralmente, o trabalho mais criativo, baseado em ciência e tecnologia, ficou sendo o trabalho criador dos grandes paradigmas conceituais e ficou sempre lá no Norte. Até mesmo essa ideia de “DigiLabour”, mais uma expressão que vem dos colonizadores. O trabalho redundante vai sendo jogado para a periferia.

Nós não conseguimos, enquanto Brasil, superar isso. Eu acho que até chegamos no limite de romper, tivemos um momento em que poderíamos romper esse circuito, mas não rompemos por uma série de questões e a tendência é de que a sociedade brasileira fique cada vez mais com o que é pior em termos de trabalho. Acabei de observar que dos nove homens, e uma mulher, pois tem uma mulher, mais ricos do Brasil, cinco ou seis são financistas e quatro são varejistas. Ou seja, o capitalismo brasileiro, hoje, é o capitalismo de especuladores financeiros ou de varejistas. São as duas pontas do processo total de circulação do capital e são justamente o que há de pior no capitalismo. Será que não se tem mais nada no meio?

O agronegócio brasileiro não passa de mera plataforma de exportação de tecnologia estrangeira: trabalha com sementes da Monsanto, trabalha com máquina Caterpillar, é um mero terreno onde você produz informação na forma de soja para exportar. O Brasil dá apenas o terreno para essas empresas produzirem e uma pequena mão de obra para operar o trator. No caso brasileiro estamos vendo que a sociedade decidiu, com a eleição que tivemos e que vão repetir agora e depois daqui a dois anos, estamos vendo que a sociedade quer ser realmente isso aí, quer ser a periferia da periferia. Não consigo ser nada otimista nesse cenário até porque quem poderia estar pensando um projeto de como sair disso, não está nem entendendo o que está rolando, está ainda jogando nos marcos de uma democracia liberal que já fracassou há muito tempo.

Pensar um controle dessa geração de dados e marcos legais que protejam esses dados pode ser um caminho? Como pensar num ideal de regulação de dados e como ela se daria via regulação estatal?
Esse documentário “O Dilema das Redes” coloca uma hipótese em que eu já havia pensado, mas não tive coragem de falar. Todo esse negócio tem que ser posto na ilegalidade. Quem disse foi a Shoshana Zuboff [professora aposentada de administração de negócio pela Harvard Business School, Ph.D. em psicologia social da Universidade de Harvard e bacharel em filosofia pela Universidade de Chicago]. No documentário, ela usa uma imagem muito forte, porque diz que, para nossa sociedade, o comércio de órgãos é ilegal, o comércio de escravos é ilegal. Quando fala exatamente isso, está equiparando esse mercado de dados ao mercado de escravos. Isso é muito pesado. Mas ouvimos isso de uma Ph.D. de Harvard. Eu penso exatamente assim: esse comércio tinha que ser posto na ilegalidade.

De fato, essa é a única alternativa. A Lei Geral de Proteção de Dados, que foi uma invenção europeia, e foi uma invenção da Europa porque as plataformas não são europeias, no fundo legitima esse mercado. Eu não posso usar quaisquer dessas plataformas se eu não concordo em ceder meus dados. No máximo ela me diz, pela lei, como está usando esses dados. Mas se eu tento configurar para não usar os meus dados, a plataforma simplesmente não me permite o acesso ao serviço. Isso porque esse é o mais-valor que está sendo criado, é o que ela está extraindo  de mim por meio das minhas atividades nela. Tempo de trabalho não pago que dou para elas.

Tudo bem, podem argumentar que o YouTube paga você se você conseguir tantos impulsionamentos no seu vídeo, mas paga uma miséria qualquer. O Facebook bota no próprio relatório financeiro dele que a receita média por usuário é de 20 dólares. Como ninguém paga nada para usar o Facebook, e ele diz que a receita média por usuário é de 20 dólares, significa que esse usuário que nada paga está gerando uma receita. Então, hipoteticamente, poder-se-ia fazer um acerto com o Facebook: eu pego dez dólares e a empresa fica com os outros dez. Até podemos chegar a este ponto, mas o modelo permanece. Esse é o tipo de debate que aparece em “O Dilema das Redes”.

Se é essencial, deve ser público
A única maneira realmente de parar com isso seria proibir o modelo, fazer dessas redes um serviço de natureza pública, mas defender isso hoje seria uma verdadeira apostasia. Há cento e pouco anos atrás, alguém inventou a rede elétrica e ela se tornou tão necessária para a vida humana que o serviço passou a ser regulado pelo Estado. Pode até ser fornecido por uma empresa privada, mas existe uma lei, uma regulação e só pode ser fornecida por uma empresa se o Estado permitir que forneça. A mesma coisa a telefonia que, lá atrás, passou a ser regulada pelo Estado. E na maioria dos países, não nos Estados Unidos, passou a ser fornecida diretamente pelo Estado até chegar a onda neoliberal do final do século passado que privatizou tudo isso. Mas nos países civilizados, países democratas e capitalistas avançados, houve a privatização mas o Estado continuou presente através dos organismos de regulação, das “golden share” etc. É o caso do Brasil também: do ponto de vista institucional, telecomunicações ainda são um serviço público, esta lá na lei, na Constituição. O Estado concede à iniciativa privada. Agora se o nosso Estado fiscaliza é outra história…

Veja o transporte urbano, a mesma coisa. O mínimo que precisamos ter aí é uma pesada regulação estatal em cima das plataformas. Estou escandalizado porque vi, de repente, que o Facebook está transmitindo jogo de futebol. Como? Existe uma lei, uma Constituição. Então, o Facebook está concorrendo com uma emissora de TV que é regulada, isso não pode! Tem que haver uma autoridade que diga na mesma hora: não, não e não! Ou então se muda a lei, tudo bem, se leva ao debate isso. Mas isso, hoje, não pode. Facebook é uma empresa estrangeira, está lá fora, com computadores lá fora e de repente está transmitindo jogos para 60 milhões de brasileiros!

Essas plataformas, Facebook, YouTube, etc., no mínimo têm que ser reguladas pelo Estado, assim como há 100 anos passamos a ter leis para energia elétrica, telefonia e uma série de serviços público. Essas plataformas viraram serviços essenciais. Veja o WhatsApp, virou serviço essencial. A partir do momento que tem 60 milhões de pessoas usando, virou serviço essencial. Brigar por regulação em cima das plataformas era o mínimo que se poderia fazer, mesmo em um estado capitalista liberal. Agora, o máximo seria a proposta da Shoshana Zuboff: considerar o mercado de dados tão ilegal quanto o mercado de órgãos.

Marcos Dantas, em entrevista João Vitor Santos, na IHU Online