Passado o período da ressaca provocada pelos resultados das eleições municipais, as atenções se voltam novamente para os aspectos da continuidade das diferentes áreas da política do governo Bolsonaro. Apesar da unanimidade em torno do fato de que o Presidente e seu círculo mais íntimo foram mesmo os grandes derrotados no pleito de novembro, o fato é que ele ainda deverá ser o ocupante do Palácio do Planalto por mais um biênio.

Parece não restar dúvidas que a combinação da derrota de seu ídolo Donald Trump nos Estados Unidos e o fraco desempenho da maioria dos candidatos apoiados por Bolsonaro nos municípios deve levar a mudanças em sua forma de governar. A velha fórmula de uma “nova forma de fazer política” está indo para debaixo do tapete e o capitão já começa chamar os líderes do chamado “centrão” e dos demais partidos do fisiologismo para compor sua base aliada no Congresso Nacional.

Trata-se de uma operação com características mais acentuadas de um bloco defensivo e menos de uma artilharia ofensiva de proposições inovadoras. Bolsonaro sente a cada dia o aumento de sua impopularidade, sentimento generalizado pelo país afora e que se expressa por meio das inúmeras pesquisas de opinião a respeito de seu governo. Assim, as gavetas abarrotadas da Presidência da Câmara com pedidos de impeachment podem ser uma variável problemática em qualquer momento de arrefecimento da tensão política na sociedade e no próprio parlamento. O obstáculo a tal iniciativa pode vir da sopa de letrinhas de agremiações partidárias fisiológicas, sempre disposta a oferecer seus votos em troca de verbas e cargos que facilitem a vida dos parlamentares nas eleições de 2022.

Derrota de Trump e de Bolsonaro: mudanças no governo?

A política externa também deverá ser objeto de alguma virada de eixo. Sem a referência de Trump na Casa Branca, Bolsonaro perde um aliado estratégico em suas trapalhadas e desvarios no cenário internacional. As contumazes cutucadas contra a China, por exemplo, devem ser substituídas por algum tipo de realinhamento orientado pelo pragmatismo. É óbvio que esse cenário leva em conta a existência de alguma dose de racionalidade na condução do Itamaraty, hipótese que parece incompatível com a presença de uma figura como Araújo à frente da pasta. Já fazem alguns anos que a China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, bem como um destino essencial para boa parte das nossas exportações de produtos agrícolas. A ver por quanto tempo os representantes do agronegócio vão aguentar a continuidade das declarações em rompante do governo, que apenas fazem atrapalhar a segurança de seu faturamento.

O isolamento internacional e diplomático a que nos levou o núcleo mais ideológico do bolsonarismo também deve sofrer algum revés na questão do meio ambiente. O negacionismo expresso quase diariamente pelo Chefe do Executivo se choca com as imagens dos incêndios criminosos no Pantanal, os índices crescentes de desmatamento, o apoio à invasão ilegal de garimpos clandestinos e o desprezo pelos cientistas que apresentam os riscos da continuidade desse modelo de exploração irresponsável de nossos recursos naturais. A pressão exercida pela comunidade internacional, em especial pelos governos dos países europeus, não mais contará com o colchão de amortecimento que era oferecido pela diplomacia de Trump. O Brasil provavelmente deverá oferecer algumas notícias positivas nesse front, caso tenha interesse em manter o fluxo comercial para aquele continente.

No entanto, um dos pontos chaves da política do governo Bolsonaro refere-se à condução da economia. A força inicial do superministro Paulo Guedes foi seguramente relativizada em função dos péssimos resultados apresentados por sua equipe ao chefe ao longo do primeiro biênio. O crescimento do PIB em 2019 foi pífio, mal superando 1%. Nesse quesito, o “chicago old boy” conseguiu a proeza de ter oferecido um crescimento da economia mais reduzido do que os dois anos de seu desafeto Henrique Meirelles. Em 2020 a covid-19 caiu sobre sua cabeça como uma tempestade perfeita. O país sofreu todas as agruras dessa pandemia inesperada, mas certamente as desgraças foram ampliadas pela incompetência e pelas opções equivocadas colocadas em marcha pelo chefe da economia.

Alterações também na economia?

