Teletrabalho: pode vir aí um novo precariado
Especular sobre como será o mundo pós-pandemia de Covid-19 é uma atividade a que têm se dedicado analistas das mais diversas áreas na atualidade. Em um momento em que o novo coronavírus ainda faz milhares de vítimas diárias em todo o mundo e o desenvolvimento de um medicamento ou vacina eficaz contra a doença não se encontra no horizonte imediato, ainda há muitas dúvidas sobre o que virá após a pandemia que chegou ao Brasil em março deste ano. Para especialistas da área do trabalho, uma tendência que veio para ficar é a de crescimento da utilização, em diversos setores, do chamado trabalho remoto, que ganhou impulso com a crise sanitária. Mas qual será o impacto disso para o mundo do trabalho no Brasil? Especialistas ouvidos pela Poli alertam que, ainda que traga algumas vantagens, a ausência de regras claras para disciplinar o trabalho remoto no país, associada a um cenário de precarização das relações de trabalho e aumento do desemprego e da informalidade, pode significar perdas para os trabalhadores.
O que diz (e não diz) a legislação
Ainda há muitas lacunas do ponto de vista da legislação trabalhista em relação ao tema. A expressão trabalho remoto vem sendo utilizada nesse contexto de pandemia como sinônimo de home office, que por sua vez já era utilizada largamente no Brasil para designar uma modalidade de trabalho desempenhada em domicílio. “É curioso notar que essa expressão só é usada aqui no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, não se fala em home office, usam-se outras expressões, como telework, entre outras”, destaca Fernanda Bohler, doutoranda em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e uma das coordenadoras da pesquisa ‘Trabalho remoto/home-office no contexto da pandemia Covid-19’, realizada por pesquisadores do Grupo de Estudos Trabalho e Sociedade da UFPR, com apoio da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (REMIR). A legislação brasileira, no entanto, só fala em teletrabalho, termo que foi introduzido na CLT pela Reforma Trabalhista aprovada em 2017. No artigo 75-B da CLT, o teletrabalho é descrito como “a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo”. “Teletrabalho e home office são, na verdade, expressões para dizer que um trabalho remoto é feito a partir das TICs [Tecnologias de Informação e Comunicação]. Isso o diferencia, por exemplo, do trabalho a domicílio, que é aquele feito por trabalhadores autônomos que não se utilizam de meio tecnológico”, explica Fernanda, citando como exemplo as costureiras que trabalham de casa para entregar encomendas para empresas do setor têxtil, uma prática bastante comum no país.
A lei da Reforma Trabalhista excluiu, no entanto, os teletrabalhadores dos dispositivos da CLT que regulam o controle da jornada de trabalho e, consequentemente, a necessidade de pagamento de horas-extras pelos seus empregadores. “O teletrabalho é realizado fora das dependências da empresa, sem controle de jornada. Se a minha empresa fica em Brasília e eu estou realizando o meu trabalho em Goiânia, digamos, de dentro do carro usando um telefone, eu estou em teletrabalho, mas não estou em home office”, explica o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) Márcio Amazonas. E completa: “Com a pandemia, o modo mais comum de teletrabalho passou a ser o home office, mas para o home office não se justifica ficar com a completa ausência de controle de jornada”.
Fausto Augusto Junior, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), concorda. Para ele, é emblemático que o teletrabalho tenha sido incorporado à legislação justamente pela lei da Reforma Trabalhista, que segundo ele trouxe para dentro da legislação “desvios” que eram utilizados por empregadores para burlar as leis trabalhistas, mesmo que sob risco de processos judiciais. “O teletrabalho que vai para dentro da legislação é algo que de certa forma já era praticado sem que a legislação permitisse. Foi isso que a Reforma Trabalhista fez e é nesse sentido que a gente a encarou como precarização do trabalho. Ela pega algumas modalidades de contratos de trabalho muito específicas e coloca para as empresas como se fosse um ‘cardápio’ de opções”, critica. E complementa. “É um olhar sempre a partir dos interesses da empresa, o trabalhador tem que se virar”. Segundo ele, um dos efeitos da ampliação do trabalho remoto em meio à pandemia tem sido a incorporação dessa temática nas convenções coletivas negociadas por sindicatos de diversas categorias. “As negociações estão trazendo parte das preocupações dos trabalhadores em relação a esse tema, principalmente na questão de quem é que paga a conta: a empresa tem que prover todos os meios para a pessoa trabalhar de maneira remota”, afirma Fausto, e completa: “A gente viu casos agora na pandemia em que empresas chegaram a falar para o trabalhador que ele tinha duas opções: se tivesse equipamento em casa, podia trabalhar em casa. Se não, tinha que vir trabalhar na sede da empresa, no meio de uma pandemia”.
