A surpresa do PIB num país em ruínas
Agora é oficial. As estimativas mais otimistas relativamente ao desempenho da economia brasileira ao longo do primeiro trimestre deste ano foram confirmadas. Os números apresentados pelo IBGE apontam para um crescimento de 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) na comparação com o trimestre imediatamente anterior. A partir dessa informação, passam a ser aguardadas as expectativas para o comportamento das atividades econômicos para o conjunto do ano 2021. Alguns bancos e consultorias econômicas já começam a trabalhar com cenários de 4% ou mesmo 5% de aumento do PIB.
Parece óbvio que é sempre recomendável alguma cautela quando se trata de fazer previsões para a economia, em especial em uma conjuntura como a que vivemos atualmente. Não há nenhuma certeza a respeito dos desdobramentos relativos à eventual terceira onda da covid em gestação, mas o fato é que esse fenômeno deverá trazer também consequências para a redução do ritmo da atividade da economia.
De toda forma, começa se configurar o quadro que parece apontar para a superação da recessão que marcou o ano passado, quando o Produto brasileiro recuou em 4,1%. Essa avaliação é fundamental para municiar de forma adequada a formulação da estratégia das oposições em relação ao governo Bolsonaro. A suposição de que o país permaneceria eternamente em um ambiente recessivo, sempre descendo alguns níveis abaixo pelo alçapão no fundo do poço, revela-se um equívoco. O fato de a economia oferecer números de crescimento não deve nos pegar de surpresa. É preciso incorporar esse dado na análise e centrar naquilo que seja essencial na crítica de Bolsonaro e seu governo.
PIB cresce, mas a maioria segue em crise
O fato de termos um Presidente genocida e um superministro da economia incompetente e neoliberal não nos permite a acomodação na mera denúncia da recessão. A dinâmica da própria economia termina por apresentar surpresas como esses números do PIB do primeiro trimestre e as forças oposicionistas precisam incorporar esse elemento e não brigar com a realidade. Já havia indícios apontando nesse sentido. O indicador “Índice de Atividade Econômica do Banco Central” (IBC-Br) é apurado pelo BC e costuma ser utilizado pelos analistas como uma espécie de “prévia do PIB”. O resultado desse parâmetro para o primeiro trimestre de 2021 aponta um crescimento de 2,3% na comparação com o trimestre anterior.
Outra informação relevante refere-se à arrecadação tributária. Como a parte expressiva de nosso sistema de impostos recai sobre produção e consumo, pode-se inferir alguma coisa a respeito do comportamento da economia real a partir do desempenho da Receita Federal. Assim, o primeiro trimestre de 2021 também parece confirmar esta mesma tendência quando são avaliados os números da arrecadação do governo. De janeiro a março, por exemplo, o ingresso de recursos no caixa do Tesouro Federal foi de R$ 450 bilhões, um recorde para o primeiro trimestre da série histórica. Em termos reais, descontada inflação, os valores representam um crescimento real de 5,6% em relação ao primeiro trimestre de 2020.
Os números realmente surpreendem. Afinal esse mesmo país está mergulhado em sua maior crise econômica e social, com indicadores também recordes para o desemprego e para a baixa utilização da força de trabalho regular. Isso significa, para além da tragédia individual familiar e coletiva, que o nível de rendimentos das camadas da base de nossa pirâmide da desigualdade continua sendo baixo. Assim, um dos componentes fundamentais para o Produto (massa salarial e renda das famílias) não deve estar sendo atualmente o fator impulsionador desse crescimento das atividades gerais.
Na época da ditadura também era assim
O gastos do governo também costumam ser um elemento chave na retomada do PIB. Ocorre que a política de austeridade e as limitações das regras fiscais impedem que a elevação da despesa governamental atue como variável contra cíclica. Assim, o fator governo tampouco deve ser o que esteja na base do crescimento observado.
Normalmente, é necessário aguardar um certo tempo para que sejam analisadas todas as hipóteses envolvidas. De qualquer maneira, chama a atenção o desempenho das atividades relacionadas ao setor exportador, em especial aquelas vinculadas ao agronegócio e aos minerais. A agropecuária, por exemplo, cresceu bem acima da média e atingiu 5,6%. As exportações de bens e serviços também apresentaram desempenho superior às demais, crescendo 3,7%. Finalmente, os investimentos, ainda que abaixo dos níveis necessários, se elevaram em 4,6%.
Esse quadro compõe de forma exemplar a tristemente famosa frase proferida pelo General Emílio Garrastazu Médici, que havia sido um dos indicados para a Presidência da República durante ditadura militar que se instalou no Brasil, a partir do golpe de 1964. Ele era o chefe do governo à época do chamado “milagre econômico”, quando PIB chegou a crescer a taxas elevadas, acima de 10%. Pois em 1974, ele confessou o sincericídio em entrevista à revista Visão:
(…) “A economia vai bem, mas o povo vai mal” (…)
Atualmente, o país segue mergulhado na tragédia da pandemia, sem que o governo tenha qualquer iniciativa para minorar os efeitos sobre a maioria da população e sobre a atividade econômica de forma geral. Questões urgentes, como a vacina e medidas compensatórias para viabilizar o isolamento social, passam longe da pauta de prioridades de Bolsonaro. Por outro lado, a manutenção do auxílio emergencial em níveis bastante reduzidos e na sequência de um primeiro trimestre sem nenhum recurso para os necessitados agrava a situação dos setores menos desfavorecidos da sociedade.
É preciso romper com o austericídio!
O mais provável é que Paulo Guedes e os “especialistas” chamados a dar sua opinião aos grandes meios de comunicação terminem por creditar esse resultado do PIB aos supostos acertos da política de austeridade fiscal e de privatização. Aquela velha e conhecida lenga-lenga de que finalmente as expectativas estão sendo cumpridas e que os investidores estariam retomando seus olhares para as possibilidades oferecidas pelo mercado brasileiro. A partir desse diagnóstico equivocado e elitista, sugerem que nada seja alterado no comando da economia e na sua estratégia de destruição do Estado e de desmonte das políticas públicas.
Com isso, temas como distribuição de renda, recuperação da dignidade e direitos no mercado de trabalho, recuperação de condições mínimas em saúde e educação, auxílio emergencial a R$ 600 e retomada de programas de infraestrutura com gasto público, entre outros, ficariam a ver navios. Trata-se de repisar o discurso em prol da liberalização da economia e da busca de soluções apenas como resultado da combinação das “livres” forças de oferta e demanda. Para esse pessoal, pouco importa que nos aproximemos da assombrosa marca de meio milhão de mortes pelo vírus ou que estejamos de volta aos mapa da fome e da miséria.
Para essa nata do financismo, o que vale mesmo é que o PIB voltou a crescer. A receita de Paulo Guedes se revela acertada e isso apenas confirma o acerto da opção que fizeram em outubro de 2018. E, por favor, não venham com esses “detalhes” que compõem o desastre em que o Brasil está mergulhado. Afinal, os números do IBGE confirmam que estamos no bom caminho. Alguém aí perguntou a respeito da situação de penúria por que passa a maioria do povo? Bobagem, isso é apenas uma questão de tempo. Logo será resolvida. Basta aguardar um pouco mais.
*Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Extraído do OutrasPalavras