A proximidade do mal
No “Nota breve sobre um mal tamanho”, o filósofo João Carlos Salles passa pela densa simplicidade e atualidade de Aristóteles, cuja definição sobre as pretensões do tirano alcança os dias atuais, e os nossos dias de modo particular, com o mal nos sobrevoando e atormentando.
Por Emiliano José
Ernst Cassirer e o Nazismo: e outros textos sobre a proximidade do mal
Autor: João Carlos Salles
Ano: 2022
Editora: Noir Editora
Páginas: 98
Tomei do livro, e folheando-o aleatoriamente, deparei com o título “Nota breve sobre um mal tamanho”.
Jornalista padece de um mal – também poderíamos chamar um mal tamanho para acompanhar o autor: títulos o seduzem ao primeiro olhar.
Ou não – e quando não, o texto resta de lado.
Um mal, sei.
O “Nota breve sobre um mal tamanho” arrastou-me.
Talvez porque logo dá de cara com o ar sobrenatural da noção de mal.
Com o quê religioso do mal.
Com ele escondendo-se na superfície dos fatos.
Tudo dito pelo autor, assim como quem nada quer, querendo.
O mal alimenta-se na penumbra espantosa do que não parece espantoso.
Até explodir em momentos de crise, quando suas garras se desvelam.
João, nós o chamamos assim na Universidade, nosso reitor da UFBA e filósofo, quando diz isso quer nos trazer para o chão duro do presente, não obstante ou porque filósofo – afinal, como ele diz na apresentação, a fala filosófica é também política, almeja a condição verdadeiramente humana.
O filósofo João Carlos Salles é cuidadoso.
Não aceita o senso comum de tudo politizar, aquela mania de disputar mesmo o que deve ser fonte de conciliação.
Não comunga com o sujeito incapaz de confiar na linguagem e nos jogos capazes de fixar direitos e divergências.
No “Nota breve sobre um mal tamanho” ele passa pela densa simplicidade e atualidade de Aristóteles, cuja definição sobre as pretensões do tirano alcança os dias atuais, e os nossos dias de modo particular, com o mal nos sobrevoando e atormentando.
Manter humilhados os súditos.
Tê-los em perpétua desconfiança mútua.
Privá-los de poder para a ação política.
Eis as pretensões do tirano em Aristóteles, a assomar no livro não por uma simples querela filosófica.
Assoma para nos lembrar como o passado na caminhada dos homens continua tão presente.
E para lembrar o quanto é poderosa a reflexão filosófica, o quanto a sabedoria permanece, quando sólida.
O “Nota breve sobre um mal tamanho”, ao ler, reler Aristóteles revela a existência do mal insidioso, produtor de cizânia e medo – quanto esse mal alcança os nossos dias, dias no Brasil, onde a construção permanente do ódio, do mal, leva a matar, a esquartejar corpos, e a pretender espalhar o medo de modo a não permitir, a evitar a manifestação soberana dos cidadãos numa eleição.
O mal, dirá o autor, e creio ser isso de muita importância para o nosso presente, não se personifica tão somente no grande gesto.
É dele, do mal, o espaço da mera rotina, muitas vezes amparada na racionalidade e técnica.
O mal é implacável, anotem, sobretudo, não como um grande mal, mas sim como um inexorável mal menor, como insidiosa rotina, como algo pouco a pouco naturalizado.
Mas o tirano nunca pode desejar a calmaria.
Necessita sempre da sombra de uma guerra – o tirano brasileiro não é assim?
Ele não se imagina permanentemente em guerra?
Não alimenta a distribuição de armas?
Óbvio: ao tirano só pode desagradar quem tenha caráter e espírito livre, quem tenha confiança e instrução, quem enfim tenha um espírito de cidadania.
Parece estranho, ou pode parecer estranho, ser possível localizar medidas próprias da tirania na atualidade.
Como poderiam ser acolhidas em uma sociedade da informação, num ambiente de proliferação de informações como nunca visto antes na história?
João pergunta, revelando angústia:
– Como é possível haver opacidade em meio a tamanha visibilidade?
E há.
Estamos assistindo isso.
O mistério dessa sociedade aparece na coexistência do saber científico e generalizado e o mais puro negacionismo.
Na vitória da técnica lado a lado da mais pura e simples ignorância.
Por vezes, tudo isso no mesmo indivíduo, no nosso médico de família, no amigo de infância, nosso primo, nosso tio, nosso irmão, nossa irmã.
Não fosse esse aparente paradoxo, e o atual presidente não teria sido eleito.
Stefan Zweig, lembrado por João, torturado pelos horrores da guerra, assustado com o fato de a humanidade ser capaz de tanta atrocidade, impressionava-se também com o simultâneo desenvolvimento técnico e intelectual, superando tudo o que fora produzido em milhares de anos. Nunca – Zweig dirá – até a hora presente a humanidade se mostrou tão diabólica e nunca produziu de maneira tão semelhante a Deus. Ele não resistiu a tudo isso, e se matou.
João, no “Nota breve sobre um mal tamanho”, despe-se, ou não, da condição de filósofo, e alerta a todos nós:
– Um de seus efeitos mais perversos [do mal] é nossa paralisia.
Se divididos, se humilhados, se enfraquecidos, se não confiarmos mais nos outros nem em nós mesmos, alimentaremos tiranos e desertos, e colaboraremos com as ilusões que nos aprisionam, sendo mesmo um truísmo que uma ideologia só é dominante se consegue alguma cumplicidade dos dominados.
