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Lawfare na Argentina e no Peru consolida máfia judicial contra a esquerda latino-americana

8 de dezembro de 2022

Primeira condenação de Cristina Kirchner por corrupção, num emaranhado de processos, e golpe final no governo Castillo, depois de inúmeras tentativas de impeachment, revelam a estratégia de golpes limpos da direita contra governos de esquerda

No início da tarde desta quarta-feira (7) a Polícia Nacional do Peru efetuou a prisão do agora ex-presidente Pedro Castillo. Castillo anunciou, no início da tarde de quarta, a dissolução do Congresso e pedia a constituição de um governo de emergência excepcional, que deveria redigir uma Constituição. A medida visava evitar a votação de mais uma moção de vacância por parte do Legislativo, a qual poderia ter como resultado a destituição do mandatário.

A vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, acusou ser vítima de “lawfare”, diante da condenação a seis anos de prisão por corrupção, apenas um dia antes do golpe contra Castillo. Lawfare é quando o sistema judiciário persegue um investigado por razões políticas. “A sentença foi escrita em 2 de dezembro de 2019, na primeira vez em que testemunhei neste julgamento”, sustenta ela.

A condenação foi declarada nesta terça-feira (6), quando a liderança de esquerda foi considerada culpada de administração fraudulenta na ação que ficou conhecida como “Causa Vialidad”, a que estava em estágio mais avançado entre as que a envolvem. Ainda cabe recurso à decisão.

Ambos são casos que confirmam a intensificação do golpismo judicial no continente, conforme a cientista política Ana Prestes comentou, nesta tarde, numa live da TV Grabois. O lawfare e os golpes legislativos já foram expressos antes em outros casos, inclusive no Brasil de Dilma Rousseff e Luis Inácia Lula da Silva.“Há anos, vem se aprofundando na América Latina esse tipo de disputa política através do palco do Poder Judiciário”, resume Ana. A perseguição judicial, conhecida conceitualmente como lawfare, já atingiu presidentes do Paraguai, do Brasil, do Equador e da Bolívia, para citar os casos mais importantes.

O caso Pedro Castillo

Castillo foi eleito para um mandato que duraria até 2026. A sua candidatura derrotou a concorrente de extrema-direita Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori, preso por crimes cometidos durante os anos 1990. O fujimorismo, no entanto, ainda é ativo no país, como demonstraram as tentativas de golpe brando desde o início do governo.

O presidente Pedro Castillo acusou o corpo legislativo de “destruir o estado de direito, a democracia e o equilíbrio de poderes. O artigo 134 da Constituição Política do Peru estabelece que o Presidente da República tem poderes para dissolver o Congresso, se este tiver censurado ou negado a sua confiança em dois Conselhos de Ministros.

No entanto, esse objetivo não foi alcançado, já que o Congresso não acatou as medidas de Castillo, assim como a Junta Nacional Eleitoral, as Forças Armadas e a própria Polícia Nacional. A votação da moção de vacância aconteceu minutos depois, e aprovada com 101 votos de 130 possíveis – superando os 87 necessários.

Também a vice-presidente Dina Boluarte expressou seu rechaço ao anúncio de Castillo. Em sua conta de Twitter, ela disse que a medida “agrava a crise política e institucional que a sociedade peruana terá que superar com estrito cumprimento da lei”.

A mídia local noticia uma suposta transferência de Pedro Castillo para a embaixada mexicana em Lima, em meio a especulações sobre um possível pedido de asilo político após denúncias de golpe de Estado.

O plenário do Congresso peruano convocou para as 15h00 locais desta quarta-feira a vice-presidente Dina Boluarte para tomar posse como nova chefe de Estado, substituindo o demitido Pedro Castillo, e assim se tornar a primeira mulher governante do Peru.

Em seu discurso, o presidente explicou os motivos pelos quais tem sido insistentemente impedido de governar pelo Congresso. Ele mencionou a agenda progressista que tenta aprovar, sob ameaças de impeachment.

