China: as empresas privadas e a direção comunista
“Milagre econômico” chinês é dirigido pelo Partido Comunista.
Elementos para entender um sistema singular. Em 25 anos, número de empresas capitalistas cresceu cem vezes, e chegou a 15 milhões. Elas geram maior parte dos empregos. Mas PC Chinês, cujo 20º Congresso começa domingo, conduz a economia.
Por Fernando Marcelino, publicado originalmente em Outras Palavras.
É comum se falar em “milagre chinês”, como se fosse uma graça divina. Porém, vale a pena destacar que o “milagre econômico” está profundamente integrado com o sistema político chinês. Ele garante as condições para que reformas econômicas sejam realizadas com maior grau de sucesso e é seu principal agente. Não existem “políticas econômicas”, mas uma economia política que fundamenta as aspirações e capacidades do Estado.
Durante os mais de 70 anos transcorridos desde a fundação da República Popular e dos últimos 40 anos desde suas reformas e abertura, a China registrou notáveis conquistas históricas. Porém, o principal fator para o crescimento econômico acelerado por um longo período foi o sistema socialista da China. Neste sistema, é o Partido Comunista que lidera as reformas econômicas, políticas, sociais, culturais e ambientais. O PPCh é a força-motriz do forte e poderoso Estado da China.
O processo pelo qual a China constrói o socialismo sob a liderança do Partido Comunista pode ser dividido em duas fases históricas – uma que antecedeu o lançamento das reformas e da abertura, em 1978, e outra que se seguiu a esse evento. As duas fases – ao mesmo tempo relacionadas e distintas uma da outra – são ambas explorações pragmáticas na construção do socialismo conduzidas pelo povo sob a liderança do partido desde a fundação da República Popular da China (RPC), em 1949. Embora as duas fases históricas sejam muito diferentes em seus pensamentos orientadores, princípios, políticas e trabalho prático, elas não estão de forma alguma separadas ou opostas uma à outra. Não se deve negar a fase de pré-reforma e abertura em comparação com a fase de pós-reforma e abertura, nem o contrário.
O principal fio condutor entre os dois períodos é a persistente estrutura institucional Partido/Estado, com toda sua centralidade — ora contestada, ora reforçada — e seus efeitos amplos e profundos, ideológicos, políticos e econômicos, na vida chinesa. O PCCh está enraizado em cada província, cada cidade e vilarejo – e atualmente, até nas grandes empresas. Com a vitória da revolução em 1949, o Partido Comunista Chinês tornou-se a principal instituição política para a tomada de decisão dos rumos estratégicos da China, em simbiose com o aparato estatal. Constituiu-se o Estado nacional, reunificando a pátria, superada a guerra civil e vencida a ocupação estrangeira. Isso garantiu a estabilidade da sociedade chinesa e estabeleceu uma base sólida para a reforma e o desenvolvimento. O sistema de governança nacional é o resultado do desenvolvimento de longo prazo, melhoria gradual e evolução endógena com base na herança histórica, tradições culturais e desenvolvimento econômico e social da China. Hoje, este processo integra Big Data com confucionismo. É singular em tamanho e organização, com capacidades de governança incomparáveis aos sistemas ocidentais. Em suma, o Partido Comunista Chinês tem vantagens significativas que outros partidos políticos não possuem.
Muitos tentam ver o Partido Comunista Chinês como uma cópia do partido da União Soviética. Porém, desde a morte de Mao em 1976, uma série de reformas políticas vêm sendo realizadas, buscando descentralizar o poder para as províncias e renovando a liderança comunista, num sistema com prazo para aposentadoria e promoção de quadros. No decorrer da reforma e da abertura, o PCCh estabeleceu a linha básica da etapa primária do socialismo. As medidas adotadas nas décadas de 1980 e 1990 visavam garantir que diversas gerações pudessem manter o Estado socialista. O sistema político chinês se divorciou assim do sistema socialista clássico da URSS. As reformas a partir de 1978 também se deram na superestrutura, no sistema político geral da China. Manteve-se o Partido Comunista na liderança do Estado, ampliaram-se as iniciativas do Conselho Consultivo formado por mais sete partidos e o PCCh passou a desenvolver um sistema próprio de formação dos quadros para o Estado, baseando-se em critérios de eficiência no desenvolvimento econômico e na renovação. Considerado pai das reformas, Deng Xiaoping insistiu muito para que a China não virasse uma gerontocracia como a URSS, com lideranças muito velhas e com menos energia. Assim, o partido sustentou sua legitimidade com o povo, criando um sistema de auto-renovação que permite descentralização, menos burocracia e mais eficiência na governança política e econômica.
Ao mesmo tempo que se descentraliza, a vantagem da liderança do Partido Comunista é conseguir unir todas as forças possíveis, com fortes capacidades organizacionais e de mobilização para realizar tarefas importantes. Absorve a grande maioria dos membros proeminentes da sociedade chinesa, convidando-os para se tornarem membros do partido; mas também tem talentos notáveis de todas as esferas da vida, o que é incomparável a qualquer outra organização política. A utilização dessas vantagens permitiu ao socialismo com características chinesas mostrar seu vigor e vitalidade, com caráter cada vez mais sistemático, cientificamente padronizado e eficaz.
