Como criar uma política urbana do Comum
O cais José Estelita fica no centro histórico de Recife, Pernambuco, no nordeste do Brasil. É um terreno às margens do rio Capibaribe que corresponde a quase 14 campos de futebol e era propriedade da Rede Ferroviária Federal S.A. Em sua área, abriga construções históricas como pátios ferroviários e galpões de açúcar. Em 2008, foi vendido para um consórcio de empreiteiras que anunciou a construção de 12 torres de quarenta andares para uso privado. O projeto, que recebeu o sugestivo nome de Novo Recife – não, este não é o roteiro de um filme de Kleber Mendonça Filho –, revoltou arquitetos, ambientalistas, ativistas e grande parte da população. Apesar da localização privilegiada, que liga o centro histórico à parte rica da cidade, o terreno foi vendido pelo valor mínimo de R$ 55 milhões de reais, cerca de R$ 500 o metro quadrado, uma pechincha. Somente alguns anos depois, no dia 21 de maio de 2014, o consórcio das construtoras iniciou a demolição dos galpões. Foi quando um grupo de manifestantes ocupou o terreno.
Como na noite inaugural do 15-M espanhol, 15 pessoas acamparam no cais. Na madrugada, um dos ativistas foi agredido pelos seguranças privados. No dia 22, porém, a Justiça Federal concedeu liminar impedindo a derrubada dos galpões. E desse confronto nasceu uma mobilização popular que pode ser considerada um dos grandes exemplos de defesa de um comum urbano do Brasil: o #OcupeEstelita. Cais ocupado, em pouco tempo os ativistas reuniram milhares de pessoas em protestos com recital de poesias, exposição de fotos, feira de livros e outras intervenções artísticas. A notícia se espalhou pelas redes sociais, gerando repercussão positiva em todo o Brasil e no exterior. Assim, em 3 de junho, pouco mais de uma semana após o início da ocupação, a prefeitura anunciou a suspensão da licença que permitia a demolição do cais. Nos dias subsequentes, o terreno seguiu ocupado, enquanto prefeitura e empreiteiros, o Estado e o mercado, mancomunados, buscavam a portas fechadas uma solução favorável a eles. Com pouco menos de um mês de ocupação, o governador João Lyra ordenou a reintegração de posse, que foi realizada pela Polícia Militar com uso de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, descumprindo um acordo com o Ministério Público que previa a saída pacífica dos manifestantes.
Quem imaginou que a repressão desarticularia o movimento se enganou. De lá para cá, o #OcupeEstelita tornou-se um campus avançado de experiências urbanas. De acordo com informações dos próprios organizadores, ao longo dos últimos três anos eles realizaram 64 oficinas, 6 assembleias, 5 feiras, 4 ocupações, 10 manifestações de rua; promoveram 23 debates, 14 aulas públicas, 2 palestras, 5 rodas de diálogo, 98 apresentações culturais, 7 mostras artísticas, 21 intervenções, 22 exposições de vídeo; e estiveram presentes em 5 audiências públicas, onde fizeram 297 contribuições de diretrizes urbanísticas para a área. O movimento criou até um plano urbanístico específico para o cais Estelita. O litígio, no entanto, segue em curso e parece longe de um desfecho.
O #OcupeEstelita é um caso eloquente das tensões que vivemos em nossas urbes. A meu ver, ilustra exatamente aquilo que o geógrafo britânico, David Harvey, defende como direito à cidade, algo que, segundo ele, só pode ser vivenciado a partir das lutas sociais, da ação dos movimentos sociais [1]. O processo histórico demonstra que os ricos costumam exercer seu direito à cidade sem se preocupar com a exclusão que suas ações geram. Dotados de poder econômico e político, moldam suas cidades de acordo com seus interesses, como no caso da Nova York dos anos 1970, dos irmãos Rockfeller. Harvey chega a dizer que é preciso, então, encher de significado a expressão direito à cidade, que, em si, é um conceito vazio. Não pode ser, como muitas vezes aparenta, uma espécie de ética agradável, que gera comunhão entre todos os habitantes de um determinado território. O direito à cidade, a partir desse olhar, se constrói na luta por afirmar o comum urbano e ao se contrapor à especulação imobiliária.
