Faz algum sentido ler Marx nesta época?
Depois de 153 anos, desde o primeiro volume de O Capital, ou 126 desde o terceiro, o mundo sofreu imensas transformações. Haverá ainda o que encontrar em Marx para entender o mundo em que vivemos?
Tratei deste tema em nota técnica na 16ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, e aqui farei uma síntese. Entre os estudiosos, os defensores da atualidade de Marx são minoria. Todavia, impressiona o crescimento daqueles que, nos últimos 25 anos, incluindo adversários da crítica de Marx ao capitalismo, passaram a considerar importante e até imprescindível conhecer as opiniões desse polêmico autor.
Um apanhado das manifestações nesse sentido entre empresários, jornalistas, governantes e inclusive economistas não marxistas, pode ser encontrado na apresentação do livro de autoria deste autor: O Retorno de Karl Marx – A Redescoberta de Marx no Século XXI (Anav, 2017). O destaque dessa curiosa e às vezes bizarra coleção de declarações da validade de partes ou do todo da análise marxista é que, em grande parte, elas partiram de pessoas nem um pouco identificadas com concepções socialistas, incluindo investidores bilionários, ao menos uma gestora do FMI, economistas-consultores de grandes bancos etc.
As crises do último quarto de século provocam reflexão. Alguns megainvestidores admitem a confirmação de aspectos da análise marxista exatamente sobre a instabilidade crônica do sistema capitalista mundial. Outras preocupações – como a de ex-diretora do FMI, ou do Fórum de Davos, reunião de financistas privados e executivos públicos na gestão econômica de diversos países – repercutiram as teses de Marx sobre a crescente pauperização e o aumento da desigualdade socioeconômica, confirmadas pelo economista Thomas Piketty em O Capital no Século 21.
Depoimentos mais recentes, de agentes bem situados no mercado financeiro e na imprensa de negócios, abordam a ameaça de recessão crônica. Os exemplos a seguir são do período posterior à crise subprime e anterior ao surgimento da presente pandemia.
O economista-chefe do banco francês Natixis, Patrick Artus, escreve, em 2016, em seu livro A Loucura dos Bancos Centrais, sobre uma recessão estrutural, critica a expansão monetária dos bancos centrais e prevê nova crise, maior que a de 2007-2008, porque “tal distorção entre a criação de dinheiro e a criação de riquezas, entre os mercados e a economia real, não pode durar para sempre. O ajuste é inevitável porque, no longo prazo, a realidade sempre se impõe”.
Em maio de 2018, o ex-vice-presidente da Bolsa de Valores de Nova York, Georges Ugueux, arriscou-se até a anunciar uma data: “Não sabemos o dia nem a hora, mas não podemos mais ignorar o risco de um tsunami que irá abater-se sobre nossas economias, no mais tardar, até o fim de 2020…”.
Na véspera do G7 realizado em agosto de 2019, a ameaça de recessão era mais grave: “Desde 2009” – escreveu o jornal francês de negócios Les Echos – “nunca houve tantos investidores prevendo uma entrada em recessão da economia estadunidense nos próximos doze meses. A última pesquisa do Bank of America-Merril Lynch com gestores de ativos revela que, hoje, quase 1/3 deles está apostando neste cenário”. O jornal afirma: “Na realidade, o coronavírus apenas acentuou uma tendência já em curso”.
O comércio mundial vinha desacelerando há meses sob os efeitos da “guerra comercial” de Trump contra a China. As primeiras medidas e nomeações do presidente Biden mostram que a “guerra” contra a China continuará sob formas parcialmente distintas no plano formal, mas com o mesmo conteúdo. Essa “guerra” é produto direto do enorme tamanho do déficit comercial externo e da dívida pública estadunidenses e a crise política e social do país, cuja imagem são as imensas manifestações da juventude contra o racismo.
Em suma, raramente os sinais da iminência de uma grande crise em todo o sistema se manifestaram com tanta força. E tudo isso muito antes que surgissem na China, em dezembro de 2019, os primeiros sinais da pandemia. A crise não precisava do coronavírus para ser deflagrada. Os boletins do FMI em 2019 também chamavam a atenção para as fragilidades da suposta recuperação mundial, alertando que o fantasma de nova recessão não estava afastado.
A maioria dos planos que estão sendo aplicados agora já estava pronta antes. Estes planos foram constantemente adiados, como efeito da resistência social contra a desregulamentação do trabalho, em particular nos países avançados, na defesa do que resta do Estado de Bem-estar Social. Por maiores que tenham sido os ataques e as medidas de desmantelamento das conquistas da classe trabalhadora nas últimas quatro décadas, permanecem ainda importantes direitos naqueles países, graças à resistência de sindicatos e movimentos sociais.
Os fundos financeiros que controlam grande parte da economia mundial, cujo poder supranacional submete mesmo governos de países avançados, exige que tudo o que resta do “velho mundo”, de uma sociedade que ainda se caracteriza pelas conquistas sociais e políticas da classe trabalhadora, ceda o lugar ao “século 21”. Esta nova etapa da antiga luta do capital para impor regras que favoreçam sua acumulação exige agora a total desregulamentação das relações de trabalho e a extensão da precariedade à escala mundial. É isso que eles chamam de “transformação digital”.
Mas todos os estrategistas a serviço do capital financeiro temem a reação que vão provocar. Eles precisavam de um “choque” – do tipo que é provocado por uma guerra – para tentar atingir os seus propósitos destruidores das conquistas sociais e relações do trabalho alcançadas pelos movimentos trabalhistas e populares.
Essa experiência foi bem relatada no documentário da jornalista Naomi Klein, A Doutrina do Choque, com versão disponível no YouTube. O que Klein retratou há uma década parece estar se renovando na pandemia. O “choque” reduz ou retarda a reação dos setores atingidos com perdas de direitos e piora das condições de vida e trabalho.
Nesse ambiente, a tendência é a desagregação dos laços de solidariedade, a luta pela sobrevivência, o “cada um por si”. Isso enfraquece as reações contrárias de caráter coletivo. Isso ocorre tanto nos países em que o isolamento social e o home office foi generalizado, quanto naqueles em que o negacionismo da Ciência e o descaso político deixaram as populações expostas ao contágio.
Além disso, um “choque” cria a possibilidade de realizar, de uma ou de outra forma, uma “união nacional”, a fim de associar as organizações dos trabalhadores aos planos socialmente destrutivos. O “mal menor”, as “concessões” do presente em troca de supostos ganhos futuros, a “distribuição do sacrifício entre todos os grupos sociais” e outros conhecidos refrões são uma espécie de canto de sereia do grande capital para convencer sindicatos, movimentos sociais e partidos de base trabalhista ou popular a aceitar negociações em torno de agendas de redução de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Os que resistem são execrados na mídia e pelos formadores de opinião.
O processo é mundial e conta com grupos organizados de “think tanks” financiados por grandes corporações financeiras, órgãos da imprensa de massa (impressa e eletrônica), economistas (inclusive membros da comunidade acadêmica) vinculados à chamada “comunidade de negócios” – como mostrou, entre outros, o esclarecedor documentário Inside Job (Trabalho Interno).
Estaremos tão distantes assim do caráter essencial da sociedade comandada pelo capital e regida pela luta de classes, tal como apresentada na obra de Marx?
*Roberto Vital Anav é economista (FEA-USP), doutor pela UFABC e professor na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). É autor de O Retorno de Karl Marx – A Redescoberta de Marx no Século XXI
Fonte: Rede Brasil Atual