Essa é uma das poucas disposições de regulamentação do teletrabalho trazidas para a CLT pela Reforma Trabalhista, que incluiu na legislação o artigo 75-D, onde se lê que “a aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito”, e não devem integrar a remuneração do trabalhador. Segundo o juiz do Trabalho Geraldo Magela Melo, autor do artigo ‘O teletrabalho na nova CLT’, publicado no site da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), ao reafirmar a prevalência do que é negociado sobre o que é legislado, uma das marcas da Reforma Trabalhista, a legislação sobre o teletrabalho, “não cumpriu a finalidade de proteção jurídica ao teletrabalhador, uma vez que questões essenciais da relação de trabalho são todas remetidas ao contrato entre as partes”. O jurista ainda fez críticas ao fato de que a legislação, mesmo estabelecendo que para uma alteração do regime de trabalho presencial para o do teletrabalho é necessário acordo mútuo entre trabalhadores e empregadores, o mesmo não se aplica no sentido contrário, uma vez que o regime de teletrabalho pode ser alterado para o presencial “por determinação do empregador”, desde que garantido prazo mínimo de 15 dias para tal.
Já o artigo 75-E trata da prevenção aos acidentes de trabalho e diz apenas que o empregador “deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho”. O artigo possui um único parágrafo, segundo o qual o empregado “deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador”. Para Marcio Amazonas, existe um “gap regulatório” sobre o tema do trabalho remoto no país. “A gente vai ter que regulamentar isso de uma maneira muito inteligente, levando em consideração medidas de saúde mental, questões ergonômicas, controle de jornada, entre várias outras”.
E foi por pouco que, já em meio à pandemia, a legislação sobre trabalho remoto não ficou ainda pior. Em março, o governo federal apresentou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 927/2020, que dispunha sobre medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública decretado em razão da pandemia, mas ela acabou caducando no Congresso Nacional. “Era uma regulação brutalmente unilateral”, critica Atnágoras Lopes, da secretaria executiva da central sindical CSP-Conlutas. E exemplifica: “Ao contrário do que diz atualmente a CLT, ela dizia que uma empresa só precisava de dois dias de antecedência para avisar ao funcionário que ele iria passar a trabalhar de casa”. A MP também flexibilizava ainda mais a legislação com relação à responsabilidade sobre a aquisição dos equipamentos e infraestrutura necessárias para o trabalho de forma remota pelos trabalhadores, afirmando que ela poderia ser estabelecida em contrato firmado até 30 dias após a mudança do regime presencial para o de teletrabalho. A MP também propunha que o tempo de uso de aplicativos ou programas de comunicação fora do horário de trabalho não se enquadrassem como tempo de trabalho, o que para Atnágoras Lopes aumentaria a jornada de forma não remunerada e não regulada.
Quem e quantos são esses trabalhadores?
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Covid-19, que vem sendo divulgada desde maio pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que, até a segunda semana de agosto, havia 8,3 milhões de pessoas trabalhando remotamente, em torno de 10% das pessoas ocupadas no país. Números que apontam para um crescimento significativo dessa modalidade de trabalho durante a pandemia, já que, segundo o próprio IBGE, a quantidade de pessoas que trabalhavam nessa modalidade em 2018 – ano em que o instituto registrou um recorde nesse contingente no país – era de 3,8 milhões. Segundo o IBGE, militares e servidores estatutários somavam 24,6% dos teletrabalhadores registrados pela PNAD Covid-19, enquanto os empregados do setor público com carteira assinada perfaziam 21,4% do total; em seguida vinham os trabalhadores do setor público sem carteira assinada (18,1%), os empregadores (13,2%), os trabalhadores do setor privado com carteira assinada (11,4%) e os sem carteira assinada (8,7%) e pelos trabalhadores por conta própria (5,2%). Em torno de 31% dos trabalhadores em regime de trabalho remoto identificados pela pesquisa possuem o ensino superior completo.
A aposta é que esse número aumente após a pandemia, como apontou o estudo ‘Tendências de Marketing e Tecnologia 2020’ realizada pelo pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) André Miceli, que entrevistou gestores de 100 empresas e identificou que 30% delas pretendiam adotar o home office após a pandemia do novo coronavírus. Já a nota técnica ‘Potencial de Teletrabalho na Pandemia: um retrato no Brasil e no mundo’, divulgada por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do IBGE em junho, estimou que 22,7% das pessoas ocupadas no país poderiam exercer suas funções de maneira remota.
