VII Salão do Livro Político mira olhar para o novo espírito do tempo na América Latina
Evento editorial no Tuca reuniu a ex-presidenta Dilma Rousseff e o ex-vice presidente boliviano Álvaro García Linera, assim como Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila. Os novos ventos de esquerda no continente são analisados sob o prisma do cuidado com os golpismos e retrocessos.
“Sem um livro eu não sobrevivo. Eu cheguei a ponto de ler bula de remédio na prisão, por que a compulsão pela leitura era enorme. Depois nós tomamos providências para conseguir, por outros métodos, aqueles livros proibidos, como o Capital [Karl Marx]”.
Este foi o depoimento pungente que a ex-presidenta Dilma Rousseff fez durante a abertura do VII Salão do Livro Político, na noite de segunda-feira (20), no palco principal do Tuca Arena, teatro da PUC-SP.
“Lembro que algumas vezes eles chamavam no presídio a Operação Bandeirantes para fazerem uma batida. Escondíamos os livros sob um tablado no chão e quando eram encontrados, tínhamos de negociar.”
Em tom anedótico, Dilma ainda contou que a negociação visava a tentar enganar o “capitão Maurício”, explicando que A questão agrária, do Karl Kautsky, não era subversivo. “Como a capa era verde, eles acreditavam”, diz ela, rindo.
Ela diz que os livros eram amarrados e enfiados com uma vassoura no fundo do tablado da cama. Quando dava para ler, se puxava o livro com um barbante. “Li muita coisa sistematicamente nos três anos que passei lá. Dizia-se que o presídio era uma grande escola de formação política. Então, o livro na minha vida tornou-se uma necessidade, por isso respeito aqueles que fazem livro”, disse ela, ressaltando que este lado anedótico não era a realidade predominante nos presídios, evidentemente. Dilma também lembrou como era difícil encontrar bons livros naquela época, por isso, quem viajava para um país vizinho, acabava voltando com muitos livros novos na mala.
O evento, que teve como tema “Resgatando a Democracia na América Latina”, contou ainda com as presenças de Guilherme Boulos (PSOL) , Manuela d’Ávila (PCdoB) e do ex-vice-presidente boliviano Álvaro García Linera, com mediação de Ivana Jinkings, diretora da Boitempo.
O Salão do Livro Político é organizado pelas editoras Autonomia Literária, Anita Garibaldi, Alameda, Boitempo e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com programação que pode ser vista nos canais de redes sociais das editoras e parceiros.
Reindustrializar e criar sustentação social
Dilma Rousseff também destacou o compromisso do evento editorial com o combate necessário contra a desigualdade histórica no Brasil, que é de classes, mas também de raça e de gênero. “Para nós a questão nacional é também uma questão racial”, disse ela, falando da importância desse debate e construção.
Dilma disse que o Brasil saiu do mapa da fome e da miséria em 2014, junto com a China e a Indonésia, quando nenhum outro país havia feito isso antes. Mas isso foi feito, segundo ela, por meio de busca ativa, “sem esperar que essas pessoas fizessem fila para nos procurar”.
Ela também disse que, chegando nesse patamar, o desafio era dar o próximo passo. Para isso, é preciso lembrar que o Brasil não foi sempre uma exportador de commodities, embora o período da financeirização [dos anos 1990 em diante] tenha transformado o país num grande banco, numa grande fazenda, numa grande mina ou num grande shopping center. Ela lembrou como os governos progressistas retomaram a indústria do petróleo, a indústria naval e aeronáutica, por meio de grandes projetos e obras (inauguradas depois do golpe parlamentar).
“Um projeto nacional com industrialização cria volume de empregos para a juventude, com qualificação e salários melhores”, disse ela, pontuando uma série de políticas articuladas para alcançar o objetivo de estruturação de uma cadeia produtiva para alavancar o país no mundo, com soberania e respeitabilidade. “Tudo isso era descrito na imprensa como mania de grandeza dos nossos governos”, afirmou. Dilma acredita que não adianta trocar uma relação prioritária com os EUA pela China, quando ambos querem apenas que o Brasil continue fornecendo commodities.
Dilma concluiu explicando a necessidade de uma ação estratégica para conseguir a sustentação social a um governo progressista. “Caso contrário, vamos continuar sofrendo golpes”, disse ela, analisando que o golpe, hoje, é uma questão geopolítica. Ela mencionou os diversos tipos de golpes, entre eles, as sanções sobre Cuba e Venezuela e a privatização de empresas como a Eletrobras, e outras riquezas energéticas latino-americanas, que reduzem a capacidade de intervenção econômica do governo.
A divórcio neoliberal da democracia
O ex-vice-presidente Álvaro García Linera é um importante intelectual do continente, autor de vasta obra com apurada capacidade de reflexão, sempre articulada à prática política, que se tornou indispensável para que o atual processo político boliviano fosse possível.
Junto ao grupo boliviano Comuna, Linera contribuiu para uma análise que enxerga o movimento indígena como o novo sujeito histórico e político do processo de superação do neoliberalismo em seu país, mudando o ponto de vista da esquerda.
Linera somou-se a Evo Morales para compor a fórmula política que dirigiu o processo boliviano de construção de uma sociedade multiétnica, plurinacional e autônoma.
