“Se algum dia, porém, os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica, como a sanção necessária para pôr preceito aos salteadores fidalgos, aos contrabandistas impuros, aos juízes prevaricadores e aos falsos impudicos detentores. Esta é a verdade que profiro sem rebuço, e que jamais incomodará aos homens de bem[1].”
 
A história é algo estático e imutável, o que é mutável são as interpretações por meio das orientações políticas, sociais, econômicas e culturais de determinada época. Aliada a isso, a narrativa é escrita e propagada por aqueles que detém o poder da caneta, omitindo, potencializando ou superestimando a importância de pessoas e fatos a seu bel prazer.
 
E dentro deste contexto, de forma tardia, porém necessária e fundamental, evidencia-se cada vez mais no Brasil, sobretudo para a comunidade jurídica, a vida e obra do intelectual e abolicionista baiano Luiz Gonzaga Pinto de Gama.
 
Luiz Gama nasceu em 21 de junho de 1830 na cidade Salvador, capital da Bahia, filho de uma mulher forte, a africana Luísa Mahin[2] que vendia quitutes em praça pública e foi protagonista de diversos levantes contra a escravidão. Esta corajosa mulher precisou fugir para não ser presa e assassinada.
 
O pequeno Luiz ficou com seu pai, homem branco, fidalgo e membro de uma influente família baiana que, em razão de diversas dívidas de jogo, vendeu seu próprio filho como escravo para quitá-las. À época Luiz Gama tinha apenas 10 anos de idade.
 
Depois de ser rejeitado na condição de escravo, foi jogado em um navio que seguiu caminho para o porto de Santos e levado a São Paulo, para servir como escravo na casa de alferes Antônio Pereira Cardoso.
 
Aos 17 anos, foi morar na casa de Antônio Rodrigues de Araújo, um estudante de direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Antônio e Luiz ficaram amigos e Antônio se comprometeu a alfabetizar Luiz.
 
Definitivamente, ambos não sabiam que um negro letrado seria uma grande ameaça já que a ignorância é prato cheio para o sistema opressor.
 
Para se alforriar, Luiz tinha duas opções: juntar dinheiro e comprar sua alforria, ou comprovar que era filho de mulher livre e foi escravizado de forma ilegal. Era algo praticamente impossível à época.
 
Luiz relatou em carta endereçada para seu amigo Lúcio de Mendonça que obteve “ardilosa e secretamente provas inconcussas[3]” de sua liberdade e, deste modo, conseguiu se alforriar.
 
Em nenhum momento foi contestada a sua liberdade, algo que dá uma áurea quase mágica e fascinante a este fato.
 
Para se desassociar da escravidão, alistou-se na Força Pública da Provincia como voluntário. Deste modo, teria um trabalho e evitaria ser preso por vadiagem ou suspeita de fuga[4], por exemplo.
 
Era uma instituição que lhe garantia segurança e proteção, além de conseguir iniciar sua jornada como intelectual e abolicionista.
 
Aproximou-se do escrivão Major Benedito Coelho e virou seu assistente e, algum tempo depois, foi convidado pelo delegado Conselheiro Furtado de Mendonça para ser secretário de gabinete. Conselheiro Furtado era professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e em razão disto, Luiz Gama passou a desfrutar da sua biblioteca.
 
Em 1854 saiu da instituição militar após ser preso e condenado por insubordinação. Luiz Gama ficou um pouco mais de um mês na prisão, aproveitando a ocasião para ler diversos e variados livros (filosofia, política e clássicos da literatura).
 
Frequentou a Faculdade de Direito da USP e teve sua matrícula negada por ser negro, permanecendo na faculdade na condição de ouvinte.
 
Iniciou sua jornada na justiça paulista dispondo de uma apresentação para defender seus assistidos como solicitador ou como conhecido à época: rábula.
 
Autodidata, absorveu conhecimento jurídico por meio da leitura de casos diversos e praticou ativismo antiescravista para libertar as pessoas da escravidão, defendendo qualquer escravizado tendo, inicialmente, como base jurídica a lei de 7 de novembro de 1831 (proibia a importação/tráfico de escravos). Este tipo de causa possuía fortes elementos para lograr êxito perante a corte paulista.
 
Aqui um parêntese: mesmo após a entrada em vigor desta lei, aproximadamente 700 mil africanos foram contrabandeados para o Brasil.
 
Continuando.
 
Em ações mais complexas e quando se deparava com violência física e sinais de tortura contra escravos, valia-se do artigo 179 da constituição de 1824 estabelecia que:
 
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
 
(…)
 
XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.
 
Nestas ocasiões, impetrava Habeas Corpus[5] e conseguia a liberdade na justiça, com base neste dispositivo da Constituição Federal.
 
Esse tipo de ativismo jurídico com raciocínio lógico e criativo era algo inimaginável no século 19 e o autodidata Luiz Gama libertou mais de 500 escravos sem cobrar honorários.
 