Condições de trabalho
Ainda não há muitas pesquisas voltadas a analisar o impacto da transição para o trabalho remoto no país desde o início da pandemia, mas alguns resultados de estudos sobre a temática apresentam um quadro contraditório, em que as vantagens dessa modalidade para os trabalhadores, como o menor tempo gasto com deslocamentos e a flexibilidade de horários – convivem com problemas como a ampliação da jornada e a intensificação do ritmo de trabalho, entre outros. Foi o que apontou a pesquisa ‘Trabalho remoto/home-office no contexto da pandemia Covid-19’, realizada por pesquisadores da UFPR com apoio da REMIR. Com o objetivo de analisar as condições de trabalho em razão da mudança para a modalidade remota em meio à pandemia, a pesquisa obteve 906 respostas de trabalhadores de diversos setores econômicos e de todas as regiões brasileiras: 65% do setor público e 34% do setor privado. Mais de 90% dos entrevistados declararam possuir o ensino superior completo. Entre as facilidades de se trabalhar remotamente, os participantes da pesquisa citaram principalmente a flexibilidade de horários (69%), deslocamento (62%) e menor preocupação com a aparência. Em torno de 48% dos trabalhadores afirmaram que a modalidade apresenta tanto vantagens quanto desvantagens, e cerca de 40% afirmaram que gostariam de permanecer trabalhando remotamente mesmo após o fim das medidas de isolamento social.
Ao mesmo tempo, no entanto, os participantes da pesquisa apontaram aspectos negativos da mudança em relação às condições de trabalho e jornada. O volume de profissionais que disse trabalhar por mais de oito horas diárias na modalidade remota, por exemplo, foi de 34,4%, um aumento de 113% em relação ao que foi verificado antes da pandemia, quando 16% faziam esse mesmo relato. O estudo também identificou um aumento expressivo no percentual de pessoas que passaram a trabalhar mais dias por semana após a transição para o trabalho remoto: enquanto antes da pandemia, 8,39% relataram exercer atividades laborais em seis dias da semana, durante a crise sanitária esse número aumentou para 18,1%, mais que o dobro. Entre os que afirmaram trabalhar todos os dias, um crescimento bem mais significativo foi constatado: 17,7% dos respondentes contra apenas 2,32% antes da pandemia. Fernanda Bohler, uma das coordenadoras da pesquisa, destaca ainda que 48% dos que responderam consideram que o ritmo de trabalho ficou mais acelerado no trabalho remoto e que dos 551 respondentes que afirmaram possuir metas de produtividade no seu trabalho, 25% apontaram um aumento dessas metas durante a pandemia. “É um resultado bem significativo, porque num momento atípico, além de ter que se adaptar a trabalhar em casa, muitos trabalhadores ainda tiveram a meta de produtividade aumentada”, destaca Fernanda Bohler. E completa: “Juntando todos esses dados, o que a gente vê é que, no contexto da pandemia, houve um aumento no ritmo de trabalho e na jornada de muitos trabalhadores, o que sinaliza um aumento da sobrecarga”.
Perspectivas divergentes
Por essas e por outras, as análises sobre o que um provável aumento de pessoas trabalhando de forma remota no país divergem bastante. Entre os participantes do seminário virtual ‘Ambiente digital: o futuro é agora?’, por exemplo, promovido em julho pelo jornal O Estado de São Paulo com patrocínio da empresa de tecnologia IBM, a tônica foi de entusiasmo diante da ampliação do teletrabalho. “O distanciamento social corresponde a uma aproximação digital. A digitalização já vinha sendo instituída, mas a pandemia obrigou a uma adaptação mais rápida, principalmente no mundo financeiro e dos negócios. A pandemia nos provou que o teletrabalho funciona, as plataformas estão funcionando. Quebramos muitos paradigmas. Agora é ver o futuro, como manter isso”, afirmou o vice-presidente de Serviços de Tecnologia da IBM, Frank Koja, que assim como as demais participantes do seminário, a diretora-executiva do Bradesco, Walkiria Marchetti e a diretora de tecnologia da IBM, Cintia Barcelos, acredita que a pandemia do novo coronavírus empurrou de vez as empresas para o teletrabalho. Os três apostaram em um “modelo híbrido”, em que parte do trabalho é feito em casa e parte nas instalações físicas das empresas. “Nem o tempo todo em casa, nem perda de duas horas no trânsito”, propôs Cintia Barcelos, que afirmou que um meio do caminho trará vantagens tanto para os trabalhadores quanto para as empresas. “Hoje há muitas ferramentas de colaboração, salas virtuais que ficam abertas o tempo todo e nas quais se consegue manter a comunicação”, disse Cintia, que falou em “jornadas fluidas” para caracterizar a maneira com que os trabalhadores vão lidar com o tempo no teletrabalho. “Não tem mais horário. A globalização entrou para valer. É possível aproveitar melhor o tempo por nós e para a empresa”, concordou Koja. O vice da IBM, no entanto, chamou atenção para o risco de que essa transição represente, para o trabalhador, que ele esteja conectado o tempo todo às tecnologias que permitem o trabalho remoto. “É preciso ter equilíbrio”, afirmou Koja durante o seminário, complementando, contudo, que a responsabilidade sobre esse equilíbrio é dos trabalhadores. A empresa não vai fazer isso por nós. A gente tem que fazer e saber o que priorizar”, destacou.
