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    Internacional

    O novo governo Lula e os desafios da política externa

    Pesquisador da Fiocruz, Tiago Nery apresenta os desafios da política externa do próximo governo Lula.

    O novo governo Lula e os desafios para reconstruir uma política externa autônoma que reposicione o Brasil no mundo e na região

    Por Tiago Nery

    Ayer fue yesterday para buenos colonos mas por fortuna nuestro mañana no es tomorrow
    (Mario Benedetti)

    As eleições presidenciais de 2022 foram as mais importantes da nossa história
    republicana. Foi um pleito marcado pela violência política, pela disseminação de fake
    news e pelo uso da máquina pública em um nível jamais visto. Liderando a mais ampla
    coalizão desde a redemocratização, Lula foi sufragado com 60.284.640 votos (50,90%),
    derrotando Bolsonaro, que alcançou 58.156.292 de votos (49,10%). A frente ampla
    liderada por Lula derrotou um projeto de poder autoritário baseado na destruição
    progressiva das instituições democráticas. Após anos de retrocessos políticos,
    econômicos e sociais, Lula terá grandes desafios em seu terceiro mandato, entre os
    quais a reconstrução de uma política externa autônoma que recupere o protagonismo do
    Brasil no sistema internacional e priorize a integração da América Latina.


    Historicamente, a política externa brasileira foi percebida como uma política de
    Estado, centralizada no Ministério das Relações Exteriores. No entanto, o fim da Guerra
    Fria e os processos de redemocratização e globalização contribuíram para a politização
    e a pluralização da política exterior, concebida como uma política pública que está
    inserida em uma arena de contingência e conflito. A política externa passou a incorporar
    novos atores – outros ministérios, governos subnacionais, partidos políticos, etc -, e
    novos temas, como direitos humanos, meio ambiente e saúde. Ademais, as coalizões
    políticas e o modelo de desenvolvimento tornaram-se centrais na formulação da política
    externa. Com efeito, mudanças nas coalizões domésticas produzem alterações na
    política exterior, com reflexos nas estratégias de inserção internacional e integração
    regional.


    Em 2018, a vitória de Jair Bolsonaro se inseriu em um contexto internacional de
    crescimento da extrema direita, que veio a preencher o vácuo deixado pela negação da
    política com receitas politicamente reacionárias e socialmente regressivas. O
    bolsonarismo representa uma nova forma de conservadorismo, que abandona a premissa
    de governo virtuoso por um projeto de destruição das estruturas do Estado e das

    políticas públicas. O governo Bolsonaro inaugurou um capítulo crítico na história da
    política externa brasileira, adotando uma retórica caracterizada pelo anticomunismo,
    pelo antiglobalismo, pelo negacionismo científico, pela defesa da identidade cristã e
    pela subordinação aos Estados Unidos. O Brasil rompeu com seu histórico
    protagonismo em áreas como meio ambiente e saúde no sistema multilateral.


    Incentivados pelo governo, o agronegócio e o garimpo ilegal avançaram na Amazônia e
    nos territórios indígenas, provocando o aumento do desmatamento e das violações dos
    direitos humanos. Com isso, os governos da Noruega e Alemanha suspenderem o
    financiamento do Fundo Amazônia (1) . Durante a pandemia, o governo brasileiro
    desrespeitou as orientações da OMS e notabilizou-se pelo negacionismo científico. A
    resposta do país à Covid-19 foi desastrosa, provocando quase 700 mil mortes, sobretudo
    entre as populações vulneráveis. No plano regional, o Brasil deixou de ser um fator de
    estabilidade na América do Sul. Além de enfatizar apenas a dimensão comercial do
    Mercosul, Bolsonaro denunciou o tratado constitutivo da Unasul e suspendeu a
    participação do país na Celac.


    A partir de janeiro de 2023, o novo governo Lula terá de trabalhar duramente
    para recuperar a credibilidade diplomática do Brasil. Lula assumirá em um contexto
    internacional diferente de vinte anos atrás, marcado pelo aumento das tensões
    geopolíticas (a exemplo da guerra entre a Rússia e a Ucrânia) e pela bipolaridade
    assimétrica entre a China e os Estados Unidos. Apesar da intensificação dos conflitos, a
    “ascensão do resto” veio para ficar, pois continuaremos assistindo à redistribuição
    mundial do poder, do Ocidente para o Oriente, e do Norte para o Sul. A tendência à
    multipolaridade no sistema internacional tornou-se irreversível.


    Diante da rivalidade sino-americana, a estratégia da “neutralidade ativa” seria a
    mais adequada aos interesses econômicos e geopolíticos do país. O Brasil deve
    contribuir para o fortalecimento do BRICS e suas instituições, como o Novo Banco de
    Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (ACR). A possibilidade
    de obter benefícios das duas superpotências dependerá da reconstrução da capacidade
    político-diplomática, da formação de novas alianças Sul-Sul e da articulação de uma
    estratégia regional com os vizinhos sul-americanos. Além disso, o governo Lula deverá
    reincorporar os objetivos de desenvolvimento à política externa, tornando-a instrumento de um projeto de reindustrialização e inserção competitiva do país na economia internacional.


