PCdoB: o Centenário de um projeto político transformador
O Socialismo, entendido como o processo histórico de transição entre o capitalismo existente e o comunismo futuro, é o contraponto, a antítese do capitalismo. É para cumprir essa tarefa histórica que foram criados e existem os Partidos Comunistas.
Nem todo mundo se dá a devida conta do que é organizar um Partido Comunista em qualquer lugar do mundo no qual o capitalismo é a formação econômica e social predominante. Aliás, por pressuposto filosófico elementar, partidos comunistas foram e são organizados exatamente pela própria existência do capitalismo, nos países nos quais a revolução socialista ainda não foi feita ou retrocedeu, e mesmo em nações como a China, Vietnã, Cuba, dentre outras, que se confrontam com o capitalismo em tempo integral, seja nos próprios processos de construção interna, seja nas suas relações externas. O Socialismo, entendido como o processo histórico de transição entre o capitalismo existente e o comunismo futuro, é o contraponto, a antítese do capitalismo. É para isso que foram criados e existem são os Partidos Comunistas. Tudo o mais, as diversas lutas sociais e institucionais, as variáveis todas da luta política, servem para acumular forças para essa tarefa histórica.
Tendo, portanto, a tarefa histórica de organizar o povo, a massa trabalhadora, o proletariado, é natural, ainda que não desejável, que todos os ódios da classe dominante se voltem contra o Partido Comunista, contra homens e mulheres do povo que ousam se levantar em luta contra a opressão capitalista. Um sistema que só sobrevive às custas de uma brutal exploração sobre a força de trabalho, extraindo de trabalhadores e trabalhadoras enormes riquezas na forma de produtos de todos os tipos, em troca de salários extremamente baixos e buscando a todo tempo demolir as poucas conquistas obtidas, em termos de ganhos salariais, redução de jornadas, leis e serviços públicos de atendimento às necessidades mais imediatas do povo. Sem falarmos aqui no desemprego, na miséria, elementos estruturais do capitalismo de modo geral, inclusive nos países mais desenvolvidos dentro do próprio capitalismo.
É natural também que a própria força do capital seja utilizada em parte para articular uma poderosa máquina de disseminação ideológica voltada para convencer a própria massa trabalhadora de que ele, o capitalismo, é a única sociedade econômica, política e socialmente viável. A cooptação de parcelas dos próprios trabalhadores para a defesa da manutenção do capitalismo se dá, acima de tudo, pelo convencimento de que é possível a qualquer pessoa “se dar bem”, acumular patrimônio, enriquecer, bastando para isso ter bastante competência. Essa manipulação ideológica busca também confundir capitalismo com liberdade e democracia e que qualquer tentativa de com ele romper e construir o socialismo, uma nova sociedade estruturada em novas relações de produção e distribuição equilibrada da riqueza coletivamente produzida, é um erro, é ineficaz economicamente e contra a liberdade individual.
Historicamente falando, a luta da classe dominante contra a superação do capitalismo não é nenhuma novidade. Todas as formações econômicas e sociais anteriores estruturadas com base no controle da riqueza por uma minoria e que foram confrontadas de algum modo pelas classes e setores sociais oprimidos, utilizaram a cooptação ideológica por um lado, e a força repressora do Estado por outro. Quando o chamado “tecido social” se rompe, ou ameaça ser rompido pela ascensão de novas forças políticas que questionam a ordem vigente, e o convencimento ideológico é superado pela necessidade objetiva de organizar um novo modo de vida em função de crises intensas, logo, um novo tipo de economia, as classes dominantes sempre recorreram à força bruta, à violência em escala generalizada para tentar barrar as mudanças. No capitalismo, desde a sua transformação em sistema predominante no mundo, isso tem sido a regra e não a exceção. Logo, na história da formação dos partidos e movimentos operários e sua evolução para Partidos Comunistas/Partidos Revolucionários, do século XIX e até este momento, inúmeros foram os momentos nos quais o risco do rompimento da ordem capitalista sob a efervescência da massa trabalhadora em luta contra o capital, levaram a classe capitalista a recorrer às mais amplas barbaridades físicas e ideológicas contra principalmente o movimento comunista. Então, novamente, é preciso compreender esse contexto para entender de modo abrangente, como é importante, fundamental, essencial, o Partido Comunista do Brasil chegar ao seu centenário neste 25 de Março de 2022.