Pergunto, então, se não foi exatamente isso que os ativistas do #OcupeEstelita fizeram, inclusive explodindo as fronteiras do movimento para ganhar o apoio do conjunto da sociedade.
Em entrevista para este livro, um dos ativistas do #OcupeEstelita, Rud Rafael, explica que a compreensão de que estavam imersos na defesa do comum foi consequência do processo de resistência, da experiência de viver a ocupação e da coletivização do espaço. Seu depoimento corrobora a ideia de que o comum não existe sem o processo de produzi-lo. “Pode-se dizer que isso foi bem representado na insígnia que marcou as mobilizações: ‘A cidade é nossa! Ocupe- a!’. Nesse sentido, a gente tem um processo que estabelece a condição geral de que a cidade é comum e que o processo decisório em torno de como e para quem ela está sendo construída tem ameaçado essa construção”. Rafael explica que, a partir desse processo,
foram sendo formuladas outras questões, como a defesa do direito à paisagem, que dá visada para um conjunto de patrimônios tombados e configura um cartão-postal da cidade, e do patrimônio histórico, posto que o pátio ferroviário é o segundo mais antigo do país. No transcorrer da resistência, tantas outras lutas abarcaram no Cais, fazendo com que o território em questão se tornasse um polo agregador de várias discussões e resistências, um símbolo do potencial de revitalização que a apropriação coletiva é capaz de criar. [2]
A ocupação do Cais foi gerida por um processo de assembleias. Rafael destaca que a experiência produziu conflitos e aprendizados, mas acendeu a chama do movimento em defesa de uma outra cidade. O resultado foi a transformação da narrativa oficial sobre Recife, que estava nas mãos do mercado imobiliário A visão de que a capital pernambucana era um espaço de violência e que a segurança só seria possível em condomínios fechados ou em arranha-céus com cara de bunkers, aprofundando a exclusão dos pobres e periféricos, foi superada pela ideia de “cidade roubada”, saqueada pelas elites econômicas em aliança com a elite política. O comum surge nesse contexto como um sopro de esperança, terceira dimensão possível, baseada na auto-organização e na coletivização do espaço urbano em benefício das maiorias. O espaço público, ressignificado, tornou-se espaço de encontro e de produção da política.
A ocupação foi a radicalização de uma prática política que já vinha sendo desenvolvida na defesa do Cais e que foi desencadeada pela atitude destrutiva das empreiteiras, na tentativa de início de demolição ilegal dos armazéns de açúcar. Até então, a experiência das redes sociais, das lutas travadas no Judiciário, das ocupações temporárias do espaço público tinham sido importantes ferramentas políticas, mas uma ocupação permanente garantiu um salto na forma de viver. Diversos atores sociais que até então não tinham se envolvido na luta passaram a ser sujeitos importantes no processo (coletivos estudantis, organizações autonomistas e outros setores ligados a lutas antissistêmicas). Isso enriqueceu bastante a forma de fazer política, principalmente no que diz respeito às práticas de ação direta. [3]
Segundo o ativista do MTST, a síntese política desse processo foi a ampliação das visões e das práticas políticas por parte dos movimentos sociais, numa equação que envolveu “uma disputa contra o Estado (confrontando a lógica e as decisões dos entes envolvidos), pelo Estado (por exemplo, com a exigência de que as decisões passassem pelos espaços de gestão democrática institucionais, como o Conselho da Cidade e as audiências públicas) e para além do Estado (trabalhando fundamentalmente as práticas de autogestão do território)”.
Outro caso brasileiro emblemático de peleja por um comum urbano é o de um terreno de 24 mil metros quadrados localizado no centro de São Paulo, entre as ruas Augusta, Caio Prado e Marquês de Paranaguá. Quarenta anos atrás, atraídos pelo remanescente de mata nativa que habita o local – única área verde rodeada por um oceano de concreto – cidadãos paulistanos, muitos deles moradores do entorno, passaram a frequentar esse terreno informalmente e a geri-lo de maneira autônoma. Em 1996, porém, a terra foi comprada por uma incorporadora para especulação imobiliária, e em 2001 a associação de moradores do bairro realizou um abaixo-assinado pedindo ali a criação de um parque público, o que foi definido pelo Plano Diretor paulistano de 2002. É nesse momento que surge a ideia do Parque Augusta, e o bosque é então tombado pelo Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo em 2004.