Em um dos seus casos mais emblemáticos, Luiz Gama utilizou a tese de legítima defesa para defender um escravo que matou seu senhor.
 
“o escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa.”
 
Imaginem um negro, ex-escravizado, sem diploma, apresentando diversos erros de advogados e juízes na condução dos processos? Era muita coragem, audácia e afronta para aquela época.
 
Com sua capacidade intelectual aguçada, publicou seu primeiro livro, em 1859: “Primeiras trovas burlescas de Getulino”, coletâneas de poesias satíricas e ironias apuradas atingindo de forma perspicaz aristocratas, poderosos e a própria monarquia.
 
Em 1869, fundou com Rui Barbosa o Jornal Radical Paulistano, do Partido Liberal Radical paulista, ampliando seu alcance como jornalista e cronista jurídico.
 
Aproveitava desse canal de comunicação para defender seus ideais democráticos e escancarar injustiças cometida pelos operadores do direito contra os “desvalidos”.
 
“Impus-me espontaneamente a tarefa sobremodo árdua de tentar em juízo o direito dos desvalidos, e de, quando sejam, eles prejudicados por uma inteligência das leis, ou por desassisado capricho das autoridades, recorrer à imprensa e expor, com toda a fidelidade, as questões e solicitar para elas o sisudo e desinteressado parecer das pessoas competentes. Julgo necessária esta explicação para que alguns meus desafeiçoados, que os tenho gratuitos e rancorosos, deixem de propalar que costumo eu, como certos advogados, aliás considerados, clamar arrojadamente contra os magistrados por sugestões odientas, movido pelo malogro desastrado de pretensões desarrazoadas. Fique-se, pois, sabendo, uma vez por todas, que o meu grande interesse [,], interesse inabalável que manterei sempre, a despeito das mais fortes contrariedades, é a sustentação plena, gratuitamente feita, dos direitos dos desvalidos que correrem ao meu tênue valimento intelectual.[6]”
 
Ele circulou com certa sagacidade entre o mundo jurídico e as páginas de jornais, tendo sua obra jornalística profunda, singular e inovadora.
 
Luiz Gama foi um grande intelectual e ativista político negro do século XIX, compondo um seleto grupo de notáveis, ao lado de nomes como André Rebouças, José do Patrocínio, Teodoro Sampaio e Maria Firmina. Além disso, foi pioneiro no campo da política, defendendo a pauta abolicionista e a república, combatendo, deste modo, o regime imperial.
 
Neste período, o Brasil era o único país monarquista e escravocrata.
 
Além disso, foi um dos precursores da luta pelos direitos humanos no Brasil, se utilizando de refinada técnica jurídica para buscar a liberdade dos “desvalidos”.
 
Luiz Gama, acometido com diabetes, faleceu em 24 de agosto de 1882 (52 anos antes da assinatura da Lei Áurea), protagonista de um sepultamento que comoveu São Paulo.
 
Após 133 anos da sua morte, por iniciativa do Instituto Luiz Gama, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em Luiz Gama foi reconhecido como advogado e inscrito oficialmente nos quadros da OAB.
 
Em 2018, foram promulgadas as Leis nº. 13.628 e 13.629 que, respectivamente, inscreveram Luiz Gama no Livro dos Heróis da Pátria e o declaram como Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil.
 
Aqui um destaque: pense que milhares de pessoas foram tolhidas de apreciar a história de um herói nacional, que ironia!
 
Em 29 de junho de 2021 recebeu da Universidade de São Paulo o título de doutor honoris causa, que é concedido “a personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído, de modo notável, para o progresso das ciências, letras ou artes; e aos que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade, o País, ou prestado relevantes serviços à Universidade”. Por exemplo, a USP concedeu esse título a Nelson Mandela em 2000.
 
Viva Luiz Gama, o maior advogado brasileiro!
 
[1] Artigo Luiz G. P. Gama, ao Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871, extraído do livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, organização e notas introdutórias da professora Dra. Ligia Fonseca Ferreira. Página 199.
 
[2] Tornou-se uma grande referência para o feminismo negro.
 
[3] Trecho extraído do Livro “Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça Ferreira, página 306, recuperado de https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116741”  na qual ela faz referência a Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça.
 
[4] E aqui vale lembrar que a existência destes tipos de crimes visava a aplicação de uma política vingativa e punitiva para saciar a sede e o ressentimento dos escravistas que perderam a “sua propriedade”, o que mais tarde ficou conhecido como “encarceramento em massa”.
 
[5] Introduzido posteriormente ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Código de Processo Criminal de 1832.
 
[6] Artigo Foro da Capital, Radical Paulistano, 29 de julho de 1869, extraído do livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, organização e notas introdutórias da professora Dra. Ligia Fonseca Ferreira. Página 134.

*Artigo publicado na Ponte Jornalismo, por OutrasPalavras