Já o sociólogo do trabalho e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ricardo Antunes, no e-book ‘Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado’, lançado em junho, postula que o trabalho remoto de fato terá um aumento significativo no pós-pandemia, mas defende que as desvantagens, para os trabalhadores, suplantam os eventuais benefícios que essa modalidade possa vir a trazer. “Por certo, há elementos positivos destacados pela classe trabalhadora, como não precisar fazer os deslocamentos, ter maior liberdade de horários, poder se alimentar melhor etc., mas é sempre bom recordar que se trata de uma relação profundamente desigual entre trabalho e capital, em que o que se perde é sempre muito maior do que aquilo que se ganha”, destaca o sociólogo. E completa: “Do ponto de vista empresarial, as vantagens são evidentes: mais individualização do trabalho; maior distanciamento social; menos relações solidárias e coletivas no espaço de trabalho (onde floresce a consciência das reais condições de trabalho); distanciamento da organização sindical; tendência crescente à eliminação dos direitos […] fim da separação entre tempo de trabalho e tempo de vida”, escreve Antunes. Para ele, a adoção do teletrabalho faz parte do “receituário” que as corporações multinacionais têm apresentado como saída para a crise econômica, que se aprofunda com a pandemia. Um “verdadeiro obituário para a classe trabalhadora […]: mais flexibilização, mais informalidade, mais intermitência, mais terceirização, mais home office, mais teletrabalho, mais EAD, mais algoritmos ‘comandando’ as atividades humanas”, lista Antunes. “Uma vez mais, então, os capitais pretendem transferir o ônus da crise à classe trabalhadora que, além de ser a única que não tem a menor responsabilidade por esta tragédia humana, é a que mais sofre, mais padece e mais perece”, completa.
Marcio Amazonas projeta ainda dificuldades para as fiscalizações feitas pelo MPT para averiguar as condições de trabalho em um cenário de expansão do trabalho remoto. “O auditor fiscal tem poder de polícia, ele pode bater na porta, digamos, de uma padaria, de um call center, e dizer ‘licença, fiscalização’, levar o auto de infração, aplicar multa e ir embora. Ele tem acesso livre àquele ambiente. E se a pessoa estiver trabalhando do seu home office, como o auditor vai fiscalizar, se o home office é um dos cômodos da casa da pessoa?”, indaga o procurador do trabalho, que lembra ainda que essa modalidade, pelo menos por enquanto, não prevê o controle de jornada de trabalho. “Se antes você separava em caixas diferentes – trabalho, trajeto e descanso -, agora digamos que essas caixas se abriram e esses conteúdos se misturam. A sua casa vai ser descanso, lazer e trabalho. Como fiscalizar jornada de trabalho sem que haja um controle sobre o tempo que você está trabalhando? A fiscalização estatal vai se tornar mais difícil”, aposta.
A reportagem entrou em contato com entidades patronais como a Confederação Nacional do Comércio (CNC), a Federação Nacional dos Bancos (Febraban) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), assim como com as centrais sindicais Força Sindical e União Geral dos Trabalhadores (UGT) solicitando entrevistas mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
Projetos de lei podem suprir lacunas da legislação
Atualmente existem algumas propostas dentro do Congresso Nacional que procuram suprir as lacunas da legislação com relação ao teletrabalho. Uma delas é o Projeto de Lei 3.512/2020, de autoria do senador Fabiano Contarato (REDE-ES). O texto prevê que para a realização do teletrabalho, o empregador será obrigado a fornecer e manter, em regime de comodato, equipamentos tecnológicos e infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho, “considerando a segurança e o conforto ergonômico e dos órgãos visuais do empregado”. O projeto diz ainda que cabe ao empregador reembolsar o empregado pelas despesas com energia elétrica, telefonia e de uso da internet relacionadas à prestação do trabalho. Nem os equipamentos nem o reembolso podem integrar a remuneração do trabalhador. O PL prevê também o controle de jornada para os teletrabalhadores nos termos do que dispõe a CLT para as demais modalidades de trabalho que têm direito a receber horas-extras.