De lá para cá a história tem se arrastado em uma disputa que envolve a cidadania, o mercado imobiliário e o poder público em quase sua totalidade: Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público.
Um dos episódios singulares dessa espiral sem fim – e que nos serve de gancho para uma análise sobre os comuns urbanos – foi a criação, em 2013, do Organismo Parque Augusta. O OPA se configurou como um movimento autogerido e horizontal, organizado por meio de assembleias presenciais, grupos de trabalho, ações diretas e pela internet. Com uma única reivindicação: a criação do parque 100% público, sem prédios, sem especulação imobiliária e com administração popular. O movimento foi responsável pela realização de festivais independentes, que levaram milhares de pessoas ao “organismo- parque”, e por ações diretas permanentes, como piqueniques, hortas comunitárias, atividades culturais e gastronômicas, construção de mobiliário urbano, festas e shows – também produziu uma série de publicações com enfoque no direito à cidade. Mesmo depois de o terreno ter sido fechado pela incorporadora, na mesma época que o então prefeito da cidade, Fernando Haddad, sancionou a Lei 15.941 criando o Parque Augusta, o OPA seguiu realizando mobilizações e intervenções. Em 2015, com a prefeitura querendo mediar um acordo que envolvesse a construção do parque, mas também de três grandes torres, os ativistas ocuparam o terreno. Depois de 45 dias, porém, a ocupação foi reprimida, com reintegração de posse garantida pela Polícia Militar. Nos últimos dois anos, o MP mediou um acordo para que a prefeitura use recursos recuperados pelas ações de combate à corrupção na construção do parque e os advogados do OPA obtiveram uma decisão da Justiça que considerou o trancamento dos portões ilegal. Em 2017, novo governo na cidade, a projeção mais concreta é de que o mercado vença a guerra.
Narradas essas histórias, talvez caiba a pergunta: por que o #OcupeEstelita e o Parque Augusta podem ser considerados exemplos de comuns urbanos? A teoria pode nos ajudar a respondê-la. Na introdução do livro The City as Commons: A Policy Reader, lemos a reprodução de um trecho de um artigo de Sheila R. Foster e Christian Iaione: “[…] a reivindicação dos bens comuns está alinhada com a ideia por trás do ‘direito à cidade’ – o direito de fazer parte da criação da cidade, o direito de fazer parte dos processos decisórios que moldam a vida dos habitantes da cidade e o poder dos cidadãos de moldar as decisões sobre os recursos coletivos em que todos nós temos uma participação” [4].
Processos vivos como o #OcupeEstelita e o Parque Augusta são emblemas desse possível comum urbano, que é uma forma de efetivação do direito à cidade a partir da negação do capital e dos governos a ele dóceis. Porque a cidade do comum é uma cidade coconstruída pelos seus habitantes, uma cidade que permite a governança colaborativa do que nos habituamos chamar espaço público: as ruas, praças, parques, várzeas dos rios, rios, bosques remanescentes etc. Essa cidade do comum também permite a reversão de processos de privatização, dando lugar a novos arranjos comunitários de usufruto cidadão, como ocorre quando terrenos baldios passam a ser usados para a construção de hortas urbanas, solários ou mesmo praças autogestionadas. Os dois casos são também demonstrações de uma nova cultura cidadã, que não pede permissão para se afirmar e produz, como quer o arquiteto grego Stavros Stavrides, um espaço que “acontece”. Ou, numa interpretação livre do geógrafo Milton Santos, que cria fluxos para os fixos. “Uma potencial cidade liberada pode ser concebida não como um aglomerado de espaços liberados, mas como uma rede de caminhos, como uma rede de espaços pertencentes a ninguém e a todos ao mesmo tempo, os quais não são definidos por uma geometria de um poder fixo mas pela abertura a um processo constante de (re)definição.” [5]
Podemos compreender o comum urbano, portanto, como um processo social que busca promover na cidade capturada pelo mercado – em específico pelo neoliberalismo – novas dinâmicas de encontro, articulando duas redes complementares: a virtual e a vivencial (atual). Não à toa, o teórico Manuel Castells, ao analisar os protestos ocorridos no mundo a partir da Primavera Árabe de 2011, fala do surgimento de um novo ambiente de mobilização política, que ele conceitua como espaço da autonomia. O que é comum, afinal, não tem um dono, mas muitos; é fluido, jamais fixo.