Tentativas de extinção do Partido aqui no Brasil não faltaram, da eliminação física de militantes e dirigentes, associada à imposição de uma dura clandestinidade por mais de sessenta dos nossos cem anos de existência, bem como pela vergonhosa capitulação de setores do próprio partido que enveredaram para o chamado “liquidacionismo” – a extinção pura e simples da legenda revolucionária – ou ainda para a transformação do partido em uma força amorfa, meramente eleitoral, desprovida de sua essência transformadora, revolucionária. Como esses fenômenos são recorrentes, espalhados ao longo dos cem anos, faço um recorte histórico para me concentrar em algumas dessas principais tentativas de extermínio do nosso Partido, através da repressão estatal, combinada com a perseguição ideológica movida pela classe dominante através dos seus principais instrumentos de comunicação de massa. O destaques abaixo requerem algum conhecimento geral da história do Partido, para evitar uma longa descrição dos acontecimentos apontados, sendo também sínteses extremamente curtas, mas que nos ajudam a compreender a ideia geral aqui apresentada:
- A repressão política na República Velha, durante o governo do presidente Epitácio Pessoa, impôs a ilegalidade ao recém fundado Partido Comunista do Brasil, com a sigla PCB, fundado em 25 de Março de 1922. Em julho daquele ano, o presidente decretou “Estado de Sítio” por um mês, em função das agitações trabalhistas crescentes e do nascente Movimento Tenentista, após o episódio conhecido como a Revolta do Forte de Copacabana. A decretação tinha intensão transparente de combater qualquer tipo de possibilidade de “agitação política” entre o jovem operariado urbano daquela época. Essa ilegalidade/clandestinidade só seria finalizada em 1945 após o fim da ditadura do Estado Novo implantada por Getúlio Vargas;
- A repressão política deflagrada por Getúlio Vargas entre 1935 e 1945, após a heroica, mas fracassada rebelião armada organizada pela Aliança Nacional Libertadora, liderada por Luiz Carlos Prestes, da qual o então PCB era uma das forças motrizes. Debelada a revolta, o governo de Vargas desencadeou uma enorme perseguição política ao Partido e aos membros da Aliança, com a prisão em massa de dirigentes e militantes comunistas, inclusive de Prestes, e a deportação de Olga Benário, sua companheira, para a Alemanha nazista. Aquela repressão se intensificou em 1937 após a decretação do chamado Estado Novo, quando Getúlio fechou todos os partidos, o Congresso Nacional e destituiu todos os governadores de estados. Na prática, o partido foi reduzido a algumas centenas de militantes e dirigentes que haviam conseguido escapar à repressão, atuando de modo disperso, o que levou à reorganização do PCB na histórica Conferência da Mantiqueira em 1943. Em 1945, extinto o Estado Novo, o Partido foi legalizado e galvanizou as esperanças dos trabalhadores e trabalhadoras, ficando em terceiro lugar na eleição presidencial daquele ano, elegendo uma combativa bancada de deputados e senador Constituintes, expandindo sua influência política ainda mais entre 1946 e 1947;
- A cassação do registro do Partido em 1947 pelo Tribunal Superior Eleitoral e dos mandatos dos parlamentares federais, estaduais e municipais em 1948, durante a vigência do governo do ultraconservador e repressivo presidente Eurico Gaspar Dutra, além dos ataques ao Partido e ao voto popular, inseria o Brasil na lógica da “Guerra Fria”. O alinhamento automático do governo Dutra com os interesses dos EUA não tolerava a existência legal de um Partido Comunista. A legalidade só seria retomada em 1985, após o fim da ditadura militar de 1964;
- A partir de meados dos anos 50, em especial após a realização do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (1956) à época liderada por Nikita Krushev, o movimento comunista enfrentou uma intensa polêmica ideológica que resultou na sua fragmentação política dali em diante. Essencialmente, o PCUS liderou um movimento internacional de acomodação dos interesses Soviéticos e dos Estados Unidos, no âmbito da Guerra Fria. Foram disseminadas no movimento comunista as ideias de que seria possível chegar-se ao socialismo pela via institucional e possibilidade de convivência mútua com o capitalismo, expressa por Krushev na palavra de ordem “Coexistência Pacífica”. Ora, se a