Não deixa de ser inacreditável que o marxismo vulgar continue a entronchar o nariz para o ícone da filosofia clássica alemã G. F. Hegel (1770-1831); e, de maneira bem similar, para o brilhante economista J.M. Keynes (1883-1946).

No caso do britânico, o desdém é menor em função dele estar recorrentemente no topo da lista dos “socorristas”, em pânico, a cada forte crise do capitalismo. Já em Hegel, a magistral protuberância idealista filosófica do alemão é a ponta dum iceberg que, visível para muitos, jamais “derreterá”.

Ora, foi o próprio F. ENGELS, no seu famoso estudo “Do socialismo utópico ao socialismo científico” (1892) [1] quem, após a morte de Marx – Nota Bene – teceu elogios até então inéditos, na órbita do pensamento dos materialistas dialéticos, que ainda se esboçava.

Após ter dito que se deve a HEGEL “a retomada da dialética como a forma suprema do pensamento”(Idem, p.142), Engels é exacerbadamente afirmativo ao interpretar que, é no sistema filosófico do genial alemão, onde

“(…) pela primeira vez – e este é seu grande mérito –  se expôs todo o mundo natural, histórico e espiritual como um processo, isto é, como estando em permanente movimento, mudança, reorganização e desenvolvimento, e se fez a tentativa de demonstrar a conexão interior neste movimento e desenvolvimento. Deste ponto de vista, a história da humanidade não aparecia mais como um enredo desordenado de brutalidade sem sentido, todas elas igualmente condenáveis no tribunal da razão agora amadurecido dos filósofos e que é melhor esquecer o mais depressa possível, mas como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, cuja progressão gradual é agora tarefa do pensar seguir a través de todos os caminhos e descaminhos e cuja interna conformidade a leis há que demonstrar através de todas as aparentes casualidades” (ENGELS, idem, p. 145).

Quando Engels escrevera esse pequeno e impactante livro, na verdade um capítulo de outro seu influente livro “Anti-Dühring”, não tinha a menor ideia que, um ano antes de sua morte (1895), Vladimir LÊNIN já citara Hegel (1894), com amplo domínio da temática – aproveitando para espetá-lo!

Eis uma passagem, de “Quem são os amigos do povo e como lutam contra os socialdemocratas”:

“Agora só sublinharemos que quem quer que tenha lido a definição e a discrição do método dialético que dão tanto Engels (na polêmica do Dühring: Do socialismo utópico ao socialismo científico) como Marx (em várias notas de O Capital e no Epílogo à segunda edição, assim como em Miséria da filosofia) haverá visto que nada se fala alí das tríades de Hegel, e que tudo se reduz a considerar a evolução social como um processo histórico natural do desenvolvimento das formações econômico-sociais”. [2]

Que aula! Lênin, tinha então 24 anos, embora só considera ter-se convertido definitivamente para o marxismo em 1889, discorre Juan T. S. Vejarano. [3] Naquela idade, Lênin já compreende, em profundidade, uma das questões mais complexas da filosofia marxista e dos desenvolvimentos da dialética. No debate estratégico de Engels no “Anti-Dühring”, sobre o socialismo, Lênin então capta que (também) estava em tela a lei da negação da negação, em Hegel. Situa-a Lênin:

“De modo que – conclui Engels -, Marx não pode demonstrar a necessidade da revolução social, a necessidade de implantar a propriedade comum da terra e dos meios de produção fruto do trabalho, sem recorrer à negação da negação hegeliana” (Idem, p. 180).

Esse livro de Lênin, de mais de duzentas páginas, o mais longo e denso que se voltava ao combate às teses dos populista russos, foi uma resposta aos ataques escritos na revista “Ruskoié Bogatstvo” (A riqueza russa), por M.N. Mikhailkovski, “A literatura e a vida” (1894); “Da solidão de certos intelectuais” de M.S. Krivenko; e “Os problemas do desenvolvimento econômico da Rússia”, de Iujakov, entre outros. [4]

Lênin ali desmonta a teoria, a tática e a própria crítica dos “Amigos do povo”, ao marxismo, abrindo caminhos a uma nova interpretação das particularidades históricas do desenvolvimento russo e a situação singular de seu país no contexto europeu. Sim, uma teoria leninista, concluída no magnífico “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. O processo de formação do mercado interno para a grande indústria” (1899), que aparece quando ele ainda não completara 30 anos!

