Osvaldo Bertolino – Conversas com Haroldo Lima
O Partido comunista do Brasil (PCdoB) perde Haroldo Lima, falecido na madrugada deste 24 de março de 2021, véspera do aniversário do nosso Partido. O Brasil perde Haroldo Lima. A humanidade perde Haroldo Lima. Perder Haroldo Lima é perder uma fonte inesgotável de saber, um polo aglutinador de ideias, um ponto irradiador de alegria. Eu fico sem mais uma referência de vida e sem um companheiro de longas trocas de ideias.
Haroldo Lima foi um dos que chamo de coautores de minhas obras. Tudo que escrevi da história do Partido Comunista do Brasil tem a sua participação. E não foram apenas contribuições. Suas informações vinham carregadas de lições de vida, de vigor ideológico e de convicção revolucionária. As principais delas estão no livro Pedro Pomar – ideias e batalhas, que considero, sem falsa modéstia, até agora a obra mais completa sobre a história do Partido Comunista do Brasil. Haroldo Lima fez o prefácio – um primoroso prefácio.
Quando na pesquisa surgiam dados que precisavam da sua confirmação, ele reagia com alegria. “Agora que estou me lembrando”, dizia, com seu sorriso característico. Aliás, sorrir era com ele mesmo. Em uma ocasião, marcamos uma conversa na sede da Petrobras, no Rio de Janeiro. Foi uma viagem sacrificada, por conta dos horários apertados, o bate e volta no mesmo dia, partindo de São Paulo.
Do aeroporto Santos Dumont ao local da conversa, foi uma viagem tensa, com o trânsito parado por conta das obras da Copa do Mundo de 2014. Quando cheguei, ele me recebeu às gargalhadas. “E não é que esqueci? Estou de saída para um compromisso, mas depois de amanhã estarei em São Paulo e a gente conversa o dia inteiro”, reagiu. Dito e feito – no dia marcado, lá estava ele, me esperando antes do horário combinado.
A conversa foi para fechar a biografia de Pedro Pomar e revelou verdadeiras pérolas de Haroldo Lima. O resultado está na parte final do livro. Ele falou em detalhes sobre a trajetória de incorporação da AP ao PCdoB. Explicou que quando a AP se aproximou do Partido Comunista da China (PCCh), o PCdoB já mantinha relações com os comunistas chineses. Recebeu recomendações para procurar se articular com o Partido Comunista do Brasil. Os primeiros contatos com o PCdoB, segundo ele, foram com Pedro Pomar e Carlos Danielli.
Haroldo Lima percorreu as etapas do processo de incorporação, esclarecendo pontos importantes dessa história. De acordo com ele, nesse meio tempo, quando alguns militantes da AP – a essa altura já Ação Popular Marxista-Leninista (APML) – estavam no PCdoB, começou a luta no Araguaia. Fora comunicado do início dos combates por Renato Rabelo. Com a decisão da incorporação, eles dois participaram de uma reunião com Pedro Pomar e Amazonas no “aparelho” do PCdoB, conduzidos até lá por Elza Monnerat. Não sabiam quem era um e outro. Segundo Haroldo Lima, o único que saía da sala era Amazonas, para buscar e levar a bandeja de café, servido com o aviso: “Olha o preto!”
Foram recebidos com elogios por serem jovens entusiasmados com o projeto de lutar pela derrubada da ditadura — a AP também estava no campo, preparando a luta armada. Os dois históricos dirigentes comunistas disseram aos jovens da AP que eles estavam entrando no PCdoB em um momento de alto risco, quando a repressão promovia uma caçada aos comunistas em decorrência da Guerrilha do Araguaia. Estavam pondo a vida em perigo. O processo de incorporação foi concluído com um documento elaborado por ele — representando a AP — e João Amazonas, aprovado por unanimidade no Comitê Central.
Pedro Pomar e João Amazonas eram marxistas temperados, disse Haroldo Lima. Qualquer um que fosse preso seria trucidado. Por acaso, a fuzilaria na casa da Lapa, em 16 de dezembro de 1976 quando ele foi preso, pegou Pedro Pomar. Existia — afirmou — muito apreço de um pelo outro. Discutiam às vezes com energia, mas nunca extrapolaram os limites da cordialidade. Segundo Haroldo Lima, a divergência que tiveram quanto ao Araguaia focava-se na questão de como foi feita a preparação dos trabalhos na área onde seria a Guerrilha. Não havia divergência quanto à necessidade de se preparar aquela frente de luta para o enfrentamento com o regime ditatorial, comentou.
Haroldo Lima lembrou que Amazonas dizia que erros haviam sido cometidos, como a permanência dos guerrilheiros quando a repressão preparava a terceira campanha, mas a luta armada mostrara que o povo não estava disposto a suportar a ditadura. A Guerrilha foi um brado de alerta. Em seguida, o regime entrou em declínio e começou a fazer promessas de concessões.
