Pequim pode se beneficiar do caos na Europa, acredita especialista russa. Desvio de foco militar dos EUA da Ásia para a Europa pode ser vantagem.

Nesta terça-feira (1º), a China resolveu se pronunciar sobre a operação militar russa na Ucrânia. Cautelosos, agentes governamentais de Pequim celebraram as negociações entre russos e ucranianos na cidade belarussa de Gomel e depois se disseram extremamente preocupados com os danos aos civis na Ucrânia.

A posição discreta da China indica que o país pode se beneficiar do contencioso na Europa, conforme observa a professora de Estudos Orientais e pesquisadora associada do Centro de Estudos Chineses Integrados e Projetos Regionais do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO, na sigla em russo) Anna Kireeva.

As decisões estratégicas dos americanos, sobre onde investirão seus recursos políticos e militares, são sempre uma ameaça a regiões inteiras do globo. Foi assim desde que se voltou contra países do Oriente Médio, desde o fim da Guerra Fria. Agora, com a retirada de tropas do Afeganistão, a destruição da Líbia e o fracasso no Iraque, o objetivo era cercar a China por todos os lados. Mas Joe Biden não esperava pela eclosão do conflito no norte da Europa. 

Segundo a especialista, a operação militar da Rússia na Ucrânia exige que os EUA e seus aliados invistam recursos políticos e militares no continente europeu, desviando o foco da região asiática.

Desde o governo Barack Obama, os EUA têm declarado a intenção de reorientar os seus recursos da política externa e de defesa para a Ásia, em detrimento de regiões como Europa ou Oriente Médio. Foi assim que Washington reativou o Diálogo de Segurança Quadrilateral (QUAD) entre EUA, Japão, Índia e Austrália e mesmo a retirada de tropas dos EUA do Afeganistão, para focar na contenção da China.

Soldados taiwaneses fazem saudação durante celebrações do Dia Nacional em frente ao Edifício Presidencial em Taipé, Taiwan
“O foco na Europa faz com que seja mais difícil a repartição de recursos entre as regiões asiáticas e europeia por parte dos EUA e seus aliados”, acredita Kireeva.

“Sem dúvida alguma, essa situação é vantajosa para a China, uma vez que ela encontrará menos resistência por parte dos Estados Unidos e seus aliados na região do Indo-Pacífico, o que garante mais liberdade de ação na Ásia para a realização de projetos como a Rota da Seda.”

No entanto, a especialista acredita que, no médio e longo prazo, os EUA devem voltar a investir recursos na sua política de contenção da China, que avança para o primeiro lugar entre os países mais ricos do mudo, superando os EUA. A Rota da Seda é um megaprojeto global de investimentos chineses em diversos países do mundo com fim de consolidar parcerias comerciais.

Bandeiras da República Popular da China e dos EUA em um poste de iluminação perto do Capitólio dos EUA, em Washington, EUA
“É questionável […] que isso imponha obstáculos sérios à execução da estratégia norte-americana para a região do Indo-Pacífico no longo prazo”, acredita Kireeva. “Isso pode acontecer somente em caso de formação de uma aliança político-militar oficial e abrangente entre Rússia e China.”

Taiwan não é a Ucrânia, Taiwan é China

Especialistas questionam se a operação militar russa na Ucrânia poderia abrir um precedente que encorajaria Pequim a resolver suas diferenças com Taiwan pela via militar.

A independência de Taiwan foi proclamada após grupos políticos derrotados durante a Revolução Chinesa fugirem para a ilha, em 1949. Pequim considera a ilha uma província rebelde e insiste na sua reincorporação ao país.

Para Kireeva, os cálculos de Pequim sobre os efeitos de uma operação militar em Taiwan podem ter sido alterados pelo conflito entre Rússia e Ucrânia. “De fato, podemos sugerir que uma solução da questão de Taiwan baseada na força poderá ser avaliada por Pequim de forma mais realista após as ações russas em relação à Ucrânia. Mas devemos lembrar que as questões de Taiwan e Ucrânia são bastante diferentes”, aponta a especialista.

Segundo ela, “se os EUA e a OTAN insistem que a resposta às ações russas não será militar, mas sim na forma de sanções econômicas, o caso de Taiwan é outro”. O próprio presidente dos EUA, Joe Biden, declarou que Washington estaria disposto a defender Taiwan em caso de conflito com a China.

O presidente Joe Biden escuta, enquanto se encontra virtualmente com o presidente chinês Xi Jinping, na Sala Roosevelt da Casa Branca em Washington
“A intervenção direta dos EUA nesse conflito, assim como a possível participação de aliados dos EUA, como Japão e Austrália, levaria a uma situação totalmente diferente, que poderia, de fato, levar a um conflito direto e muito sério entre EUA e China – um cenário muito arriscado para Pequim”, acredita Kiereeva.

O risco de uma invasão chinesa a Taiwan como consequência da crise na Ucrânia foi levantado pelo primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson. Em resposta aos comentários de Johnson, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China Hua Chunying rejeitou a correlação.

“Taiwan não é a Ucrânia”, disse Hua. “Taiwan sempre foi uma parte inalienável da China. Isso é um fato histórico legal e irrefutável.”

A porta-voz lembrou, no entanto, que “forças estrangeiras” agem, tanto na Ucrânia quanto em Taiwan, para promover uma “guerra cognitiva” e afetar a moral das sociedades.

Inimigo comum

A posição da China em relação à operação militar russa na Ucrânia é determinada pelo fato de que Moscou e Pequim são alvos de políticas de contenção conduzidas pelos EUA e seus aliados.

“A China se viu em uma situação complicada, uma vez que, por um lado, ela está ligada à Rússia por laços de uma parceria estratégica e compartilha muitas das preocupações de Moscou com a política dos EUA”, disse Kireeva. “Mas, por outro lado, a China não tem interesse em ser incluída em um conflito com o Ocidente em função da Ucrânia.

“Nesse contexto, “a China tenta encontrar uma posição de equilíbrio e neutralidade que não seja interpretada como um apoio incondicional à Rússia, nem como uma condenação a Moscou”.

A especialista lembra que, após a visita de Vladimir Putin à China em fevereiro deste ano, Pequim se opôs a expansão da OTAN rumo ao leste e apoiou as garantias de segurança solicitadas por Moscou em relação à segurança europeia.

A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Hua Chunying, reage durante a coletiva de imprensa diária no Ministério das Relações Exteriores em Pequim
Além disso, em declaração no dia 24 de fevereiro, “o Ministério das Relações Exteriores da China acusou os EUA de não respeitarem eles próprios os princípios de soberania e integridade territorial dos Estados”, relatou Kireeva.

No entanto, é necessário lembrar que as relações econômicas com os países ocidentais são vitais para os interesses chineses e que Pequim “não tem interesse em sacrificar essas relações por causa do conflito russo-ucraniano”.

Por isso, a especialista acredita que a Rússia não deve esperar um aprofundamento do apoio chinês para além do fornecido atualmente.

“A China tenta manter uma posição neutra que reflita a fórmula ‘nem sempre juntos, mas nunca um contra o outro’. Mas, na prática, manter o equilíbrio em um conflito tão sério entre a Rússia e o Ocidente não pode ser considerada uma tarefa fácil”, concluiu a especialista russa.

Da Sputnik News