“O nefasto trabalho obstrucionista da maioria dos congressistas, identificados com interesses racistas em geral, tem conseguido criar o caos com o objetivo de assumir o governo, à margem da vontade popular e da ordem constitucional”, declarou. “Levamos mais de 16 meses de contínua e obcecada campanha de ataques sem piedade à instituição presidencial, situação nunca antes vista na história peruana.”

O presidente afirmou ainda que já enviou mais de 70 projetos de lei ao Congresso, relacionados a temas como o ingresso livre nas universidades e a reforma agrária, mas os parlamentares priorizam a sua destituição.

“Para essa maioria congressual, que representa os interesses dos grandes monopólios e oligopólios, não é possível que um campesino governe o país e o faça com preferência à satisfação das necessidades da população mais vulnerável.”

Inabilidade política e isolamento

Em questão de minutos, o presidente do Peru, Pedro Castillo, saiu do anúncio da dissolução do Congresso, para a prisão e a posse de sua vice-presidente Dina Boluarte em seu lugar. Esta velocidade com que se trocam presidentes da República no país andino nem surpreende mais os peruanos, que viram cinco deles se revezarem só nos últimos quatro anos. Mas como Castillo foi se isolar de tal forma?

Ana Prestes comentou o calor dos acontecimentos. Para ela, Castillo foi “de uma inabilidade política atroz e constrangedora, mas que não é estranho a quem acompanhou tudo que aconteceu neste governo”.

Por algum tempo, as Forças Armadas chegaram a ensaiar apoio a medida, mas depois se afastaram.

“Em questão de minutos, Castillo ficou completamente isolado, até por seus ministros que renunciaram, a vice-presidente [Dina Boluarte], por Vladimir Cerron [líder de seu partido], e talvez até seu advogado”, disse Ana. “O Congresso ignorou o pronunciamento, deliberou sobre a vacância [impeachment] por motivo fútil (debilidade moral), já dando posse a Dina Boluarte”.

Para a analista internacional, faltou experiência e assessoria a Castillo, para que chegasse a este lugar de constrangimento e isolamento político. Desde o início do governo, suas dificuldades de lidar com as “raposas velhas” do poder peruano são evidentes.

O Peru tem uma elite empresarial e midiática muito forte, observa Ana. O Congresso também é muito forte, enquanto a esquerda é muito dividida e autossabotadora. Desde agosto de 2021, esse governo não tem duas semanas de paz, segundo ela.

Foi tentada a destituição de Castillo por diferentes motivos e formas, a cada instante. Já era a terceira votação de vacância da Presidência, fora as demais que foram tentadas. “Por inexperiência e falta de sustentação do próprio partido, Castillo vai cometendo equívocos de nomeações de ministros, brigas dentro do Peru Livre [seu partido], brigas com a vice-presidente Dina”.

Ana concordo que as tentativas de impeachment não tinham consistência alguma. “Foi um governo de sobrevivência. Além disso, a decisão sobre o destino de Castillo foi muito rápida, como se tudo estivesse pronto para a destituição”, afirmou.

Instabilidade perene

Desde 2018, a sucessão de derrubada de presidentes por impeachments, chegando a cinco presidentes em cerca de quatro anos, tem sido o hábito, sendo que, antes, outros foram presos, incluindo um suicídio. “Depois do fujimorismo, de 1990 a 2000, a crise política no Peru é normal e constante”.

Em 2021 houve eleições gerais em abril com o número absurdo de 18 candidatos. Se apostava na candidata de esquerda Veronica Mendoza, mas no final, todo mundo ficou com cerca de 7%. Na ocasião, Castillo era quase inexpressivo com seus 18% de votos que o levaram ao segundo turno com Keiko Fujimori.

