Refletir sobre o estatuto da imagem na contemporaneidade é a proposta de Giselle Beiguelman em seu novo livro, Políticas da Imagem: Vigilância e Resistência na Dadosfera, lançamento da Ubu Editora. A artista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e colunista da Rádio USP (93,7 MHz), reúne em seis ensaios a pesquisa que, como ela própria define, “vem gestando” há mais de duas décadas.
 
“Várias questões foram abordadas em curadorias e obras artísticas que realizei. Mas o livro veio de uma necessidade de sistematizar as particularidades do nosso tempo”, afirma Beiguelman. “Quero compartilhar uma reflexão sobre o aumento exponencial da presença de imagens invisíveis em nosso cotidiano, imagens que nos olham e nos rastreiam, como o reconhecimento facial, e que são legíveis apenas por máquinas. Ou como os sistemas de escaneamento corporal, a disparada da sociabilidade por imagens e sua conversão em lugar de exercício da política.”
 
Ainda em pré-lançamento, o livro Políticas da Imagem já vem despertando o interesse de estudantes, professores, pesquisadores de cinema, fotografia, audiovisual, artes e também de estudiosos de outras áreas. Está em primeiro lugar em vendagem na Amazon em três categorias: Telecomunicações, Redes Sociais e Criptografia. A edição Kindle já está sendo lançada e a versão impressa chega às livrarias no dia 2 de agosto, segunda-feira.
 
“As imagens tornaram-se as principais interfaces de mediação do cotidiano. Ocupam a comunicação, as relações afetivas, a infraestrutura e os corpos via sistemas de escaneamento e aplicativos diversos.”
 

 

Capa do novo livro de Giselle Beiguelman (Foto: Reprodução)

O livro reúne seis ensaios inéditos que debatem diferentes aspectos das políticas da imagem na atualidade, apontando os vínculos com as novas tecnologias, como a Inteligência Artificial e as práticas artísticas e ativistas. “De uma forma sintética, cada um dos ensaios aborda um tema específico, analisando as transformações do olhar, as estéticas da vigilância, a vida urbana mediada por imagens, as novas formas de exclusão – como o racismo algorítmico –, a cultura da memória do tempo do digital e a pandemia das imagens do coronavírus no Brasil e no mundo”, explica Giselle Beiguelman. “Contudo, compartilham um pressuposto comum. As imagens tornaram-se as principais interfaces de mediação do cotidiano. Ocupam a comunicação, as relações afetivas, a infraestrutura e os corpos via sistemas de escaneamento e aplicativos diversos.”
 
A autora ressalta que, ao falar em políticas da imagem, não está citando apenas as associações entre política e imagem. “Observo também a sua conversão em um dos principais campos das tensões e disputas da atualidade, onde se cruzam poderes, devires, narrativas e resistências da dadosfera.” Beiguelman observa que as reflexões no livro dialogam com “obras de artistas e pensadores, de Eisenstein a Antonioni, de Rejane Cantoni e Lucas Bambozzi a Harum Farocki, passando por Adam Harvey e Trevor Paglen, entre muitos outros”.
 
“No YouTube, no Instagram, no TikTok ou no que vier, outros regimes estéticos fluem. Não são os regimes consolidados nas escolas de cinema e de artes e rompem cânones de estilo e mercado.”
 
Olhar Além dos Olhos é o ensaio que abre o livro. Beiguelman faz uma análise detalhada sobre a história do cinema pontuando cenas, personagens e pensadores. “Desde o Renascimento, as imagens estiveram diretamente relacionadas a instâncias de classe, gênero e poder político, reservadas primeiramente a figuras sagradas, reis, aristocratas e papas e, depois, a políticos e burgueses abastados”, explica. “Ao longo do século 20, as comunicações de massa expandiram o raio de quem podia se transformar em imagem publicada e passível até de ser arquivada. Mas, apenas no século 21, com a câmera digital e a internet, é que se pode falar em multiplicação e em diversificação em grande escala do espectro social e cultural dos registros imagéticos.” E constata: “No YouTube, no Instagram, no TikTok ou no que vier, outros regimes estéticos fluem. Não são os regimes consolidados nas escolas de cinema e de artes e rompem cânones de estilo e mercado. O protagonista dessa história é o celular dotado de câmera e com acesso à internet.”
 
No ensaio Dadosfera, Beiguelman discute a cultura do compartilhamento que se cruza com a cultura da vigilância. “Somos rastreáveis pelo que compartilhamos: de conteúdos próprios às nossas reações a conteúdos políticos, artísticos e fatos cotidianos.” Ação que o mercado utiliza para acumular dados sobre as pessoas com seus gostos, hábitos, comportamentos para direcionar seus produtos e propagandas. Também esclarece sobre o reconhecimento facial, que utiliza uma tecnologia que é um dos pilares da Inteligência Artificial.
 
Ágora Distribuída leva o leitor a entender e a decifrar a sociedade e o mundo contemporâneo com a interconexão dos objetos às redes e toda a reviravolta tecnológica. “Se, ao longo dos anos 1990, especialistas discutiam como apropriar-se das redes para tornar a cidade mais interativa, hoje, com a capitalização da tecnologia no tecido social, a aposta está em como utilizá-las para interferir no seu cotidiano e torná-las mais participativas. Afinal, a questão central não é mais como dar acesso, interatividade ou tecnologia em si, mas como potencializar o uso crítico e criativo da tecnologia.”
 
“Não por acaso ocorrem tantos erros de identificação de pessoas negras por sistemas de reconhecimento. Esse é o mote do documentário Coded Bias, de 2020.”
 
O racismo algorítmico é um dos temas abordados no quarto ensaio, Eugenia Maquínica. “Não porque o algoritmo possa ser em si mesmo preconceituoso. Mas porque o universo de dados que o construiu reflete a presença do racismo estrutural”, esclarece Beiguelman. “Não é por acaso, portanto, que ocorrem tantos erros de identificação de pessoas negras por sistemas de reconhecimento. Esse é o mote do documentário Coded Bias, de 2020.” Dirigido por Shalini Kantayya, o filme estreou no Festival Sundance de Cinema, está na Netflix e gira em torno do viés racista.
 
Em Memória Botox, a autora compõe um retrato da sociedade contemporânea viajando entre as últimas décadas. “No contexto da cultura das redes, é paradoxal essa abordagem cenarizada do passado que tende a transformar o momento em monumento ao presente que não foi”, comenta. “Por um lado, vivemos um estado de overdose documental, registrando compulsivamente nosso cotidiano. Por outro, submergimos na impossibilidade de acessar a memória, atrelados à lógica das timelines que se ordenam nas redes sociais, sempre a partir do mais atual. Tenho dito com certa recorrência que o celular com câmera se transformou numa espécie de terceiro olho na palma da mão, que escaneia a vida continuamente.”
 
No sexto e último ensaio, Políticas do Ponto Br ao Ponto Net, a autora faz uma análise sobre a covid-19, destacando também a pandemia das imagens. “O fato é que, em um momento como o da pandemia do coronavírus, a compreensão de um ecossistema planetário, no qual meio ambiente, saúde pública e as dinâmicas socioeconômicas e culturais estejam contempladas, tornou-se urgente”, analisa. “A discussão estética, nesse contexto, é igualmente central. Pandemia global, a covid-19 é também uma pandemia de imagens. Nela se consolidou um novo vocabulário visual, fundado em estéticas da vigilância e da extroversão da intimidade, cruzando a aceleração do cotidiano pela digitalização da vida, com a perda de horizontes plasmada pela resiliência da covid-19.”
 
Nesse ensaio, Beiguelman faz também uma análise sobre as estratégias de Jair Bolsonaro para ganhar as eleições presidenciais. “É na imagem, e não a partir dela, que os embates se projetam socialmente. Na explosão de fotos, vídeos e muitos memes que desembocam rapidamente nas redes, a imagem se converte em um dos territórios de disputa mais importantes da atualidade”, explica. “Bolsonaro e seus apoiadores introjetaram rapidamente essa dinâmica, um dos ingredientes mais importantes de sua receita de sucesso rumo ao Palácio do Planalto, calibrados pelas redes sociais.”

Serviço:
Políticas da Imagem: Vigilância e Resistência na Dadosfera, de Giselle Beiguelman, Ubu Editora, 224 páginas, R$ 59,90 (impresso) e R$ 34,90 (e-book).

Publicado originalmente no Jornal da USP