O próprio setor estatal da economia – controlada diretamente pelo partido – também viveu reformas. Na segunda metade da década de 1990, as empresas estatais passaram por um processo profundo de mudanças e pela fusão de milhares de companhias e privatização de outras tantas. Ao fim deste processo, surgiram 149 conglomerados empresariais estatais com crescente capacidade de atuar no mercado. A separação entre a gestão e a propriedade, a maior qualificação de quadros administrativos e o recurso a certos critérios de mercado transformaram muitas dessas empresas em gigantes globais. Estas empresas estatais, a maioria das quais no topo da cadeia industrial, desempenham papéis centrais nas indústrias básicas e manufatura pesada, enquanto as empresas privadas estão mais envolvidas no fornecimento de produtos manufaturados, especialmente bens de consumo final. Em 1994, havia 150 mil empresas privadas registradas. Em 2018, eram 15 milhões. De forma gradual, as empresas estatais e as privadas passaram a ter uma relação interdependente de apoio e cooperação mútuos. Se as empresas privadas estão em boas condições de negócios, o capital estatal pode se retirar, e as empresas estatais podem aumentar a eficiência recrutando a participação de empresas privadas quando enfrentam dificuldades. Além disso, as empresas privadas são as mais dinâmicas na China para criar postos de trabalho. Também existem cerca de 500.000 companhias estrangeiras, muitas delas com empresas mistas com estatais e cooperativas chinesas.
Mesmo os observadores mais exigentes têm que admitir que, sob a liderança do Partido Comunista da China, a força nacional abrangente da China tem sido continuamente aprimorada, os padrões de vida das pessoas têm melhorado continuamente e a harmonia e estabilidade sociais foram alcançadas enquanto se continua a promover grandes reformas. A garantia da estabilidade política – principal mantra de Deng Xiaoping – é o sustentáculo de um projeto de longo prazo. No início da reforma e da abertura, Deng disse uma vez: “Nosso sistema será aperfeiçoado dia a dia. Ele vai absorver os fatores progressivos que podemos absorver de todos os países do mundo e se tornar o melhor sistema do mundo”. Para o horror dos liberais, o Partido Comunista da China pratica o centralismo democrático, tem um sistema organizacional e disciplina rígidos, cobrindo todos os departamentos e campos, e alcançando o nível de base. Ao contrário dos partidos ocidentais que são relativamente frouxos e não têm uma ampla base de massa, o Partido Comunista da China é capaz de unificar pensamentos e ações, tem forte coesão e eficácia de combate, tem alta eficiência e execução e pode responder efetivamente aos principais desafios, como foi a mobilização de combate à covid.
Esta tendência de auto-revolucionarização, de aprimoramento, também está presente hoje com Xi Jinping. Ele disse: “por meio de reformas e inovações contínuas, de modo que o socialismo com características chinesas seja mais eficiente e mais estimulante do que o sistema capitalista para liberar e desenvolver as forças produtivas sociais, [vamos] liberar e aumentar a vitalidade social e promover o desenvolvimento geral das pessoas. O entusiasmo, a iniciativa e a criatividade de todas as pessoas podem oferecer melhores condições favoráveis para o desenvolvimento social, obter uma vantagem comparativa na competição e demonstrar plenamente a superioridade do sistema socialista com características chinesas”. Segundo Xi, a China está apresentando para inúmeros países um modelo socialista que se torna, cada vez mais, “uma nova opção” para “países e nações que queiram acelerar seu desenvolvimento enquanto preservam sua independência”.
Os dois principais projetos chineses que sustentam essa “nova opção” são “Um Cinturão, uma Rota” (One Belt, One Road), lançado em 2013 e também conhecido como “Novas Rotas da Seda” e o Plano “Made in China 2025”, lançado em 2015. No curto espaço de 40 anos a China foi não só capaz de assimilar as três revoluções industriais comandadas pelos países ocidentais desde o século 19, mas também de assumir a liderança mundial no processo de desenvolvimento da nova revolução industrial em curso. Com seu plano “Made in China 2025”, ela busca dar um salto na estrutura produtiva de sua indústria, tendo por base as altas tecnologias. Com isso, os setores-chaves da economia chinesa passarão a ser os equipamentos eletrônicos, microchips, máquinas agrícolas, novos materiais, energias renováveis, carros elétricos, ferramentas de controle numérico, robótica, tecnologia de informação, tecnologia aeroespacial, equipamentos ferroviários, equipamentos de engenharia oceânica, navios de última geração, e dispositivos médicos avançados. Em outras palavras, até 2025 a China deve reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras e consolidar sua participação na produção científica e tecnológica mundial. Até lá, o 5G deve estar disseminado por todo país. Enfim, quando alguém perguntar qual a razão do milagre econômico chinês, a primeira resposta é: o partido comunista.
Fernando Marcelino é natural de Curitiba e militante do MTST\PR. Também é mestre em Ciência Política e Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).