Embora a mortalidade por covid tenha sido maior na periferia da capital paulista, a vacinação priorizou a população dos bairros centrais mais ricos.

Pesquisadores do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da USP mapeou a distribuição geográfica da covid-19 na cidade de São Paulo e concluiu que a distribuição da vacina não considerou a população mais atingida pela doença. O relatório aponta para a necessidade de alterar a prioridade nas fases seguintes da campanha de imunização se houver a preocupação de reduzir contágios e óbitos, já que a estratégia se reproduz em todo o país de forma semelhante.

A estratégia de priorizar idades mais avançadas atingiu bairros mais ricos, onde a expectativa de vida é maior. Os pesquisadores acreditam que priorizar trabalhadores de áreas essenciais teria evitado mais contágios e mortes. Apesar disso, essas pessoas da periferia mais pobre continuam sendo mais atingidas pela pandemia, principalmente pela vulnerabilidade no transporte coletivo.

Segundo a análise dos dados feita por Aluízio Marino, Gisele Brito, Pedro Mendonça e Raquel Rolnik, do LabCidade, as manifestações do poder público foram todas no sentido de identificar a população periférica, mais pobre, como a mais atingida pelo contágio e óbitos da pandemia. No entanto, na hora de implementar a política de prioridades da vacinação, a população central e mais rica acabou sendo beneficiada primeiro.

 

Os pesquisadores observam que, ainda no início da pandemia, autoridades e organizações apontaram para a desigualdade na distribuição de hospitalizações e óbitos por Covid-19, apontando a precariedade da moradia periférica. “Trata-se de uma leitura que reconhece a desigualdade, embora de forma estigmatizante e simplista. (…) Apesar disso, essas narrativas não repercutiram em uma estratégia territorializada para conter a disseminação da doença”, afirmam os pesquisadores.

O mapa feito a partir dos dados abertos disponíveis na plataforma OpenDataSUS, e de dados de código postal do Centro de Estudos da Metrópole, com dados das hospitalizações e o mapa de mortalidade, apontam a concentração do impacto do vírus tanto em territórios periféricos, como Sapopemba, Capão Redondo ou Brasilândia, quanto centrais, como República e Santa Cecília. Como não houve prioridade para eles, continuaram sendo o foco de contágios nos meses seguintes.

“Agora, com o avanço da campanha de vacinação, que se apresenta como a única saída para a crise sanitária, a falta de uma compreensão territorial torna-se ainda mais grave”, diz o relatório. Segundo a análise, a opção de vacinar os mais velhos primeiro, mais sujeitos a situação de agravamento da doença e morte, resultou num percentual desproporcionalmente maior de vacinados no chamado eixo sudoeste da cidade, onde se concentra uma população branca com maior média etária e mais renda. O problema disso é que esta região não coincide com os locais mais afetados pelo vírus.

Transporte público como vetor

Este fator de agravamento nas periferias também foi analisado pelo ponto de vista do deslocamento das populações para o trabalho. Em vez do viés estigmatizante das condições de moradia enfatizados pelas elites políticas, o relatório apontou para a importância de agir sobre o sistema de transporte e as rotinas de trabalho.

Em vez de vacinar por critério de idade, a imunização voltada para trabalhadores de atividades essenciais seria mais compatível com uma ação que beneficia os locais mais impactados pela Covid. Atualmente, mesmo atendendo setores do trabalho essencial, a maior parte das categorias ainda não estão previstas no cronograma de vacinação.

Outra denúncia do relatório diz respeito ao modo como essas pessoas mais vulneráveis continuam sendo ignoradas, em favor de profissionais de saúde que não estão na linha de frente da pandemia e concentram-se nos bairros de maior renda. Assim, pessoas com maior risco ao contágio e óbito continuam expostas sem imunização, enquanto pessoas em trabalho remoto são vacinadas.

Outra crítica à hipocrisia do poder público, por parte do relatório, foi o evidente efeito de naturalizar as mortes, já que a associação constante entre a exposição maior à doença em bairros pobres e periféricos não serviu para adoção de políticas dirigidas especialmente para estes grupos e muito menos sua inclusão nas prioridades de vacinação. “Essa naturalização da morte não é nova e nem é neutra e tem também uma dimensão racial. (…) Por outro lado, os territórios onde mais se vacinou até agora são onde se auto segrega a população branca de renda mais alta”, analisa o relatório.

“A suposta neutralidade do critério etário escamoteia fatos largamente conhecidos sobre nossas cidades: a desigualdade na expectativa de vida é territorialmente demarcada, as atividades laborais são social e territorialmente demarcadas. Às vésperas de uma terceira onda, não é mais possível adiar a adoção de critérios de vacinação que sejam socialmente eficazes e justos”, concluem os pesquisadores.

 

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