Porém, ao contrário do que ocorre com os dois temas anteriores, no quesito política econômica monta-se internamente um leque mais amplo de sustentação à ortodoxia e ao conservadorismo de Paulo Guedes. O apoio de parcela significativa das classes dominantes e do financismo ao programa de desmonte de políticas públicas e destruição do Estado ultrapassa bastante as fronteiras do bolsonarismo. Assim é que se explica a continuidade do apoio dos grandes meios de comunicação a uma agenda com itens como a Reforma Administrativa e a manutenção do teto de gastos.

Na avaliação dessa gente, permanece válida e atualizada a estratégia do segundo turno de outubro de 2018. Bolsonaro é mesmo um problema a ser carregado, mas não se deve perder a oportunidade aberta por ele para se acabar de uma vez por todas com as conquistas previstas na Constituição de 1988. O instrumento para levar a cabo tal projeto atende pelo nome Paulo Guedes. Os riscos de seu desgaste ou eventual substituição podem significar o abandono da trilha da destruição e uma composição com setores mais “moderados” do Congresso Nacional. Afinal, 2022 será também ano eleitoral e a base do governo pretende levar alguma coisa de positiva a oferecer ao seu eleitorado. E qualquer parlamentar sabe que isso significa aumento de despesas públicas ao longo do próximo biênio.

Esse será um dos grandes dilemas de Bolsonaro. Ele tem que conseguir alguma flexibilização de seu superministro, sem que o mesmo se sinta constrangido a ponto de pedir o boné e voltar a ganhar dinheiro em seu próprio banco. Bolsonaro sabe que não terá a mesma liberdade agora com Guedes, como teve com a troca dos ministros da saúde ou mesmo com Sério Moro, o ex todo-poderoso da Justiça. A manutenção do apoio ao governo por parte dos representantes dos sistema financeiro depende da garantia de manter em atividade o programa da austeridade e da ortodoxia. A ver qual será a mágica para elevar os gastos com as necessidades colocadas pela pandemia em sua segunda onda, que já chegou às nossas portas, e a narrativa da manutenção da rédea curta da austeridade fiscal.

Juros: responsabilidade fiscal e desastre social

As prioridades na alocação das despesas pode ser um bom indicativo de tal cenário. O governo segue controlando e cortando todo o tipo de despesa não-financeira. Saúde, assistência social, educação, previdência social, saneamento, pessoal, investimentos e outros itens sofrem seguidamente redução e contingenciamento. Tudo em nome da responsabilidade e do sacrifício dos mais pobres. O auxílio emergencial já sofreu um corte de R$ 600 para R$ 300 mensais e está com o fim anunciado para o final de dezembro.

No entanto, pelo lado das despesas com juros, tudo segue “às mil maravilhas”. Nunca se ouviu uma única palavra dos responsáveis do governo de que “não há recursos” ou eventual adiamento do pagamento religioso de tais obrigações. Uma loucura! Trata-se de uma completa inversão de valores e de prioridades!

O boletim divulgado pelo Banco Central nos oferece o panorama a esse respeito. Entre janeiro e outubro do presente ano, o governo destinou R$ 286 bilhões para o pagamento de juros da dívida pública. Ainda que esse valor seja um pouco mais baixo do que o pago em 2019 durante o mesmo período, o fato é que assistiu-se a uma súbita aceleração ao longo dos últimos 3 meses. Entre agosto/setembro/outubro do presente ano, o gasto foi de R$ 107 bi, um crescimento de quase 30% em relação aos R$ 83 bi verificados no mesmo período de 2019. Mas o discurso do “não temos recursos” segue sem alteração quando se trata de justificar a impossibilidade de novos programas.

O quadro fiscal é mesmo bastante complexo e merece atenção de todos. Porém, os alertas catastrofistas pintados pelos meios de comunicação, sempre que se menciona a possibilidade de aumentar alguma rubrica na área social, ignoram de forma cínica e irresponsável esse importante fator de gastos governamentais.

Na verdade, o problema é outro. Os recursos existem e o governo pode também lançar mão da emissão de moeda e do endividamento público para fazer face às necessidades emergenciais do momento. Porém, o que precisa ficar claro e transparente para o conjunto da sociedade é que o discurso da suposta “responsabilidade fiscal” não é nada técnico, nem neutro e muito menos isento. Ele mantém a “torneira aberta” (na imagem tão cara ao povo da ortodoxia) para drenar os fluxos do Tesouro em direção das necessidades do sistema financeiro, mas fecha a mesma sempre que se trata de realizar algum tipo de despesa de natureza social.