coexistência seria pacífica, nos países capitalistas não haveria mais a necessidade de os Partidos Comunistas lutarem para substituir o capitalismo pelo socialismo, muito menos pela via revolucionária. Mudava-se a partir dali a essência e o papel histórico dos PC’s que não haviam chegado ao poder, como era o caso do Brasil. O impacto disso no então PCB foi gigantesco, estabelecendo uma cisão interna que conduziria à Reorganização do Partido Comunista do Brasil (sob a sigla PCdoB) em fevereiro de 1962, movimento conduzido por militantes e dirigentes comunistas de longa data, como João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Elza Monerat, Diógenes Arruda, dentre outros (as) que não aceitaram esse verdadeiro liquidacionismo ideológico, expresso na constituição de um novo partido, o Partido Comunista Brasileiro, que manteve a sigla PCB, mas adotou um programa essencialmente desprovido do caráter revolucionário que havia norteado até então a vida do Partido desde a sua fundação em 1922. Desde ali, naquele rompimento histórico como reformismo, o PCdoB, ao repor a linha revolucionária que estava sendo rompida, carrega consigo o fio condutor da história do movimento comunista no Brasil;
- Entre 1964 e 1985, a ditadura militar brasileira buscou de diversas maneiras extinguir o PCdoB e as demais forças de esquerda que se levantaram contra ela e seu regime de arbítrio, repressão, censura, torturas, exílios e assassinatos. Da imensa perseguição nas cidades nos anos 60 aos ataques armados contra os comunistas que desenvolviam um intenso trabalho no campo na região do Araguaia junto aos camponeses, entre 1972 e 1974, que resultaram na “Guerrilha do Araguaia”, passando pela “Chacina da Lapa” em 1976, na qual foram mortos Angelo Arroyo e Pedro Pomar, e presos (as) e torturados (as) Elza Monerat, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Joaquim Celso de Lima e Maria Trindade, a política de extermínio da ditadura contra os comunistas causou perdas inestimáveis, mas o partido persistiu, resistiu, sobreviveu. O PCdoB foi a organização política mais atingida pela repressão da ditadura. A grande maioria das organizações surgidas naquele contexto de confrontação com a ditadura foi aniquilada, mas o Partido seguiu organizado, resistindo a mais uma sanha assassina movida pela classe dominante contra si;
- O último grande momento de ataque em larga escala à existência e necessidade dos Partidos Comunistas, inclusive no Brasil, se deu por ocasião da queda da União Soviética e do Bloco Socialista, entre o final dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado. A onda avassaladora que percorreu o mundo diante daquele colapso causou uma reconfiguração imensa nas chamadas “forças de esquerda”. Partidos Comunistas, especialmente na Europa, que haviam tido grande influência entre o povo em diversos países, se extinguiram assumindo formas e programas abertamente antirrevolucionários. Aqui no Brasil, o então PCB transformou-se em “Partido Popular Socialista” abandonando os últimos resquícios da trajetória iniciada em 1922. A pressão ideológica sobre a militância comunista, em escala global e nacional foi imensa. E a despeito do verdadeiro tsunami que devastou boa parte do movimento comunista, o PCdoB manteve-se íntegro, garantindo sua essência revolucionária, movimento que foi consignado no histórico 8º Congresso (1992), realizado sob o lema “O Socialismo Vive”;
Nestes 30 anos que separam o 8º Congresso e a chegada do PCdoB ao seu centenário, novas pressões de toda ordem foram realizadas sobre a militância comunista. E continuarão a ser exercidas, quanto a isso não tenhamos nenhuma dúvida. Velhas pressões como as tentativas de mudar o nosso nome, nosso símbolo e nossa cor, e/ou para a adoção de um programa meramente adaptativo ao capitalismo vigente, transformando a legenda centenária em um mero aglomerado eleitoreiro, um espaço para interesses eleitorais de certas personalidades e grupos específicos que atuam no seio da sociedade e que entraram para o Partido em momentos de ascensão das lutas populares contra o neoliberalismo, por um lado, e da própria luta institucional, com o peso muito grande das disputas eleitorais, por outro. Essas pressões pela extinção ou pura e simples adesão ao capitalismo a partir de uma visão reformista que prega a sua impossível “humanização”.