Era um professor da área rural, que se aproximou de Vladimir Cerron, do partido Peru Livre, durante uma grande greve de professores. Mas não tinha qualquer trânsito nacional e político, alçado a Presidência direto de sua região.

“Foi surpreendente para todos que Castillo tenha ido para o segundo turno com a candidata do fujimorismo”, diz Ana. “Foi uma disputa entre o centro e a periferia, entre Lima e o Peru Profundo, carregada de preconceitos e racismos. Uma eleição muito difícil”, descreveu.

A Constituição fujimorista prevê a destituição do Congresso, já que é uma carta originada da ditadura Fujimori. Mas, na opinião de Ana, o ato de Castillo foi inconstitucional pois seu ministério precisaria ser derrubado duas vezes pelo Congresso, algo que só ocorreu uma vez. Foi esta ambiguidade que levou as Forças Armadas a oscilar no momento do pronunciamento, rechaçando depois.

Ana ainda acrescentou que toda esta instabilidade política ocorre em meio a um país que foi onde mais houve morte na pandemia, com maior numero de órfãos, em todo o mundo. A informalidade trabalhista absoluta joga toda a população em trabalhos precarizados, que não garantiram nenhuma sustentabilidade na pandemia. Além disso, o Peru sofreu muito com a corrupção, como demonstra a instabilidade política, com tantos presidentes caindo. 

O caso Cristina Kirchner

Ana diz que, o que vem se sucedendo em relação a Cristina, tende a ser visto por analistas como um tiro no pé do macrismo, o governo neoliberal de Maurício Macri que antecedeu o atual governo de esquerda. A condenação chega no momento em que ela ainda usufrui da solidariedade popular pela tentativa de assassinato, em setembro.

Ainda nesta terça, apoiadores se uniram em defesa dela na frente do tribunal de Comodoro Py, embora a sessão tenha sido remota. Máfia judicial

Além de acusar o lawfare, a vice-presidenta define os que a condenam como “um estado paralelo e uma máfia judicial”. “E a confirmação da existência de um sistema paraestatal onde são tomadas decisões sobre a vida, o patrimônio e a liberdade dos argentinos, que está fora dos resultados eleitorais”.

Cristina Kirchner também fez referência a um vazamento ilegal de supostas mensagens privadas trocadas em um grupo na plataforma Telegram por quatro juízes, um promotor, o ministro da Justiça da cidade de Buenos Aires e diretores do Grupo Clarín que compartilharam, em outubro, uma viagem a casa de campo do empresário britânico Joe Lewis, na Patagônia. 

Ela também faz as ligações entre esses e outros altos-funcionários do Judiciário que também frequentam a fazenda do ex-presidente e adversário Mauricio Macri, em Liverpool. De quebra, suspeita da grande imprensa argentina, por participar desses convescotes da elite que a condena.

“Este é o país que temos hoje e este é o Poder Judiciário que a República Argentina tem hoje”, disse Cristina Kirchner.

Em entrevista a Folha de S. Paulo, no último domingo (4), Cristina comparou sua situação à do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, e Rafael Correa, ex-presidente do Equador, cujas condenações também foram qualificadas como lawfare. As condenações dadas por Sergio Moro contra Lula na Operação Lava Jato foram anuladas por parcialidade do ex-juiz, entre outras razões técnicas. Moro já foi a Argentina tirar fotos com o juiz que a condenou.

“O poder econômico da mídia que ela controla numa espécie de Estado paralelo e que restringe permanentemente. É também um sistema disciplinar. A pena não é de seis anos ou prisão, a verdadeira pena que dão é a inabilitação perpétua para o exercício de cargo político eletivo.Todos os cargos políticos que acessei foram sempre por voto popular: ganhamos quatro governos peronistas de sobrenome Kirchner. Em 2003, 2007, 2011 e também contribuímos para a vitória em 2019. Por isso me desclassificam.Deixe-os contar como quiserem. Esta é a verdade, por isso eles estão me condenando”.