Sobre o inovador impacto de “Quem são os amigos do povo”, assim se referiu Nadeja KRÚPSKAIA: [5]

“Recordo a profunda impressão que causou a todos este livro, que colocava com extraordinária clareza o s objetivos da luta; a cópia feita em hectógrafo[mimeógrafo a álcool] e sem assinatura circulou mais tarde de mão em mão: os chamávamos de ‘cadernos amarelos’. Foram lidos por muitas pessoas e não cabe dúvida que exerceram enorme influência na juventude marxista da época”

Lênin, Hegel e a dialética

Pois bem: trata-se de uma risível tolice, de uma ignorância aquiescente, repetir que Lênin só passou a entender a ‘dialética’ quando de seus estudos contidos nos “Cadernos filosóficos” (1914-1916). Pois, alegam incautos, “Materialismo e empiriocriticismo” (1908; M&E, em diante), do teórico russo, teria sido a demonstração de um dogmatismo exemplar ou cópia da “teoria do reflexo”, de Engels. [6]

Como bem recorda BARATA-MOURA, contra Materialismo e empiriocriticismo, a tão maltratada teoria leninista do reflexo, em verdade ataca frontalmente essa questão, “com lucidez e coragem ontológica”, explicitando uma concepção materialista e dialética consequente. Lá, diz Lênin, a não deixar nenhuma dúvida:

“O ser social e a consciência social não são coisas idênticas, exatamente como não são idênticas o ser geral e a consciência geral (…) A consciência em geral reflete o ser – esta é uma tese geral de todo o materialismo” (Lênin, Apud: BARATA-MOURA, 2010, p. 56-57; grifo nosso).

Ora, não há nem resquício de confusão entre subjetividade e objetividade, entre as esferas da cognoscibilidade e a do ser.

Noutro ângulo, em M&E, por exemplo, há apenas 17 referências a Hegel, geralmente críticas. O que faz com que, um pensador italiano da estatura de Luciano GRUPPI turve os objetivos do combate travado por Lênin naquele estudo inovador. [7] Para ele, “O elevado valor que Lênin sempre atribuiu à concepção dialética de Hegel é – nessa obra – inteiramente colocado na sombra”, (Gruppi, p. 100) à medida em que todo movimento reacionário é situado no idealismo, em função da contraposição feita por Lênin da filosofia materialista ser progressista. 

Ora, nesse livro de Lênin, que se voltava francamente à defesa do materialismo, há a seguinte definição do pensamento de Hegel:

“A dialética – como já Hegel explicava – contém um elemento de relativismo, de negação, de ceticismo, mas não se reduz ao relativismo. A dialética materialista de Marx e de Engels contem, certamente um relativismo, mas não se reduz a ele, isto é, reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação a esta verdade”. [8]

Mais além, M&E faz uma exposição detalhada da teoria marxista do conhecimento, onde, segundo excelente síntese de Olival FREIRE JR.,

1) a objetividade das coisas independem de nossa consciência; esta é um reflexo da realidade, o que possibilita o conhecimento do mundo.

2) Na natureza não há diferença de princípio entre a aparência e a essência; distingue-se entre o que é conhecido e o que ainda não o é.

3) “O conhecimento vai da ignorância ao saber, do conhecimento incompleto, impreciso, ao conhecimento mais completo, mais preciso”.

4) A prática concentra o “critério marxista de verdade” desenhado na existência concreta da objetividade. (Idem)

É essa coerência epistemológica, em desenvolvimento, que, nos “Cadernos filosóficos”, [9] a meu juízo, fornece a comprovação de um entendimento mais abrangente e profundo da obra hegeliana.

Perceba-se aqui que, o primeiro movimento abarca lancinantes episódios políticos decorrente da derrota da revolução russa de 1905-7. M&E, como se viu, tornou-se a ferramenta necessária contra a capitulação idealista e religiosa, dentro movimento operário: a defesa intransigente do materialismo filosófico marxista.

No segundo movimento, notadamente em sua detalhadíssima exegese da “Ciência da lógica”, de Hegel, Lênin nos revela seu agudo sentido de apreensão da totalidade – mais uma vez – diante das exigências práticas de soluções urgentes à nova situação criada, no mundo. Como se sabe, o deflagrar da primeira Guerra Mundial fez explodir as contradições da recente ordem imperialista. Não só. Esse instrumental dialético materialista apreendido – e construído – por Lênin agora parecia ser insubstituível, decisivo, para o enfrentamento da gestação de uma nova situação revolucionária!

Noutras palavras, coerentemente com suas primeiras observações críticas sobre a grande obra hegeliana “Ciência da Lógica” – cuja leitura é datada da época de seu exílio forçado, de três anos na Sibéria, após ter sido preso em 1895 -, Lênin afunila seu longo percurso de estudos nos “Cadernos”, com “Sobre a questão da dialética”.

Ou seja, nos anos de 1908, e de 1914-1915, materialismo e dialética foram dissecados minuciosamente, e em momentos distintos que exigiam uma reviravolta e “saltos” no desenvolvimento da filosofia marxista, questões muito complexas enfrentadas por Lênin. E o gigante Hegel – e sua “astúcia da razão” – sempre esteve à sua espreita!

Quase conclui assim, maravilhosamente, o “Conspecto do livro de Hegel ‘Ciência da lógica”, nos “Cadernos”:

“É digno de nota que todo o capítulo sobre a ‘Ideia absoluta’ quase não diz uma palavrinha sobre deus (por pouco não escapou uma vez casualmente um ‘conceito’ ‘divino’), e além disto – isto NB – quase não contém especificamente idealismo, mas tem por principal objeto o método dialético. Balanço e resumo, a última palavra e essência da lógica de Hegel é o método dialético – isto é extremamente digno de nota. E mais uma coisa: é nesta obra de Hegel, a mais idealista, que há menos idealismo, mais materialismo. ‘Contraditório’, mas um fato” (Lénine, 1989, idem, p. 209-2010; grifos de Lénine).
 
NOTAS
[1] “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, Friedrich Engels, in: ‘Marx-Engels’, Obras Escolhidas, Tomo 3, Lisboa/Moscovo, Avante!/Progresso, 1985.
[2] Ver: “Quem são os amigos do povo e como lutam contra os sociais-democratas. (Resposta aos artigos de Rússikoie Bogatstvo”), V. I. Lenin, Obras Completas, tomo 1, Madrid, Editora Akal, 1974, p. 176; ver também p.178-181; trad. Nossa.
[3] Em: “Aos primeiros escritos de Lenin e o debate sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, Lenin, Obras Completas, cit., tomo 1, p, X; trad. Nossa.
[4]Ver: “Lénine, a arte e a revolução. Ensaio sobre a estética marxista”, Jean Michel Palmier, 1º vol., Lisboa, 1976, p. 72.
[5] Em: Obras Completas, V. Lénine, op. cit., tomo 1, p.528, nota 9.
[6] Sobre a teorização das duas obras de Lênin ver especialmente: Henri LEFEBVRE, “O pensamento de Lenine”, Lisboa, Moraes Editores, 1975, Cap. III. (‘O pensamento filosófico de Lénine’), p. 111-186, 2ª edição; José BARATA-MOURA, “Sobre Lénine e a filosofia. A reivindicação de uma ontologia materialista dialéctica como projeto”, Lisboa, Avante!, 2010, p.
[7] Ver: “O pensamento de Lênin”, de L. GRUPPI, Rio de Janeiro, Graal, 1979. Entretanto, como afirmou OlivaL FREIRE JR., a propósito:
“Ao analisar as raízes gnosiológicas do “idealismo físico”, Lênin mostra que “a ideia fundamental desta escola da nova física, é a negação da real idade objetiva”. Alerta para o fato de que “os grandes progressos das ciências da natureza, a descoberta de elementos homogêneos e simples da matéria cujas leis do movimento são suscetíveis de uma expressão matemática, fazem esquecer a matéria aos matemáticos, ‘a matéria desaparece’ só subsistem equações”. A existência nos dias atuais de uma corrente idealista, neo-positivista, liderada pelo filósofo Bertrand Russell que incide precisamente na substituição da realidade material pela lógica matemática mostra a atual idade deste alerta”. Ver: “A atualidade de Materialismo e Empiriocriticismo 75 anos depois de sua publicação”; aqui: http://revistaprincipios.com.br/artigos/8/cat/2115/a-atualidade-de-materialismo-e-empiriocriticismo-75-anos-depois-de-sua-publicaç&atildeo-.html
[8] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reacionária”, V. I. Lénine, Lisboa, Avante!, p.103.
[9] Os “Caderno filosóficos”, que contém, além dos principais estudos de Hegel, exame de inúmeros outros pensadores (Aristóteles, Leibinz, Lassalle, Feuerbach, Heráclito, Éfeso entre outros), estão primorosamente editados no volume 6, das Obras escolhidas, Editorial Avante!, Lisboa, 1989. Há também uma edição recente da Boitempo (Junto com as Fundações Mauricio Grabois e Dinarco Reis) dos estudos de Lênin sobre Hegel, nos “Cadernos” (São Paulo, 2018).

*A. Sérgio Barroso – Médico, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Campinas (Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB e diretor da Fundação Maurício Grabois (FMG)