Políticas públicas; cidadãos inteligentes
Pode o comum ser objeto de uma política urbana? Pode o comum ser usado como argumento jurídico para reorganizar uma cidade? Viajemos à Itália. Mais especificamente a Nápoles, onde em 1572 foi construído o Asilo Filangieri, um prédio histórico tombado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade e que entre 1920 e 1980 serviu de sede para um orfanato até que um terremoto causou-lhe danos estruturais, ocasionando seu fechamento. Por trinta anos, esse edifício majestoso, no centro da cidade, esteve lacrado, até que a prefeitura resolveu reformá-lo para sediar o Fórum Universal da Cultura, de uma fundação privada. O investimento de 8 milhões de euros foi por água abaixo porque a proposta privada naufragou. Em protesto contra o desperdício de verbas e a corrupção, um grupo de artistas ocupou o Asilo por três dias e dessa ocupação nasceu um movimento que já é considerado um marco entre os comuneiros.
Isso porque os artistas resolveram ir além do protesto e lutaram para assumir a gestão do edifício, construindo para isso uma solução legal baseada em um antigo mecanismo do direito romano que havia caído no esquecimento: o uso cívico de um bem público. Esse instrumento legal ainda era utilizado em comunidades rurais para regulamentar o uso do campo, de rios e de lenha – e no caso do Asilo foi adaptado para uma legislação urbana. Agora, o L’Asilo, como é conhecido, é um laboratório urbano e um centro cultural autogovernado, com base em um decreto que o reconhece como um bem comum.
Giuseppe Micciarelli, professor de direito da Universidade de Salerno e um dos participantes desse processo, conta em entrevista ao jornal Diagonal, da Espanha, que L’Asilo é gerido por uma democracia assemblear bastante complexa. São duas instâncias de deliberação: uma de gestão e outra de direção, mais grupos de trabalho autogovernados. Os participantes não tiveram que constituir uma associação ou algo do gênero, mas sim um regulamento pactuado que estabelece direitos e deveres dos “gestores”. Explica Micciarelli:
Com o mecanismo comunitário horizontal que organizamos se respeita a tomada de decisão de um movimento político que está aberto. O coletivo já existia no momento da ocupação, que foi um momento genérico e de conflito e está em constante mutação. A gente criou uma regulamentação de 23 artigos através de um processo coletivo em que participaram artistas e cidadãos que usam o espaço. Essas normas são o regulamento de uso do espaço. [6]
As duas instâncias administrativas buscam contemplar algo que em processos coletivos costuma causar problemas. Enquanto a assembleia de direção é o espaço de fazer o comum, de construção política, a assembleia de gestão se responsabiliza pelas questões práticas da administração, como segurança, limpeza e os gastos ordinários (água e luz). O poder público oferece algum recurso para a manutenção da experiência, mas a questão do financiamento segue sendo um dos grandes desafios para os membros do L’Asilo. Essa experiência pioneira abriu as portas para outros processos similares e atualmente já existem em Nápoles outros sete centros sociais reconhecidos como bem comum. Em um artigo para a revista Il tetto, Micciarelli afirma que tudo que foi feito é uma tentativa de torção do direito no sentido da democracia radical e da soberania popular [7]. Um experimento.
Nesta hora, lembro-me uma vez mais de Bollier, que afirma que a regulação é “com demasiada frequência” uma “farsa que serve mais para legalizar os abusos do mercado do que para erradicá-los” [8]. Não contestaria essa frase com base nas experiências regulatórias que vivenciei como ativista ou como gestor público. Mas o caso italiano parece colocar em perspectiva um novo paradigma. Além de Nápoles e seus centros sociais e culturais do comum, Bolonha vem capitaneando uma experiência que merece atenção. O documento Regulation on the collaboration among citzen and the city for the care and the regeneration of urban commons (Regulamento sobre a colaboração entre os cidadãos e a cidade para o cuidado e a regeneração dos bens comuns urbanos) narra essa história e compartilha os principais pontos desse experimento que tem buscado desenvolver uma política urbana do comum.
