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O sentido da arte para Álvaro Cunhal está no povo

14 de junho de 2022

Faz 17 anos que perdemos o revolucionário Álvaro Cunhal. Além de seu legado no coração do povo português, seu humanismo estético está na arte deixada para apreciação.

Faz 17 anos que perdemos o revolucionário Álvaro Cunhal. Além de seu legado no coração do povo português, seu humanismo estético está na arte deixada para apreciação.

Faz 17 anos que o mundo perdeu Álvaro Cunhal, em 13 de junho de 2005. Ainda que um gigante revolucionário do povo português, Cunhal também era um poeta, sempre refletindo sobre arte, mesmo no cárcere, onde não deixou de expressar-se por meio de desenhos. Desta forma, olhar para seus sinuosos desenhos dramáticos e sombrios, retratando seu Portugal sob a ditadura de Salazar, é uma forma de evocar sua luta. Mesmo na escuridão da prisão, enxergava a realidade de seu povo melhor que aqueles que estavam fora dela. A liberdade nem sempre está na possibilidade de ir e vir.

O amigo e camarada Rogério Ribeiro relata de quando acompanhou-o em viagens na apresentação do seu livro «A arte, o artista e a sociedade». “Era comovente ver o seu entusiasmo quando propunha à plateia que ouvisse um pequeno trecho gravado. Uma voz feminina, cantando, elevava-se como uma lâmina aguda ganhando o silêncio da sala, numa breve melodia de rara beleza pela extensão e pela qualidade e timbre da voz. Depois perguntava: Sabem o que ouviram? Não é uma diva, é uma camponesa de Trás-os-Montes num canto de trabalho.

O sentido do «belo» para Cunhal era um motivo de reflexão sobre o sentimento estético diante da vida, da história e da natureza. «O artista é um criador e o belo é em si mesmo um valor estético». 

O debate sobre o compromisso do artista com a luta social é algo indissociável na obra dele. Uma reflexão marxista sobre a arte pode-se dizer.

Com 26 anos já produzia e participava de polêmicas com outros artistas formais e puristas sobre o sentido da arte e sua relação com a vida. Ainda assim, Cunhal respeitava o movimento da “Presença” e suas rupturas com o academicismo. Contra aqueles que entendiam a expressão artista como algo subjetivo e psicológico, alheio à história e à concretude material, ele dizia que não estava «em causa o valor poético mas a atitude social, que através da poesia cantava e comunicava». 

«Pouco conseguida é uma obra de arte que só com a explicação acaba por ser reconhecida como tal» e ainda «mais importante do que aquilo que o artista quis fazer é aquilo que realmente fez».

A participação e utilidade no quadro de vida que então se vivia não apequenava a poesia, antes lhe dava novas e renovadas dimensões. Cunhal carregava o humanismo na arte que, naquele 1939, o fazia perceber a importância do poeta deixar sua torre de marfim diante dos anos dramáticos que se avizinhavam. Os europeus seriam invadidos pelo fascismo de Hitler, Franco, Salazar e Mussolini, e por todas as suas guerras.

É neste quadro que nasce, ou o que se encontrou como resposta o neo-realismo, que como o disse Álvaro Cunhal «está indissoluvelmente ligado à luta pela liberdade e à democracia, contra a ditadura fascista em Portugal.»

Álvaro Cunhal, óleo sobre tela

A vitalidade do movimento neo-realista se estende à poesia, à música, ao teatro, ao cinema, às artes plásticas, tendo como vetor comum não apenas o autor e o esforço pela qualidade do seu trabalho, como queriam os presencistas, como, e cito, «partir de uma visão da sociedade em que o interesse social e humano do artista o conduzia a tomar como objeto da criatividade não o seu eu, antes as classes trabalhadoras, nomeadamente o operariado, os camponeses, os pescadores».

O neo-realismo teve uma participação muito ativa na vida política de Portugal, numa batalha feroz contra a censura e ao regime. Tal foi a força do movimento, que Álvaro Cunhal chega a observar que o fracasso editorial da literatura «oficial», exigia que os autores burgueses falassem mal dos ricos para agradar aos leitores.

Seu compromisso político e artístico, no entanto, não o pouparam de consequências. Os presos políticos enchiam as prisões por todo o mundo. A repressão varria com brutalidade o menor sinal de indignação, e luta, com ódio mortal à inteligência, desprezo pelo conhecimento. Neste ambiente em que nem sussurros de indignação podiam ser emitidos, Cunhal viveu longos anos no cárcere.

Um ambiente opressivo que gerava em oposição mais indignação, esperança, solidariedade  e arte.

Álvaro Cunhal não mais se interessava pelo debate teórico, em meio à realidade da dor do povo. Preferia desenhar, escrever, pintar como meio de sobrevivência espiritual. 

«Desenhos da Prisão» foram executados de 1951 a 1959, nas cadeias da penitenciária de Lisboa, onde Álvaro Cunhal passou sete anos de rigoroso isolamento, e do Forte de Peniche, de onde se evadiu em 3 de janeiro de 1960. A sua publicação, pelas Edições Avante! em Dezembro de 1975, enquadra-se nas iniciativas de recolha de fundos para o Partido Comunista Português.

Um conjunto de desenhos, não realizados em ateliê, de um homem a quem foi retirada a liberdade, numa prolongada prisão em condições desumanas, que encontrou na folha de papel e no lápis, como uma janela aberta para a realidade exterior, inventada e recriada com ternura.

Os sentimentos são expressos na simplicidade das linhas, na tonalidade de claro escuro, na sombra que evidencia um rosto, um perfil, um plano, uma multidão. As figuras de Cunhal nos olham tão eloquentes quanto a camponesa da canção em Trás-os-Montes.

Folheio um parte dos desenhos da prisão expostos por ocasião do centenário de Cunhal, em 2013: