Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história.
Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento

Memória e história podem e devem ser consideradas partes indissociáveis do longo fio que tece nossa malha cultural, nossa identidade. É a partir delas que nos estruturamos, seja como indivíduos, seja – de uma forma muito mais ampla – como país. Qualquer um que um dia perdeu fotos antigas ou um velho e importante filme gravado em super-8 ou sem querer deletou todo seu álbum de fotos no smartphone sabe a dor que dá. Era a história que se esvanecia, deixando para a memória a tarefa de trazer de volta, em reminiscências cada vez mais fluidas, o que não existe mais. Agora, imagine se perder, literalmente da noite para o dia, por mais que alertas tivessem sido dados, cerca de quatro toneladas de documentos e filmes históricos, parte essencial da memória cinematográfica brasileira. Pois foi exatamente isso o que aconteceu na noite do último dia 29 de julho, quando as chamas consumiram três salas – cerca de 300 metros quadrados – de um galpão da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo. Não, o fogo não queimou a sede da Cinemateca, na Vila Clementino, quase do outro lado da cidade, como chegou a se informar enquanto a fumaça subia. Isso importa? Por um lado, sim – afinal, o prédio continua lá, intacto e abandonado, como um símbolo em concreto da atual situação da cultura brasileira.

 

Localizado na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, galpão da Cinemateca incendiado no dia 29 de julho guardava material audiovisual produzido pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP (Foto: Foto: Fotos Públicas)

Por outro lado, foi o nome “Cinemateca Brasileira” que ardeu naquela quinta-feira. Mais: foi um pedaço considerável de nossa memória e de nossa história audiovisual – fios indissociáveis, lembram? –, até da nossa memória afetiva pode-se afirmar, que queimou noite adentro. Naquele galpão estavam parte dos arquivos da falecida Embrafilme e do Instituto Nacional do Cinema, documentos e filmes de Glauber Rocha, parte do acervo de filmes nacionais e estrangeiros da Pandora Filmes, matrizes de cinejornais como o icônico Canal 100, filmes domésticos – mas não menos importantes para nossa história cultural – e uma parcela considerável do acervo da produção audiovisual, em 16 mm e 35 mm, de alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. E pior: muitos filmes de nitrato, um alimento e tanto para as chamas. Todos os fogos, o fogo, escreveu o argentino Julio Cortázar. Todos os fogos, o fogo, ecoou pela Vila Leopoldina até o amanhecer.
 
A professora Maria Dora Mourão, também da ECA e diretora-executiva da Sociedade Amigos da Cinemateca, uma associação sem fins lucrativos que tenta fazer aquilo que a estrutura federal passa ao largo, vai no mesmo diapasão. “Eu fiquei em estado de choque quando vi o incêndio, ver aquele fogo criou um sentimento de desesperança muito grande. Imagine 50 anos de um curso de Cinema sem que uma boa parte da produção dos alunos exista mais. Isso é muito triste. A Cinemateca não só preserva a memória brasileira, mas a cultura de maneira geral.”
 
“Paciente em coma”
 
O incêndio na Cinemateca pode ter várias razões – só a perícia vai determinar –, mas com certeza não pode ser colocado no rol dos “acidentes”. Afinal, acidente é aquilo que acontece sem esperarmos, sem aviso prévio. Não foi o caso do galpão da Cinemateca. Nove dias antes de o fogo assustar a vizinhança da Vila Leopoldina, o Ministério Público Federal em São Paulo alertou o governo federal – responsável pela Cinemateca – do risco de incêndio. O que foi feito? O de sempre, quando o assunto é cultura nesses tempos estranhos: nada. E se materializou a crônica de um incêndio anunciado. “Quando soube do incêndio eu fiquei abismado com a previsibilidade. Sabíamos que a Cinemateca estava em uma situação precária e que a qualquer momento poderia acontecer algo ruim. Mesmo assim, fiquei incrédulo”, lembra o professor Almir Almas, chefe do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA (leia no final deste texto a Manifestação do CTR sobre o incêndio na Cinemateca). “Com certeza, a política de desmonte cultural realizada pelo governo federal é responsável pela situação da Cinemateca hoje”, afirma Almas.
 