O projeto de Bolonha iniciou-se em 2011, primeiramente com uma série de atividades dentro de um programa chamado “A Cidade como um Comum”. O regulamento supracitado, resultado dessa experimentação prática, foi publicado em 2013. Desde 2015, a partir de uma cooperação entre a administração da cidade, a Fondazione del Monte di Bologna e Ravena e o LabGOV (Laboratory for the Governance of the Commons), iniciou-se o projeto Co-Bolonha, que busca estender a lógica dos bens comuns para a administração das demais políticas públicas municipais. De acordo com seus promotores, o Co-Bolonha pretende desenvolver um novo arranjo de governança baseado na tríade compartilhamento, colaboração e policentralidade. Esse processo também instituiu a criação do Escritório para Imaginação Cívica, um laboratório de inovação dentro da administração municipal vinculado à assessoria do próprio prefeito, e uma Politécnica dos Comuns, unidade técnica avançada que reúne funcionários públicos, especialistas em governança colaborativa e comuneiros cujo objetivo é realizar o sonho de construir uma outra cidade. O trabalho é orientado a partir de três dimensões: fazer juntos (processos colaborativos de criação de comuns); viver juntos (inovação social e cidadã); e crescer juntos (economia colaborativa). De acordo com um documento publicado no site do LabGOV, a equipe tem trabalhado na conexão de experiências já existentes, fortalecendo seu potencial e oferecendo novas condições de colaboração para uso dos espaços urbanos, com foco nos bairros.
De fato, as experiências de comuns urbanos estão pipocando ao redor do planeta. Os casos de Nápoles e Bolonha apontam para essa dimensão regulatória que podemos considerar um raro caso de inovação jurídica. Em muitos países, o direito tem servido para perpetuar desigualdades, e não para instituir processos de transformação social, o que resulta em enfraquecimento da democracia. Por isso vale acompanhar os desdobramentos do que está ocorrendo nas cidades italianas. De antemão, alerto para o risco de que o governo, mesmo bem-intencionado, use de sua mão pesada para impor às comunidades autogovernadas sua vontade.
Uma democracia vibrante exige espaços abertos e não controlados para se efetivar. Jamais podemos nos esquecer disso. Importante recordar que algumas iniciativas cidadãs – justamente por conhecerem os perigos da cooptação – resistem em dialogar sobre soluções regulatórias, mesmo quando o interlocutor institucional é uma administração aberta à lógica do comum. Um caso que conheci em 2015 e por isso compartilho é o Esta es una Plaza, do bairro do Lavapiés, em Madri, que nasceu a partir de uma iniciativa do grupo Operários do Espaço Público em associação com moradores locais, em dezembro de 2008.
Localizado em um terreno que esteve abandonado por trinta anos, o projeto consiste em laboratório de vizinhança formado por pessoas que se reúnem aos fins de semana e cuidam de uma horta urbana, uma área de prática esportiva, um mercado de trocas, um teatro ao ar livre e mobiliários para descanso. Tudo ali é construído colaborativamente e de maneira artesanal, com material reciclado e presença comunitária. Hoje consolidado, o projeto teve de lutar contra a prefeitura para se estabelecer. Em 2009, chegou a ser integralmente destruído por escavadeiras do poder público. Após tensa e longa negociação – impulsionada por cafés da manhã públicos que serviam como ponto de encontro para os ativistas – conseguiram garantir o usufruto – provisório – do terreno.
Hoje, Esta es una Plaza é uma associação voltada para a “ocupação vegetal da cidade” e uma rede comunal de bairro. Organiza-se por meio de assembleias que deliberam sobre o uso do espaço e estabelecem regras de convivência.
Promovem oficinas, mercados de troca e atividades culturais e artísticas. Querem apenas continuar fazendo e que o governo não os incomode.
Essa experiência me convoca a trazer uma última questão, inspirada uma vez mais por Harvey. O geógrafo britânico defende uma ideia relativamente heterodoxa quando o assunto é o comum. Para ele, em alguns casos, o que os ativistas devem fazer é cercar (enclosure) seus espaços de ação. Cercá-los, para protegê-los, como fazem os comuneiros do Lavapiés. Ele cita o exemplo do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) no México, que cercou seu espaço de atuação e afirmou que governaria um determinado território, o estado de Chiapas.