Prejuízo eleitoral

A pena foi fixada em 6 anos de prisão, com inabilitação perpétua para exercer cargos públicos. Ela foi inocentada do delito de associação criminosa, mas é alvo de inúmeros processos. A acusação atual se refere ainda ao mandato de seu marido e antecessor, Néstor (1950-2010), que também foi governador de Santa Cruz.

Como tem foro especial por ser vice-presidenta e líder do Senado, ela precisaria sofrer um processo de impeachment no Parlamento. Isto, no entanto, só pode ocorrer quando forem esgotadas todas as instâncias de apelação. Antes de tudo isso, Cristina pode até ser candidata a sucessão de Alberto Fernández, embora tenha negado, hoje.

“Não vou ser candidata. Além do mais, ótimas notícias para você, [Héctor] Magnetto. No dia 10 de dezembro de 2023 não terei privilégios, não serei vice-presidente. Assim ele poderá dar ordem aos seus capangas da Cassação e do Supremo Tribunal para me colocarem na cadeia”, assegurou, e anotou: “Seu bichinho de estimação, nunca. Não vou ser candidata a nada, nem a presidente, nem a senadora. Meu nome não estará em nenhuma cédula.Termino como voltei em 10 de dezembro de 2015 para minha casa″.

Acusação

Em agosto, a acusação conduzida pelos promotores Diego Luciani e Sergio Mola havia pedido 12 anos de prisão à vice-presidente, que ela fosse impedida de concorrer a cargos públicos para o resto da vida e que devolvesse aos cofres públicos 5,3 bilhões de pesos (R$ 200 milhões).

Cristina reiterou que está sendo condenada por gestão fraudulenta, embora tenha apenas sancionado a lei orçamentária aprovada por deputados e senadores. 

“Além disso, constrói-se a imagem de ladrão, imputando-me crimes patrimoniais quando, na verdade, quando terminei meu mandato, eu tinha os mesmos bens pelos quais já fui investigada três vezes”, disse ela à Folha, falando da dificuldade que há de processarem-na por enriquecimento ilícito.

O Ministério Público Fiscal acusava Cristina de ter liderado uma “extraordinária matriz de corrupção”, armando e administrando, ao lado de outros 12 réus, um esquema de desvio de verbas na forma de concessões de obras públicas na província de Santa Cruz à empresa de um amigo da família Kirchner. Lázaro Báez foi condenado a 6 anos de prisão.

Espírito lavajatista

Não é possível deslocar da política argentina uma liderança da dimensão de Cristina, depois desses fatos ocorridos, acredita a socióloga. “Muitos dizem que essa situação, inclusive, favorece e fortalece Cristina. As eleições de 2023 podem vir a refletir esse processo”.

Toda essa perseguição judicial poderá ter efeito parecido com a condenação do presidente Lula. Na opinião dela, a prisão acabou dando enorme visibilidade internacional ao caso, além de abrir toda uma disputa no país sobre a legitimidade dos processos contra ele.

Ela pondera que esta condenação não encerra uma etapa, como quer fazer crer a oposição ao governo, “mas começa toda uma ebulição política, que se acirrará em 2023”.

Ana considera que o clima é de muita conflagração na Argentina. Especialmente, com os flagrantes de juízes e promotores se reunindo em festas, restaurantes e viagens com empresários e apoiadores macristas. “Cristina faz essa denúncia e desafia esse estado de coisas”, observa.

Ela compara a situação dos argentinos como o início de um clima encerrado no Brasil, com a debacle da Operação Lava Jato e seu lawfare contra o petismo no Brasil. Os argentinos sentem por lá, o “espírito lavajatista do tempo”, que os brasileiros sentiram por aqui. “Uma instrumentalização do judiciário para realização de disputas políticas”.

Veja a íntegra do comentário de Ana Prestes:

(por Cezar Xavier)