E esse “desmonte” ao qual se referiu o professor Almas se reflete no triste e desalentado quadro cultural brasileiro. A Secretaria Especial de Cultura não tem peso e não parece muito interessada em ganhar tônus muscular para lidar com os problemas que vão sendo empilhados à sua frente. Na verdade, política cultural está longe de ser uma prioridade no atual governo. E o sinal já havia sido dado. Quando o Museu Nacional foi tomado pelas chamas, em setembro de 2018, o então candidato que viria a ser eleito afirmou, um tanto desinteressado: “Quer que eu diga o quê? Já queimou”. Fato. Só não vale chamar isso de pragmatismo.
 
Alguns poucos chegaram a ficar minimamente animados quando o governo federal indicou a dublê de ex-namoradinha-do-Brasil e atriz Regina Duarte para a Secretaria de Cultura para substituir o antecessor que tinha, no mínimo, ideias bizarras. Não deu em nada. Como a sua personagem mais famosa, Regina acabou “sendo sem nunca ter sido”. Ficou pouco mais de dois meses na Secretaria e acabou deixando a pasta para, numa saída pela tangente de seu chefe, ir para a Cinemateca. “Gente, ganhei um presente: eu vou fazer Cinemateca”, afirmou ela, esfuziante, em um vídeo ao lado daquele que havia acabado de apeá-la do posto de secretária de Cultura. Ninguém a avisou que não se “faz” Cinemateca. Se cuida de acervo, preserva memória e história, protege, contrata profissionais especializados, isso sim.

Mas nem deu tempo de ela entender o jogo: a “síndrome de Viúva Porcina” atacou outra vez e Regina, de novo, foi sem nunca ter sido. E a Cinemateca continuou à deriva. A Prefeitura de São Paulo – primeiro com João Doria, depois com Bruno Covas – chegou a pedir ao governo federal a transferência da Cinemateca para a gestão municipal. A resposta foi o silêncio. Só para não se dizer que nada foi feito, a Secretaria de Cultura, em um caso clássico de “timing perfeito”, publicou, no dia seguinte ao incêndio, um edital, como lembrou o professor Eduardo Morettin: “A única mudança foi o edital de chamamento para que uma nova organização social, por meio de processo público, administre a Cinemateca com a verba sabidamente insuficiente, de R$ 10 milhões . E o mínimo deveria ser R$ 20 milhões.”

Alguns poucos chegaram a ficar minimamente animados quando o governo federal indicou a dublê de ex-namoradinha-do-Brasil e atriz Regina Duarte para a Secretaria de Cultura para substituir o antecessor que tinha, no mínimo, ideias bizarras. Não deu em nada. Como a sua personagem mais famosa, Regina acabou “sendo sem nunca ter sido”. Ficou pouco mais de dois meses na Secretaria e acabou deixando a pasta para, numa saída pela tangente de seu chefe, ir para a Cinemateca. “Gente, ganhei um presente: eu vou fazer Cinemateca”, afirmou ela, esfuziante, em um vídeo ao lado daquele que havia acabado de apeá-la do posto de secretária de Cultura. Ninguém a avisou que não se “faz” Cinemateca. Se cuida de acervo, preserva memória e história, protege, contrata profissionais especializados, isso sim.
 
Mas nem deu tempo de ela entender o jogo: a “síndrome de Viúva Porcina” atacou outra vez e Regina, de novo, foi sem nunca ter sido. E a Cinemateca continuou à deriva. A Prefeitura de São Paulo – primeiro com João Doria, depois com Bruno Covas – chegou a pedir ao governo federal a transferência da Cinemateca para a gestão municipal. A resposta foi o silêncio. Só para não se dizer que nada foi feito, a Secretaria de Cultura, em um caso clássico de “timing perfeito”, publicou, no dia seguinte ao incêndio, um edital, como lembrou o professor Eduardo Morettin: “A única mudança foi o edital de chamamento para que uma nova organização social, por meio de processo público, administre a Cinemateca com a verba sabidamente insuficiente, de R$ 10 milhões . E o mínimo deveria ser R$ 20 milhões.”
 