Então às vezes eu acho que há uma confusão, na literatura sobre o comum, que é o anticercamento, e não sou contra o cercamento; estou dizendo que às vezes pode ser interessante cercar as coisas para protegê- las. Espaços heterotópicos precisam ser protegidos. E como você os protege? Você tem de cercá-los, apenas de forma que possam ser protegidos. Até mesmo as comunas anarquistas tendem a ter suas cercas. [9]
Festivais culturais no espaço público, piqueniques políticos, hortas urbanas, bibliotecas e parques sempre abertos, rios e praias limpos por seus frequentadores, bosques recuperados, prédios abandonados ocupados por movimentos de moradia, por artistas, por sem-teto; levantes provisórios, zonas autônomas e permanentes de invenção, centros sociais autogovernados, canteiros de experimentação, encontros de ciclistas, de caminhantes, de artesãos, de reparadores, de construtores, de criadores; derivas, tecnologias digitais livres, dados abertos, cadeiras na calçada no fim da tarde, vizinhos, balanços que pendem sob viadutos, muros como telas para pintores rebeldes, crianças que andam pelas ruas sem medo, comércio justo, mercados de troca, quiosques de cuidados partilhados, mobiliários feitos de material reutilizado, afetos abundantes, tecnologias sociais para garantir a acessibilidade dos deficientes, para garantir a livre circulação de mulheres, negros, indígenas, trans… Para enfrentar a smart city (cidade inteligente) do capital – internet das coisas para o controle definitivo dos corpos – a cidade do comum, múltipla, diversa e plural.
[1] Cf. entrevista concedida por Harvey à socióloga turca Pelin Tan em junho de 2012, disponível em: <http://tanpelin.blogspot.fr/2013/03/an-interview-with-david-harvey-practice.html>, acesso em: 19 mar. 2018.
[2] Em entrevista ao autor por e-mail em julho de 2017.
[3] Idem.
[1] […] the commons claim is importantly aligned with the idea behind the ‘right to the city’ – the right to be part of the creation of the city, the right to be part of the decision-making processes shaping the lives of city inhabitants, and the power of inhabitants to shape decisions about the collective resource in which we all have a stake.” Sheila R. Foster; Christian Iaione apud José Maria Ramos (org.), The City as Commons, Melbourne: Commons Transition Coalition, 2016, p. 6.
[2] “A potentially liberating city can be conceived not as an agglomerate of liberated spaces but as a network of passages, as a network of spaces belonging to nobody and everybody at the same time, which are not defined by a fixed-power geometry but are open to a constant process of (re)definition.” Stavros Stavrides em entrevista concedida durante a 2ª Bienal de Atenas (2009). Disponível em: <https://www.e-flux.com/journal/17/67351/on-the-commons-a-public-interview-with-massimo-de- angelis-and-stavros-stavrides/>, acesso em: 22 maio 2018.
[3] “Con el mecanismo comunitario horizontal que hemos organizado se respeta la toma de decisiones de un movimiento político que está abierto. El colectivo ya existía en el momento de la ocupación, que fue el momento genérico o de conflicto y está en constante mutación. Nosotros creamos una reglamentación de 23 artículos a través de un proceso colectivo en el que participaron artistas y ciudadanos que usan el espacio. Estas normas se asumen como reglamento de uso del espacio.” Disponível em: <https://www.diagonalperiodico.net/libertades/31726-esto-es-laboratorio-autogobierno.html>, acesso em: 11 maio 2018.
[4] Cf. Giuseppe Micciarelli, “Pratiche_di_commoning_nel_governo_dei_beni_comuni:_il_caso_dell’ex_Asilo_Filangieri”, Il tetto, Nápoles, 2015, pp. 92-5. Disponível em: <https://www.academia.edu/16133615/Pratiche_di_commoning_nel_governo_dei_beni_comuni_il_ acesso em: 10 ago. 2017.
[5] David Bollier, op. cit., p. 44.
[6] “So I think there is sometimes a mix up, in the commons literature which is anti-enclosure and I am not anti-enclosure at all, I am saying well you have got to be interested sometimes in enclosing things in order to protect them. Heterotopic space has to be protected. How do you protect that, you have to enclose it, only in that way it can be protected. Even anarchist communes by the way tend to have enclosures.” David Harvey em entrevista concedida à socióloga turca Pelin Tan em junho de 2012, disponível em: <http://tanpelin.blogspot.fr/2013/03/an-interview-with-david-harvey-practice.html>, acesso em: 19 mar. 2018.