Mais: o alimento da tirania vem também de uma visão política restrita à acomodação de interesses. Pacificadores podem alimentar tiranias. Para eles, importa a acomodação, a manutenção das redes de poder e de interesses.
A tirania encontra recursos de sobrevivência na suposta sensatez, capaz de admitir absurdos. Comum ouvir-se, com ares de sabedoria: isso é da política, da política que sempre se fez.
Da política, dirá João, que resulta e nos faz conviver com exclusões sistemáticas, com preconceitos, com autoritarismos, com negociações, com tiranos.
E ele pergunta, apropriadamente:
– Até onde pode ir, porém, nossa cumplicidade? Por que paralisamos? Por que aceitamos intimamente tiranias, inclusive as que percebemos?
O mal nos afasta da possibilidade do aprendizado de nossa essência.
Seres humanos entre seres humanos.
Nos retira a possibilidade de reconhecermos nossa identidade na pólis – esse lugar do compartilhamento de vocabulários e valores.
Do mal decorre a perda da identidade, a alienação, a heteronomia.
Daí, também, a frequente imagem do mal como nossa adesão à multidão, à horda – lá, nossa vontade se dissipa.
João nos alerta:
– O mal está no que nos sufoca, em nossa impotência quase infinita, sobretudo em face da estupidez, contra a qual até os deuses lutariam em vão.
Não nos iludamos: o mal é sempre cruel.
E, por vezes, bastante sutil.
E sendo sutil, instala-se profundamente na criação de condições capazes de favorecer e naturalizar a crueldade: não sentimos isso tão próximo de nós, quando um presidente tão do mal, tão perverso, mantém ainda níveis de aprovação surpreendentes?
Por isso, creio tem toda razão o filósofo, ao proclamar a necessidade de combater o mal em seus procedimentos mais banais. Isso sempre, diante do mal, seria sempre urgente e tão necessário quanto combater o tirano.
A fonte maior da força do tirano reside na violência tornada rotina.
Essa trágica rotina é capaz de anestesiar nossa consciência.
Essa noção já está em outro texto do livro, “As dimensões do mal”.
O mal tem pressa, é afoito. Prefere os meios da pressa: o deboche e um tipo tosco de ironia. Opta pelo cinismo em vez da crítica.
Prefere a condenação ao julgamento, o boato à verdade.
É capaz de, subtraindo o contexto, tornar a verdade um mero boato.
O mal é assim, conservador e reacionário, uma vez que se arma ideologicamente contra a precedência do interesse coletivo sobre o interesse individual, sendo contra sua natureza operar pela ampliação de direitos.
Síntese de João:
– O mal é o lugar do retrocesso e da morte miúda de cada dia.
Ao ser isso, ao esgueirar-se e esconder-se, tanto mais forte se mitigado e travestido, como diz João, em sua versão diminuída e constante, quem o sofre sabe que, a bem dizer, maior mesmo não é o grande mal, mas sim o mal menor.
“As dimensões do mal” leva a data fatídica de 17 de abril de 2016, quando a Câmara Federal deu a partida para o golpe contra a presidenta Dilma, autorizando a abertura do processo de impeachment.
Termina com uma fala esperançosa, a aparecer em vários outros textos em defesa da Universidade, analisando a história, concluindo não haver em meio à luta e aos horizontes generosos dela, golpes bruscos, nem rotina infame que, por duradouros que o sejam, nos possam roubar os sonhos ou nos fazer desistir, cabendo hoje e sempre, em chave shakesperiana, para além dos males e quebrantos, aceitar a óbvia alegria: “Até a noite longa acaba em dia”.
Como me perdi em meio ao mal, não disse do gancho de João: o enfrentamento do nazismo pelo reitor da Universidade de Hamburgo, Ernst Cassirer, ele também a lutar contra o mal tamanho, primeiro judeu a ser nomeado para um cargo de tal importância acadêmica.
Demitiu-se logo pressentida a sombra terrível do nazismo, e seguiu para o exílio.
Notável figura, de caráter e princípios liberais irretocáveis, filósofo a ser conhecido melhor pelo leitor ao ler o livro.
João, daqui a dias, volta à planície acadêmica, depois de oito anos à frente da Universidade Federal da Bahia, numa das melhores gestões experimentadas pela instituição.
Pela coragem, discernimento diante do quadro político, desassombro face ao mal tamanho do bolsonarismo, ele capaz de construir consensos permanentemente, sem abrir mão de princípios, fazendo política sempre, sem partidarismos.
E mesmo pelo elenco de realizações, em meio a imensas dificuldades.
Terminou querido por todos na Universidade.
E isso ele o fez também na condição de presidente da Andifes, em plena vigência bolsonarista, elevando a voz em defesa da Universidade pública brasileira, defesa presente em vários textos desse livro.
Ao refletir num dos textos como, em meio à pandemia, o deserto crescia com imensa voracidade e rapidez, como cresciam as ameaças, como aprofundava-se o caos, a voz dele se alevanta:
– Mas, se o deserto cresce, não há de crescer dentro de nós.
Nesse texto, na verdade discurso de encerramento do ato público nacional “Educação contra a barbárie”, realizado na Universidade Federal da Bahia em 18 de maio de 2021, defende a precedência da palavra sobre qualquer outro instrumento de poder, valor essencial da vida democrática.
Recorrerá a João Cabral de Melo Neto, para defender a ação coletiva:
Um galo sozinho não tece uma manhã
Ele precisará sempre de outros galos…
E concluirá o texto:
Não seremos reféns do absurdo. Nunca seremos cúmplices da destruição. Jamais seremos servos da barbárie.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vol.), entre outros