Ele lembrou também de um ponto de “reencontro” — a “referência”, uma segunda tentativa quando a primeira falhava — com Pedro Pomar e Elza Monnerat, em uma travessa da Avenida Lins de Vasconcelos, Zona Sul de São Paulo. Por algum motivo que não se recorda qual, o primeiro encontro não deu certo. Era uma noite escura, chuvosa. Caía uma garoa e ele avistou Pomar vindo em sua direção, com o guarda-chuva aberto. A história era tão fantástica que pedi a ele por escrito para não perder o sabor.
“Chovia fraco, mas chovia sem parar, desde à tarde, e já era noite. Tinha um “ponto” com o Pomar, pela região da Saúde, bairro de São Paulo. A noite estava escura, e as ruas escolhidas para esses pontos eram, digamos, mal iluminadas, escuras, e de pouco movimento. Lembro-me de uma pequena ladeira pela qual eu teria que caminhar normalmente, descendo-a. Pelas circunstâncias do tempo, fui andando com certa lentidão. Até que vi uma figura, de guarda-chuva, subindo a mesma rua. Houve o encontro, tudo estava bem, horários rigorosamente cumpridos, a chuva. Teríamos que caminhar em direção a uma outra rua, nas proximidades, onde nós dois faríamos uma breve caminhada, no curso da qual deveríamos encontrar a Maria, que era a Elza Monnerat. Não tínhamos tempo a perder, mas, certa preocupação. Aquela chuva atrapalharia a Maria? Chegaria a tempo? Fazíamos o trajeto combinado, conversando baixo, sempre olhando discretamente o entorno, quando Pomar, fitando o vulto de uma mulher que vinha ao nosso encontro, abrigando-se da chuva com sua sobrinha, com um leve sorriso me diz: Lá vem a nossa soldadinha!”
Ele comentou ainda a sua prisão, marcada por torturas excruciantes. Já no começo, levou uma coronhada na cabeça. O corte fez com que perdesse muito sangue. Encapuzado, foi levado para o Rio de Janeiro. No aeroporto e no avião se deu conta de que Elza Monnerat e Aldo Arantes também estavam naquele voo macabro. A repressão optou por apresentá-los primeiramente no I Exército, o mentor da operação chamada “Chacina da Lapa”, em São Paulo. No Rio de Janeiro, em dado momento, insultado por um agente que proclamava o fim da “guerra” dos comunistas, Haroldo Lima conta que, algemado e nu, fez um “senhor discurso”. “Pena que não foi gravado”, pilheriou.
A plenos pulmões, disse poucas e boas sobre o regime. Com o esforço, desfaleceu. Fraco, sem comer e esquálido pela perda de sangue, além do pouco ar que respirava sob o capuz, perdeu os sentidos por alguns segundos. A reação foi impulsionada pela informação que constava da primeira página de um jornal — por estar no Rio de Janeiro e pela estridência das manchetes, avalia que era O Globo — mostrada a ele dando conta da Chacina da Lapa.
Em seguida, foi torturado por onze dias e onze noites. Queriam saber nomes, onde funcionava a gráfica do Partido e endereços de militantes. Segundo Haroldo Lima, há quem considere que foi salvo por uma iniciativa de dom Timóteo Amoroso, abade do Mosteiro de São Bento, em Salvador, Bahia, que se notabilizou por se insurgir contra a ditadura. O sacerdote enviara um telegrama ao presidente Geisel cobrando informações sobre suas condições. A presença do nome do abade, segundo ele, fez com que os torturadores tomassem mais cuidado com a sua vida. Perguntei-lhe o que achava da sua história. “Me sinto muito realizado e orgulhoso. Preciso me conter para não ficar expressando muito orgulho por aí”, respondeu, entre risos.
Jornal do Brasil, 24/08/1979
Haroldo Lima foi presença constante no programa “Roda de Conversa”, na internet, comandado por mim e por mais dois jornalistas – Jorge Gregory e Luiz Manfredini. As conversas eram sempre divertidas, com ele falando de histórias, de teoria, de luta política e de “causos”. Em sua última participação, rimos sem limites com a história lembrada por Luiz Manfredini do caso das ratazanas selvagens – segundo Haroldo Lima “enormes” – que tentavam roubar sua carne seca, enfrentadas com um facão.
Depois de Dynéas Aguiar, Augusto Buonicore e José Carlos Ruy, chegou a vez de perder mais um coautor. Vinha falando com ele do livro que estou publicando sobre a Guerrilha do Araguaia. Havia lhe pedido o prefácio. De repente ele parou de falar. Mandava mensagem, não respondia. Ligava, não atendia. A angústia se confirmou com a informação da sua internação. O silencio que imaginava temporário, se tornou para sempre. Adeus, Haroldo Lima!