O elemento primordial, de fundo estratégico e que mantém a necessidade da existência dos Partidos Comunistas pelo mundo, e a do Partido Comunista do Brasil, é a correta leitura sobre o fato de que o capitalismo não oferece mais à grande maioria do povo quaisquer perspectivas de construção de uma vida adequada, longe da pobreza e da exploração, no Brasil e no mundo. As crises sucessivas do capitalismo, sejam elas as econômicas propriamente ditas, mas também as intensas disputas entre o imperialismo e os povos, e as próprias contradições entre as nações imperialistas, criaram uma situação de permanente instabilidade econômica, crises políticas e guerras localizadas, cujos resultados mais gerais tem sido uma ainda maior concentração da riqueza global em poucas mãos enquanto a pobreza e a destruição de economias inteiras se espalham avassaladoramente. Não é a toa que nestas semanas que antecedem o nosso Centenário, o mundo se defronta com o temor de um novo conflito global, a partir da crise envolvendo os Estados Unidos/União Europeia/Otan e a Rússia, tendo a Ucrânia como verdadeiro “peão” no xadrez internacional. Não é a toa que a economia Brasileira encontra-se em frangalhos, ainda mais dependente e enfraquecida sob o governo da extrema direita, desde o golpe de 2016 e a ascensão à presidência da república do nefasto Jair Bolsonaro.
Sempre que me perguntam se o socialismo é um projeto viável, eu devolvo a pergunta: o capitalismo é viável? É claro que, sendo o sistema dominante, a resposta parece óbvia, mas a gente não analisa um sistema apenas pelo tempo que ele dura, mas principalmente a quem ele beneficia. Com metade da população global passando fome, com as sequentes crises de todo tipo que resultam em conflitos armados intensos, e com um Brasil que segue sendo um dos países mais desiguais do mundo, tenho comigo que a existência e permanência do Partido Comunista do Brasil, além de uma necessidade histórica pelo fato de o capitalismo ainda ser predominante, carrega consigo a esperança de termos um país melhor a partir de transformações profundas, que é o que nos propomos a realizar com a construção do Socialismo. A célebre frase de Rosa de Luxemburgo “Socialismo ou Barbárie”, inspirada em Engels, hoje faz cada vez mais sentido. Porque a barbárie é a realidade para boa parte do nosso povo, cotidianamente. A barbárie é a realidade da guerra civil não declarada ao povo pobre das periferias, é a realidade do desemprego e das crises econômicas sucessivas, que criam nas grandes cidades verdadeiros campos de refugiados internos, que sequer conseguem moradia em uma favela e ocupam as ruas, as praças, os baixos dos viadutos, num cenário social catastrófico. Se a barbárie aí está, é contra ela que nos levantamos. Se ela é causada pelo capitalismo, é contra ele que lutamos. Enquanto a iniquidade capitalista predominar no Brasil e no mundo, o PCdoB e demais partidos comunistas nas suas respectivas nações seguirão essenciais. Somos historicamente essenciais!
Um grande Viva ao nosso Centenário!
Altair Freitas é historiador, diretor da Escola João Amazonas e membro do Comitê Central do PCdoB