Na sua fala, Linera destacou o avanço da esquerda na América Latina e falou sobre a vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez, respectivamente presidente e vice-presidenta eleitos da Colômbia no dia anterior. “O continente volta a olhar para o povo e para a justiça ao invés de vingança e castigo. Sabemos como as coisas são tão desiguais em nosso continente e essa vitória na Colômbia, onde estava tudo construído para que a esperança não triunfasse, nos mostra que nada é impossível”.
Uma das lições que acredita que fica desse novo espírito do tempo na América Latina, é que a esquerda triunfa mediante o voto, portanto precisa defender intransigente o voto e a democracia, enquanto a direita está se divorciando dos mecanismos de participação social. “Com isso, não é a esquerda que é antidemocrática, mas os setores conservadores, inclusive nos EUA. O voto é um patrimônio do povo que precisa ser defendido”.
A segunda lição é que a democracia não é só voto. “Ela se come, é justiça e direito, é poder ir a universidade, ser reconhecido como igual, se curar de uma doença, ter pago um bom salário”, completou. Com o retrocesso democrático, ele acredita que também voltamos no tempo em termos de desenvolvimento econômico.
O desafio não é apenas distribuir melhor as riquezas, mas também modificar as estruturas produtivas da sociedade. Para ele, a esquerda precisa olhar o longo prazo, não para manter a esquerda no poder, mas para consolidar, ao longo do tempo, os direitos do povo. Para que não haja oscilação de direitos conquistados entre um governo de direita e outro de esquerda, mas que haja instituições distributivas de direitos.
Ele também defendeu que a integração latino-americana pode ser um modo avançado de promover essas transformações nas cadeias produtivas. Para ele, seria uma perda de oportunidade não realizar a transição energética necessária em termos continentais, para que outros não levem nossos recursos naturais para fazê-la em seus países. O Brasil tem um papel estratégico para isso.
A esquerda liberal e a direita contra-revolucionária
A ex-deputada gaúcha Manuela d’Ávila disse que o Salão do Livro Político tem a relevância de trazer à tona espaços de debate político no Brasil. “Hoje, temos uma esfera pública interditada por um presidente violento que acha que o debate não pode existir e que a divergência não tem que ser respeitada, mas eliminada. O Salão é importante por ser o oposto disso, é um espaço de debate diverso sobre os rumos do Brasil”.
Manuela observou que o continente vive uma década de golpes sucessivos nas democracias de Honduras, Paraguai, Bolívia, Brasil, Equador e tentativas na Argentina. Ela salienta que a crise neoliberal chegou a conclusão que a democracia é “uma roupa que não serve mais”. Ela questiona se o futuro será de um neoliberalismo que não aceita sequer a democracia burguesa. “É uma encruzilhada da história, de como manter vivo o capitalismo”.
Ela apontou o paradoxo da esquerda defendendo instituições burguesas insuficientes para garantir a democracia plena, enquanto a extrema-direita defende transformações radicais e regressivas. Para ela, a esquerda só resgata a agenda de transformações profundas e progressistas se conseguir fazer os partidos e a política se capilarizarem e radicalizem a democracia na sociedade e nos movimentos sociais de forma horizontalizada.
“O desenvolvimento do nosso país só será possível enfrentando a desigualdade estrutural, que é organizada a partir das questões de raça e gênero, para além das questões de classe”, defendeu. Manuela lembrou como a presença de Francia Márquez na Colômbia enterrou a percepção da esquerda que, quando mulheres e negros se organizam é para falar de suas identidades, e não de economia.
“Não existe espaço vazio. Se não estivermos nas ruas, a extrema-direita estará, como já estiveram em 2016”, afirmou.
O nacionalismo lesa-pátria
O líder do movimento de moradia, Guilherme Boulos saudoua PUC-SP por ter uma história de luta e resistência democrática, e reforçar essa tradição sediando o Salão do Livro Político. Boulos salientou o fato de fazer parte do quadro de professores da pós-graduação na instituição. “E num ano tão decisivo e de encruzilhada na história do nosso país, no qual está em jogo uma escolha entre a democracia e a barbárie, o Salão discutir a integração latino-americana e promover o diálogo crítico necessário e democrático, é mais uma vez manter-se à altura da sua história”.
Boulos fez um balanço do pós-golpe que impeachmou Dilma, a partir de uma simbologia e narrativa nacionalista, que se revelou entreguista e “lambe-botas” do imperialismo americano. “A partir dali abriu a porteira dos retrocessos, aprovando o teto de gastos que tirou dinheiro do SUS, da Educação e da moradia popular, a reforma trabalhista que retirou direitos de todos os trabalhadores, eles que usaram e perverteram os símbolos nacionais fizeram um governo lesa pátria, que vai pedir autorização de golpe ao presidente dos EUA”, afirmou.
Ele defendeu a necessidade de reparação pelos crimes que estão sendo cometidos por Bolsonaro, hoje, para que não se repita o acordo pós-ditadura que permitiu que torturadores continuassem nos quartéis, fossem eleitos defendendo a ditadura e se tornassem presidente da República. “O medo dele é perder a eleição e não ter blindagem para todos os crimes apontados pela CPI da Covid e ir parar na cadeia com seus filhotes e milicianos. Vamos precisar de reparação e não podemos repetir esse erro. Ano que vem é lutar para que ele pague na cadeia por seus crimes.”