“Tudo aquilo que representa a história, não importa se concordamos ou não, precisa ser um objeto de reflexão. Perdemos uma parte substantiva, por exemplo, de toda a política pública de apoio ao cinema no Brasil. Isso é irreversível. O poder público é muito descuidado em relação àquilo que é patrimônio. Então há uma certa indiferença e lentidão para conseguir soluções, o governo não tem pressa”, afirma o também professor da ECA Carlos Augusto Calil, que foi diretor da Cinemateca entre 1987 e 1992 e atualmente é o presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca. “A crise da Cinemateca persiste há mais de um ano. O problema é que não tem funcionário especializado na sede para o devido cuidado. Está fechada. A Cinemateca hoje é como se fosse um paciente em coma, que vive por aparelhos”, apontou Calil, indo além e lembrando, mais uma vez, o que representou o incêndio também para a história e memória da ECA.
 
“É como se páginas do nosso currículo tivessem sido eliminadas, como se o departamento da ECA não tivesse existido naquele período. É muito triste, sobretudo para os alunos, porque é o trabalho e a dedicação deles. Não importa a quantidade do material perdido, há a sensação de que a vida não foi vivida.”
 
Talvez essa sensação acre, com cheiro de fumaça e cinzas, à qual o professor Calil se referiu permaneça ainda um tempo pairando no ar. Mas vai passar, porque a vida precisa ser vivida e não pode ser um filme triste.

Abaixo nota publicado pelo Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

“A Cinemateca sobreviverá”
 
O Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo vem a público se manifestar em relação ao incêndio ocorrido em uma das sedes da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Desde a criação de nossos cursos, há mais de 50 anos, dedicamos nossos esforços para tornar a Cinemateca uma das principais referências mundiais em preservação, com a participação ativa de nossos docentes e discentes, tanto na sua articulação quanto na sua manutenção e gerenciamento, bem como no intercâmbio de filmes e equipamentos e na realização conjunta de cursos de formação. Sempre entendemos a sua importância e lutamos continuamente pela existência dessa instituição e de sua função de salvaguardar, preservar e difundir a nossa memória histórica audiovisual em todas as suas esferas de atuação. O incêndio que atingiu o galpão na sede da Vila Leopoldina é desastroso: rica e extensa documentação textual relativa às políticas públicas para o setor cinematográfico desde os anos 1960 se perdeu, assim como equipamentos e filmes em quantidade ainda incerta, muitos deles pertencentes ao nosso departamento, segundo as primeiras informações que nos chegaram. Além de condenável, em todos os sentidos, esse acontecimento já previsível poderia ter sido evitado, se a política pública federal dialogasse com a sociedade civil e tomasse as providências necessárias apontadas por várias entidades e profissionais do setor. Mas, ao contrário, optou por protelar uma solução deixando a Cinemateca agonizando e correndo o risco de destruição do acervo, o que acabou acontecendo com parte dele em função do incêndio. O preço pago por tal desmonte é incalculável e as perdas serão sentidas pelas gerações de agora e do futuro. Diante dessa calamidade, expressamos nossa profunda indignação quanto ao descaso e ao abandono dispensados pela Secretaria Especial de Cultura do governo federal à Cinemateca Brasileira. Esse duro golpe que sofremos no dia 29 de julho passado não nos desviará da tarefa que se impõe: junto com a sociedade civil, é preciso redobrar nossa luta para que consigamos reverter esta situação calamitosa. Para evitar novas tragédias, é imperioso que o governo federal assuma suas responsabilidades e tome medidas urgentes para que a Cinemateca seja reaberta. A Cinemateca Brasileira sobreviverá! 
 
Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

*Publicado originalmente no Jornal da USP
**Por Marcello Rollemberg, Com entrevistas de Juliana Alves