    No plano multilateral, a diplomacia do governo Lula terá como desafio retomar
    o papel que o Brasil historicamente desempenhou como mediador e construtor de
    pontes entre os países do Norte e do Sul. País sem excedentes de poder, a diplomacia
    multilateral brasileira foi uma constante da presença internacional do Brasil (com
    exceção do governo de extrema direita recém-derrotado), pois o sistema multilateral
    sempre ofereceu espaços para a criação de alianças estratégicas Sul-Sul (como o G-77 e
    o G-20) e a normatização do comportamento das grandes potências. Nesse sentido, o
    Brasil deverá reconstruir laços de cooperação e solidariedade com outras nações do Sul
    geopolítico que também exercem liderança no sistema multilateral com o objetivo de
    apresentar propostas normativas e institucionais no âmbito da ONU.


    O sistema multilateral continua sendo a melhor opção para discutir e enfrentar
    desafios relacionados ao Antropoceno, como as mudanças climáticas e o surgimento de
    novas pandemias. A presença do presidente Lula na COP27 recoloca o Brasil na
    condição de protagonista decisivo do desenvolvimento sustentável. Há expectativa de
    que o país possa liderar, ao lado do Congo e da Indonésia, um bloco internacional com
    o propósito de zerar o desmatamento nas florestas tropicais. Na América do Sul, o
    Brasil de Lula e a Colômbia de Petro, duas das principais potências ambientais do
    planeta, estão seriamente comprometidas com a proteção e a regeneração florestais.


    Além do desmatamento, outro desafio que deverá ser enfrentado é a redução nas
    emissões de metano, cujo principal vetor global é a pecuária bovina. O novo governo
    poderá contar com os conhecimentos da Embrapa para apresentar iniciativas nessa área.
    Por fim, a diplomacia do novo governo Lula tem potencial para contribuir para a
    construção de um New Deal Verde, em diálogo com os países sul-americanos, a China,
    os Estados Unidos e a União Europeia.


    A pandemia da Covid-19 intensificou os desafios relacionados à sustentabilidade
    socioambiental do desenvolvimento econômico e à saúde global. Por um lado, a
    pandemia afetou as cadeias globais de valor e o comércio internacional, evidenciando
    também a dependência e a fragilidade da base produtiva e tecnológica brasileira,
    marcada pela reprimarização e desindustrialização precoce. Nesse contexto, o governo
    Lula poderá investir em políticas relacionadas ao Complexo Econômico-Industrial da
    Saúde (CEIS), que tem potencial para articular investimentos em ciência, tecnologia e
    inovação com o desenvolvimento sustentável e a universalização do acesso à saúde.

    Por outro lado, o novo governo Lula poderá contribuir para uma diplomacia da saúde na
    região, construindo junto aos governos latino-americanos e a instituições regionais
    (Cepal, Celac, Opas e Unasul) uma agenda convergente de cooperação em saúde, capaz
    de colaborar na formulação e implementação de políticas de saúde baseadas na equidade
    e na universalidade. Ademais, o Brasil terá um papel fundamental na cooperação global
    visando à concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da
    Agenda 2030.


    No plano regional, a eleição de Lula foi coetânea à vitória de outras forças
    progressistas na América Latina. O Brasil poderá contribuir para a reconstrução de um
    projeto comum para a região, e terá como desafios o impacto da rivalidade sino-
    americana, a reprimarização das economias regionais e a histórica exclusão social,
    agravada pela pandemia. Além disso, constituem obstáculos para a integração regional a
    dificuldade de liderança para coordenar a ação coletiva e a escassa institucionalização
    dos mecanismos integrativos. Para superar tais dificuldades, o governo Lula deverá
    contribuir para fortalecer a Celac, repensar o papel estratégico do Mercosul e trabalhar
    para a recriação da Unasul, que poderá ser novamente o principal foro de concertação
    política e de políticas públicas dos países sul-americanos.


    Em um contexto internacional marcado pela crise da democracia, pela carência
    de lideranças e pela ascensão da extrema direita, a eleição de Lula representou uma
    importante vitória das forças progressistas em todo o mundo. Em meio ao ressurgimento
    da esperança, gostaria de recordar um grande brasileiro, Darcy Ribeiro, cujo centenário
    celebramos em 2022. Em sua grande obra, O povo brasileiro, Darcy afirmou que a mais
    terrível de nossas heranças era levar sempre conosco a cicatriz do torturador impressa
    na alma e pronta a explodir na brutalidade classista e racista. Essa marca, porém,
    provocando crescente indignação poderia nos dar forças para conter os possessos e criar
    aqui uma sociedade mais solidária. Oxalá que o novo governo Lula possa significar um
    pequeno passo nessa direção!

    Nota:

    (1) O Fundo Amazônia foi criado em 2008 e pé gerido pelo BNDES. Destina-se ao manejo florestal, à preservação ambiental e ao monitoramento de atividades na Amazônia legal. Contando com 3,1 bilhões de reais doados principalmente pela Noruega (93,3%) e, em uma menor medida pela Alemanha e pela Petrobras, o Fundo teve sua gestão contestada pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

    Tiago Nery é doutor em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
    Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e integrante da carreira de
    Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do estado do Rio
    de Janeiro. Atualmente é assessor de relações internacionais do Instituto Nacional de
    Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz). É também
    pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial (Labmundo) do IESP/UERJ.

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