Na Câmara dos Deputados, há duas propostas, mais enxutas. Uma é o PL 3.915/2020, de autoria do deputado federal Bosco Costa (PL-SE), que afirma que é obrigação do empregador “disponibilizar a infraestrutura, os materiais, os equipamentos de tecnologia, os serviços de dados e de telefonia necessários à prestação do trabalho remoto pelo empregado, observadas as normas relativas à ergonomia do mobiliário, além de cumprir e fazer cumprir as pausas e os intervalos laborais previstos nesta Consolidação”. Já o PL 2.251/2020, de autoria do deputado Cleber Verde (Republicanos-MA), dispõe sobre a responsabilidade sobre os acidentes de trabalho, afirmando que a empresa “é responsável pelo acidente de trabalho e por toda infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto”.
“O trabalhador hoje em home office está em uma situação muito vulnerável. Deve haver uma legislação para prever a proteção de normas de saúde, inclusive saúde mental, segurança, principalmente no sentido de ergonomia; jornada de trabalho, etc. Isso tem que existir. A regulamentação tem que vir no sentido protetivo, e não no sentido de liberar tudo, que é um pouco o que a gente está vivendo”, afirma o procurador do trabalho Marcio Amazonas.
Para Fernanda Bohler, da UFPR, o trabalho remoto coloca ainda a importância de se regulamentar no país o chamado “direito à desconexão digital”. “Não que isso não ocorresse antes, mas eu acho que no teletrabalho há uma invasão do âmbito do trabalho no âmbito familiar, uma mistura das fronteiras. O trabalhador precisa ter direito a não precisar ficar o tempo inteiro conectado, com o celular ligado, nas redes sociais, podendo ser contatado a todo momento”, diz Fernanda. Recentemente, em agosto, a Argentina aprovou uma lei regulando o teletrabalho que prevê, entre vários outros direitos ainda não previstos na legislação brasileira, o direito à desconexão digital, vedando o trabalho em sobrejornada e a comunicação do empregador com o empregado fora do horário contratado, ainda que por mensagens.
Trabalho remoto na atenção básica: estratégias e desafios
A pandemia significou a penetração de estratégias de utilização das tecnologias de informação e comunicação associadas ao trabalho remoto também entre os trabalhadores da saúde, especialmente na Atenção Primária à Saúde (APS), que reúne um conjunto de ações importantes na prevenção e controle de expansão do novo coronavírus. Divulgado em julho, o relatório da pesquisa ‘Desafios da Atenção Básica no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no SUS’, desenvolvida por pesquisadores da Rede APS da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), procurou identificar os principais constrangimentos e estratégias de reorganização utilizadas pelas equipes das unidades básicas de saúde no contexto da pandemia. Em relação à continuidade de ações rotineiras ofertadas na APS, a estratégia mais frequente foi a incorporação de formas de contato à distância com os usuários do sistema, principalmente por telefone (citado por 50,8% dos profissionais) e Whatsapp (42,8%). As tecnologias de comunicação também foram uma estratégia citada pelos trabalhadores em relação ao acompanhamento dos casos de Covid-19: a principal foram os telefonemas, citados por 77,7%, seguidos pelo uso do Whatsapp (41%) e de teleconsultas (25% dos trabalhadores ouvidos). Mas a pesquisa também identificou alguns gargalos, como aponta uma de suas coordenadoras, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Ligia Giovanella. “Ainda que as unidades de saúde estejam se reinventando no uso dessas tecnologias de comunicação a distância, ainda há uma dificuldade relacionada à infraestrutura dentro das unidades básicas e a disponibilidade de celulares institucionais aos trabalhadores”, pontua a pesquisadora. Segundo ela, somente 40% dos trabalhadores que responderam à pesquisa afirmaram possuir internet de boa qualidade na sua unidade de saúde e 72% afirmaram não dispor de celulares institucionais para o desempenho de suas funções. “Esses são importantes desafios para o teletrabalho na atenção primária”, afirma Ligia.
Extraído de Outras Palavras