A derrota de Trump
Com o resultado final das eleições nos EUA, já proclamado, não se deve perder de vista que o país segue polarizado, meio-a-meio praticamente, com radicalidade. Trump prometeu destruição e nada prosperou sob os escombros de seu governo. Mas o “fundão” dos EUA deram-lhe praticamente metade dos votos: os grandes centros urbanos sem exceção estão “azuis”, praticamente cercados por condados “vermelhos”. Biden teve 93% dos votos em Washington, 86% em São Francisco, 85% em Nova York, 83% em Nova Orleans, 81% em Boston, e mais de 60% em outras grandes cidades.
Que sentimento tão poderoso é esse dos eleitores de Trump que despreza a ciência e a razão, e vota na intolerância geral com que ele conduz o governo, após mais de 9,5 milhões de casos de COVID-19 – que ontem mesmo bateu recorde de casos novos num único dia! – e 235 mil mortes pela doença? Mais ainda: que foi envolvido num processo de impeachment, repressões criminosas de manifestações contra o racismo, sem uma perspectiva econômica sólida para a retomada?
Esse é o próprio mal estar do tempo, que leva eleitores a apoiar a mudança da trajetória tradicional do país, no plano interno e externo, nos valores e na cultura, enfim, um poderoso sentimento anti-establishment. Em linguagem mais crua – acreditam que para sair da atual situação é preciso mesmo destruir os alicerces da política. Por isso, mais uma vez nestas eleições, os debates não convergem para o centro para formar uma maioria – mas um chamado para se unir aos extremos, como grita Trump. Tanto que Trump judicializa o processo inescrupulosamente, que lhe valeu até mesmo corte da transmissão de seu pronunciamento pelas principais mídias do país.
Esse estado de espírito fica. Fica porque as recorrentes crises de governabilidade, econômicas e sociais, o antiglobalismo de Trump, são expressão de um fenômeno maior. Em um tempo de grandes avanços tecnológicos potencialmente emancipadores, qual novo consenso é oferecido pela agenda do neoliberalismo senil, que esperanças oferece às pessoas?
Pelo contrário, ela promove não levar em conta o social, o humano, a sociedade é atomizada. O que há é a crua lógica da acumulação de riqueza produzindo riqueza sem sequer passar pela produção, de massa de milhões sem terem sequer o direito a ser explorados mediante um salário. Uma realidade insustentável de concentração de renda X pobreza crescente, de regressão civilizacional e retrocessos democráticos. Essa agenda está levando à crise o próprio liberalismo político – tão forte nos EUA – e à decadência do país. As eleições, em certa medida, expressam isso.
A derrota do atual presidente dos EUA indica apenas um ponto-e-vírgula na onda conservadora que ele promoveu no país, nascida de certa divisão das classes hegemônicas sobre como manter seu domínio. Os fatos por vir mostrarão o quanto esse curso político será transformado com a vitória de Biden, face aos poderosos mecanismos do establishment norte-americano em seus objetivos nacionais-imperiais permanentes.
Esses objetivos não mudam estruturalmente com uma troca de governos. Muda o modo de persegui-los. Biden não tem, por exemplo, como evitar a competição estratégica com a China e pela contenção militar da Rússia, mesmo que nos marcos da “convivência” dado que, se algo já mudou na ordem internacional, é a unipolaridade e unilateralismo. A luta agressiva pela ponta tecnológica, hegemonia geopolítica e manutenção do fabuloso poder do dólar como moeda de reserva internacional seguirá firme.
A propósito, em um parênteses, o Secretário de Defesa Mark Esper, apresentou a nova estratégia para uma era de competição de grande poder, assentada essencialmente em reforçar aliados e parcerias para uma competição de longo prazo com adversários como China e Rússia. Diz ele que “nossa constelação global de aliados e parceiros continua sendo uma força duradoura que nossos concorrentes e adversários simplesmente não podem igualar”, argumentando que o maior desafio para a segurança nacional dos EUA é a crescente agressão da Rússia e da China.” A estratégia apresenta duas iniciativas que são a Orientação para o Desenvolvimento de Alianças e Parcerias”(GDAP) e um esforço para Modernizar o comércio de defesa. A matéria é imperdível, também porque vislumbra um lugar claro para o Brasil ( https://www.atlanticcouncil.org/blogs/new-atlanticist/defense-secretary-unveils-a-new-strategy-for-bolstering-allies-and-partnerships-in-an-era-of-great-power-competition/). No mesmo parêntese destaco, de passagem, que a derrota de Trump aportará com quase toda a certeza as mais bilionárias iniciativas políticas da extrema direita norte-americana ao Brasil, que será o reduto maior hoje para manter a ofensiva mundial.
O que está em jogo aí é a transição histórica de hegemonia dos EUA desde a 2ª. guerra mundial, processo longo e tormentoso de uma disputa entre a globalização neoliberal em crise e uma globalização progressista, mediante o multilateralismo, a que se propõe a China e seus parceiros, em disputa pela ponta tecnológica e por caminhos de desenvolvimento acelerado como acontece no país há quatro décadas.
Mas isso não quer dizer que a derrota de Trump deixe de ser muito importante em todo o mundo. Haverá impactos de monta quanto ao papel dos EUA na agenda política, cultural e geopolítica, também comercial e diplomática. Serão repostos na agenda a luta contra o aquecimento global com o Acordo de Paris, um binômio de competição-cooperação, a rejeição à guerra cultural e “maneirar” com direitos humanos, racismo e homofobia.
Biden já declarou que a OTAN é a aliança militar mais importante da história, e que a fortalecerá. Também prometeu que vai reconstruir o Departamento de Estado e devolver à diplomacia o papel de principal instrumento da ação externa. Segundo ele, a força só deveria ser usada em última instância e quando se puder definir objetivos claros.
Quanto ao o Brasil, de saída cairão as relações carnais de Bolsonaro, não com os EUA, mas com Trump. Bolsonaro negará toda a sua agenda no plano internacional? A questão ambiental, a Amazônia, o antiglobalismo, a agenda dos valores? Parece mais plausível que o completo isolamento internacional do país, de todo inédito, se aprofunde, escanteando ainda mais Bolsonaro, sem apoio nas relações bilaterais com os EUA nessas matérias.
As condições para a retomada econômica do Brasil dependerão dessas novas relações sob a presidência Biden. Pondere-se que a maioria democrata no Congresso, em Comissão para isso constituída, já enviou relatório ao Departamento de Comércio dos EUA opondo-se a qualquer negociação ou acordo a fim de aumentar as exportações brasileiras para os Estados Unidos.
Claro, sempre haverá o pragmatismo de parte a parte e, provavelmente, o governo Bolsonaro será pressionado ainda mais a rever suas patacoadas contra a China e o isolamento do país. Isso poderia ser o epitáfio da chancelaria de Ernesto Araújo.
De todo modo, precisamos valorizar as lutas do povo norte-americano, que contribuíram decisivamente para a vitória de Biden. Igualmente, aproveitarmos quaisquer fissuras para dar combate aos planos agressivos dos EUA no mundo, em especial na nossa América Latina, pela paz mundial e pelo desenvolvimento soberano de nossos países, mantendo as relações devidas com os EUA, mas com estratégia própria e autônoma, sabendo jogar, para isso, com as contradições atuais da situação internacional em benefício de nossos povos.
*Walter Sorrentino é vice-presidente nacional e Secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)